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Fibromialgia leva a elevado absentismo laboral e número de utentes tem vindo a aumentar

De acordo com Cláudia da Câmara Rodrigues, médica especialista em Medicina Interna, a fibromialgia é uma síndrome que se caracteriza por múltiplas queixas, sendo a dor difusa a principal, que afecta maioritariamente mulheres. Nesta entrevista, a médica refere que o diagnóstico da doença é complexo devido à polissintomatologia dos pacientes e à procura de ajuda em diversas especialidades médicas. Fala, ainda, sobre o impacto da doença na qualidade de vida dos pacientes, dos desafios na conciliação da fibromialgia com uma vida profissional e do estigma existente na sociedade em relação a esta patologia. Tendo em conta que não existem “grandes sinais externos de doença nem alterações nos exames complementares, a fibromialgia pode ser vista, de certa forma, como ‘manha’ ou ‘simulação’ por parte do doente”, afirma. Esta patologia apenas foi reconhecida pela Organização Mundial da Saúde como doença no final da década de 1970 e em 1990 pela Sociedade Americana de Reumatologia.

Correio dos Açores – A fibromialgia é uma doença que se caracteriza por uma série de sintomas. Quer explicar?

Cláudia da Câmara Rodrigues (médica especialista em Medicina Interna) A fibromialgia é uma síndrome caracterizada por múltiplas queixas, sendo que a dor difusa por períodos superiores a três meses é a principal. Esta dor é mal definida, podendo ser generalizada ou atingir mais o pescoço, ombros e região lombar, associada a sensação de contratura; as queixas têm flutuação ao longo do tempo, ou seja, a intensidade é variável, havendo períodos em que a doença está mais “adormecida”, outros em que as queixas são exacerbadas; é frequentemente agravada com a falta de sono e com o stress, muito relatados pelas pessoas afectadas. Além da dor, os doentes têm uma série de outros sintomas como: sensação de formigueiros, fadiga (já acordam cansados, com sono não reparador), ansiedade, humor deprimido, dificuldade na concentração, queixas gástricas e intestinais, entre as mais frequentes. Podem relatar, ainda, uma hipersensibilidade a cheiros, ao ruído, e à luz. Apenas em 1990 foi reconhecida como doença pela Sociedade Americana de Reumatologia.

Qual é a incidência desta patologia na Região?
Não tenho dados da real prevalência da fibromialgia na Região, mas de forma empírica, acredito que os números sejam semelhantes aos descritos a nível nacional. Num estudo feito em Portugal (EpiReumaPt) em 2023, concluiu-se que o número de doentes com fibromialgia tem aumentado e que a prevalência estimada em Portugal está entre os 1,3 a 2,1%, (outros estudos indicam maior prevalência) afectando, em cada cinco doentes, quatro mulheres para um homem.

Como se manifestam os sintomas?
Está disponível online um teste de rastreio composto apenas por quatro questões que pode ser respondido por quem tiver interesse, e que servirá para apoiar o doente na suspeita clínica desta entidade: o fibromyalgia symptom scale (FSS)4. De forma simplista e para esclarecer a população, diria que o doente fibromiálgico vive num círculo vicioso: dor – stress – tensão muscular, repetindo-se esta sequência de forma agravada se não houver intervenção. Quando estamos ansiosos, muitos dos nossos músculos permanecem contraídos e cansam-se e, consequentemente, doem. Quando temos dores, ficamos ansiosos, deprimidos, agravando-se o stress, a insónia e tudo o que daí possa advir de nefasto.

Quais são as causas da fibromialgia?
Actualmente a causa é idiopática. Dizemos isto quando as doenças têm causa desconhecida, à luz dos conhecimentos da ciência actuais. Não quer dizer que no futuro continue a ser assim. Há uma alteração a nível do sistema nervoso central na capacidade do doente modular a dor, mas isto não se vê em exames de rotina. Factores genéticos e da própria personalidade da pessoa também têm influência, mas ainda não se isolou “o gene” ou o gatilho responsável pelo início da doença. Sabe-se, porém, que tem uma certa tendência familiar – se eu tiver uma mãe ou avó com fibromialgia, tenho maior risco de a vir a ter, mas não estou condenada a tê-la.

No seu entender, como médica, quais são os maiores desafios no diagnóstico da fibromialgia nos Açores?
Os doentes (maioritariamente mulheres) com fibromialgia são polissintomáticos, tendem a ter queixas muito variadas e díspares para além do quadro doloroso, o que faz com que procurem ajuda nas mais diversas especialidades médicas, algumas das quais não são as mais adequadas para estabelecer este diagnóstico, o que o atrasa muitas vezes. Outro factor que faz com que estes doentes não estejam, nalguns casos, controlados é que a abordagem terapêutica inicial feita pelo médico não surte efeito imediato e, perante isto, os doentes ficam descrentes. Por não terem notado bons resultados, não voltam ao médico inicial e tendem a ir procurar outro clínico, e assim sucessivamente, perdendo-se ao longo do tempo muita informação pertinente que, se estivessem apenas concentrados num clínico, a avaliação da evolução permitiria o diagnóstico mais fácil e célere. Como a avaliação fica muito fragmentada, o juntar das peças é mais difícil, atrasando o diagnóstico definitivo e o tratamento que melhor resulta para aquela pessoa. Isso, obviamente, não acontece só nos Açores nem apenas para a fibromialgia. Acontece com muitas patologias. Daí a importância de se ter um médico de família – ou mesmo um médico especialista em medicina interna, nos casos mais complexos –, agregador de todo o estado de saúde-doença da pessoa e que possa ter a noção do “contínuo” daquela pessoa, e estar mais alerta e atento às alterações para precocemente intervir e referenciar, quando necessário. Por exemplo, um valor de pressão arterial de 90/60 mmHg pode ser normal, se for o habitual daquela pessoa, ou pode ser um sinal de doença grave! A medicina não se faz apenas com algoritmos. Há que integrar tudo no seu contexto.

Quais são os critérios de diagnóstico da fibromialgia? Ou seja, como é que os médicos podem diferenciar esta de outras condições com sintomas semelhantes?
Os critérios de diagnóstico desta entidade são bem definidos em termos clínicos. Os tempos modernos habituaram-nos a querer diagnosticar cada vez mais por meio de exames complementares de diagnóstico, a querer documentar alterações nas análises, nas radiografias, nas ecografias, etc., e nesta entidade o diagnóstico é de “exclusão”, ou seja, os exames complementares não têm alterações padrão. Precisamos de nos socorrer de alguns exames para fazer o diagnóstico diferencial e, após excluídas algumas entidades “confundidoras”, a confirmação da vibrem-vo-los é feita. Por exemplo, há dores musculares que estão associadas a uma alteração numa análise de sangue e outras que não. As dores podem ser semelhantes, mas esta simples alteração analítica apontará para uma outra entidade que não a fibromialgia.
Assim, implica apostar numa entrevista clínica cuidada ao doente, o que implica maior consumo de tempo, e num exame objectivo, dirigido e rigoroso. Explicar ao doente o que tem e o que este pode fazer para se ajudar, co-responsabilizando-o como parte interessada no seu processo de controlo da doença também é fundamental.
Em Janeiro deste ano foi publicado um artigo na revista científica Biomedicines sobre a descoberta de um potencial marcador da doença, mas que ainda está em investigação. Aguardemos.

Muitos pacientes relatam encontrar resistência por parte de profissionais de saúde. Quer comentar?
Concordo e contra mim falo. É daquelas patologias clínicas que muitos dos clínicos não gostam, porque os resultados a curto prazo não são bons. Ou seja, consulta após consulta, os doentes continuam sintomáticos e a abordagem pode passar por muitas especialidades: medicina geral e familiar, medicina interna, reumatologia, medicina física e reabilitação (fisioterapia), consulta de dor crónica, psicologia, psiquiatria, entre outras. Além disso, a falta compromisso por parte dos doentes, pois nós sugerimos que é importante manter actividade física, de forma regular e sustentada, e, na maior parte dos casos, as pessoas não cumprem e esperam que a “pílula milagrosa” resolva tudo, o que, nos dias de hoje, (ainda) não acontece. Para os médicos, seguir um doente que nos apareça com diabetes descompensada (com uma alteração numa análise), ao qual nós iniciamos algum tipo de terapêutica nova e na consulta seguinte já vem controlado é gratificante. Além disso, é algo fácil de confirmar com a descida daquele parâmetro (hemoglobina A1C). Já na fibromialgia, é muito por tentativa e erro, e muitos dos fármacos utilizados requerem período de adaptação, com alguns efeitos colaterais no início que podem fazer com que o doente abandone a medicação e, claro, com prejuízo nos resultados esperados a médio prazo.

A fibromialgia afecta predominantemente mulheres entre os 30 e os 50 anos. Existe alguma razão para esta tendência?
Está confirmado um aumento da incidência da fibromialgia em doentes com lúpus, artrite reumatóide e osteoartrose, doenças que também são mais frequentes nas mulheres. A etiologia é multifactorial e complexa. Refiro, porém, que também afecta crianças e pessoas de idade mais avançada.

Tendo em conta que a fibromialgia não tem cura, qual deve ser o tratamento?
À luz dos conhecimentos dos dias de hoje, é uma doença crónica, sem cura, portanto. Temos, felizmente, armas para ajudar no controlo sintomático e os antidepressivos são uma das classes fundamentais, uma vez que há alguns destes, como a duloxetina, amitriptilina, por exemplo, que têm associadamente função de modular a dor, que é precisamente do que estes doentes mais se queixam. Há outros coadjuvantes, como a pregabalina, gabapentina, que mostram benefícios significativos em algumas pessoas, sem esquecer, claro, o efeito placebo que é potenciado quando o doente sente segurança no seu médico. A psicoterapia também pode ter um papel importante na abordagem de alguns destes doentes, com determinado tipo de personalidade, sem esquecer a fisioterapia, entre outros tratamentos.

E a medicação ajuda efectivamente com os sintomas?
Sem dúvida! Há variadas formas de intervenção e medicação ao dispor. Não há apenas uma classe de fármacos que funciona com todos. O que funciona no doente A, pode não funcionar no doente B e nós não temos forma de perceber isso no imediato. Só com experimentação e consultas de reavaliação seriadas, que nem sempre podem ser feitas no tempo desejado. Às vezes, é mesmo um processo de “tentativa e erro”.

No que toca à prevenção, o que pode ser feito?
Não falo propriamente de prevenção, pois ainda não há forma de a fazer, sendo que qualquer pessoa pode ser afectada e diagnosticada com fibromialgia ao longo da vida. Mas a ciência dá umas dicas para tentar manter a doença controlada e, na prática, é o que deve ser feito por todos nós, se quisermos prevenir/controlar uma série de doenças: ter hábitos de sono e alimentares adequados, passando por uma boa hidratação diária com recurso a água; não fumar; restringir o consumo de álcool no máximo a três dias por semana (mulheres 10g/álcool/dia; homens até ao dobro – valores considerados seguros), praticar actividade física regularmente; saber gerir o stress; ter passatempos prazerosos e conviver com pessoas que nos são queridas, com regularidade. Parece simples, não é?!

Considerando que a fibromialgia é uma doença crónica e complexa, como descreve o seu impacto na vida quotidiana dos doentes?
O que noto, da minha prática clínica, é que são pessoas com elevado absentismo laboral. Basta imaginarmos o que é não termos uma boa noite de sono durante dias seguidos… No dia seguinte, não funcionamos, o cérebro parece lento, o corpo pesado e são muitas vezes doentes com perturbações do humor, com perturbação depressiva-ansiosa, o que condiciona tudo à sua volta. E daí resultam as faltas ao trabalho, por períodos prolongados. É uma doença que, como muitas, não afecta apenas o próprio, mas também os familiares mais próximos por colateralidade. Como não dá grandes sinais externos de doença nem alterações nos exames complementares, pode ser vista de certa forma como “manha” ou “simulação” por parte do doente, o que faz aumentar mais ainda o sentimento de incompreensão por parte da pessoa doente.

É possível conciliar a fibromialgia com uma vida profissional?
É! Não quero deixar aqui apenas uma visão pessimista e fatalista. Também temos casos de sucesso. Há pessoas comprometidas com o seu tratamento e que nos relatam francas melhorias ao longo do tempo, permitindo uma vida perfeitamente normal na maior parte do tempo.

De que forma o Dia Mundial da Fibromialgia ajuda na sensibilização sobre esta condição?
Acho que pode servir para alertar – doentes e não doentes – para a sua existência. A ciência está constantemente em evolução; acredito que qualquer dia surja um marcador biológico que possamos dosear (no sangue, urina) que nos traduza o grau de actividade da doença ou mesmo que sirva para apoiar o diagnóstico, como já existe para muitas outras doenças. Certamente, ao termos isto, haverá uma maior empatia por parte dos profissionais de saúde e familiares dos doentes, pelas entidades empregadoras porque servirá como “prova” de doença e um doente quando se sente compreendido e aceite, sente melhoria nos seus sintomas.

Carlota Pimentel

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