O cansaço físico dos enfermeiros, devido à escassez destes profissionais na Região, é uma realidade que preocupa Pedro Soares, Presidente da Ordem dos Enfermeiros nos Açores. A sua preocupação aumenta ao constatar que, anualmente, mais enfermeiros abandonam a profissão do que aqueles que são formados ou contratados. Além disso, aponta a falta de equilíbrio na distribuição de cuidados de Enfermagem entre as várias ilhas do arquipélago e a necessidade de implementação de medidas para atrair e reter enfermeiros como outras problemáticas preocupantes. Defende que é necessário combinar incentivos financeiros com melhorias nas condições de trabalho, formação contínua e apoio à fixação para fazer face a este problema. Nesta entrevista, fala também sobre o trágico incêndio no HDES. Na sua opinião, “ficou claro que, junto com outros profissionais, mas fundamentalmente os enfermeiros, tiveram um papel fulcral, primeiro na evacuação dos utentes e, depois, na organização no imediato da acomodação de toda a estrutura nos diversos pontos seleccionados.”
Correio dos Açores – Na sua opinião, qual a importância do Dia Internacional do Enfermeiro?
Pedro Soares (Presidente da Ordem dos Enfermeiros dos Açores) – É uma ocasião mundial para celebrar mas, acima de tudo, realçar a necessidade de valorizar os enfermeiros e continuar a promover a excelência na enfermagem.
É uma oportunidade para reconhecer e homenagear o trabalho árduo, a dedicação e o compromisso dos enfermeiros em todo o mundo num papel fundamental na prestação de cuidados de saúde à população, muitas vezes enfrentando desafios e situações difíceis.
Quero crer que a celebração deste dia aumenta a consciencialização pública sobre a importância da enfermagem, numa oportunidade para destacar o papel vital que os enfermeiros desempenham nos sistemas de saúde, desde a prevenção até ao tratamento e à reabilitação.
Serve, ainda, como um momento para a advocacia e defesa dos direitos e condições de trabalho dos enfermeiros. É também uma oportunidade para reforçar a necessidade de investir em formação contínua, melhores condições de trabalho e reconhecimento profissional.
Quais são as principais preocupações/dificuldades dos enfermeiros nos Açores?
Existem diversas dimensões de preocupações que, acrescidas à nossa realidade arquipelágica, justificam o facto de ser enfermeiro ilhéu levar a que cada um desenvolva uma capacidade de resiliência muito elevada.
O cansaço físico, principalmente por escassez de enfermeiros, é transversal a todo o arquipélago. A resolução de especificidades relacionadas com a carreira, reposicionamentos salariais e progressão, assim como a sustentabilidade do sistema regional de saúde são algumas das questões fulcrais. Um exemplo prático que me preocupa, e falando da sustentabilidade de cuidados de enfermagem, é o facto de, anualmente, retermos a trabalhar nos Açores uma média de 43 novos enfermeiros, mas cerca de 47 enfermeiros por ano aposentam-se, emigram ou abandonam a profissão. Ora, estamos claramente com uma perspectiva negativa na resolução do reforço e dotações seguras das nossas instituições.
Como é que a Ordem dos Enfermeiros nos Açores tem estado a lidar com os desafios enfrentados pela profissão?
Tentamos desempenhar um papel crucial na defesa dos interesses dos enfermeiros e na promoção de melhores condições de trabalho, com o impacto positivo sobre o cuidar da nossa população, é um princípio de que não abdicamos. Somos assumidamente uma voz activa na defesa dos direitos dos enfermeiros e dos açorianos, no que à Saúde diz respeito.
Uma coisa importa frisar: nos últimos anos, a Enfermagem teve de dizer presente numa pandemia, na crise sismovulcânica de São Jorge e recentemente no shut down do Hospital do Divino Espírito Santo, fora todo o restante movimento assistencial exigido, o que fez com que, enquanto Ordem, fizéssemos um trabalho mais específico de acompanhamento e num sentido motivador das diferentes equipas. Estes são grandes desafios também para a Ordem dos Enfermeiros, a par de toda a construção do desenvolvimento da profissão nos Açores. Tudo isto, por uma equipa exemplar que tenho a honra de liderar e que acredito estarmos no caminho de uma Enfermagem exemplo para muitas outras realidades.
Que iniciativas a Ordem dos Enfermeiros tem promovido para melhorar as condições de trabalho e a qualidade dos cuidados de saúde prestados nos Açores?
Conseguimos criar uma organização interna e respectiva estrutura que nos permite, hoje, acompanhar de perto as condições de trabalho dos enfermeiros nos Açores, com visitas de acompanhamento do exercício profissional às instituições, de forma regular, com intervenções, sempre que pertinentes, e num trabalho de grande proximidade com a maioria das instituições que prezam um trabalho sério, leal e justo.
Somos assumidamente uma voz activa na defesa dos direitos dos enfermeiros, participando por exemplo nas discussões com a tutela e outras entidades no garante de melhores condições de trabalho e reconhecimento profissional. Temos vindo a trabalhar para a criação de incentivos à fixação de enfermeiros nos Açores, contribuindo para a construção de um sistema regional de saúde mais seguro e equilibrado entre as diversas ilhas. Temos, ainda, colaborado com entidades públicas e privadas, por forma a trabalhar e fortalecer a resposta às diversas dimensões dos cuidados e promover a segurança dos enfermeiros e da nossa população. Outra das nossas grandes bandeiras, em que temos investido muito trabalho, é a implementação do enfermeiro de família. Hoje, os Açores são já exemplo nessa matéria e eu acredito que é, de facto, uma grande revolução nos cuidados, com vantagens claras para a população. Tivemos, também, uma participação junto da construção do plano regional de saúde com diversas iniciativas e sugestões, na sua maioria incluídas no documento.
De que forma a Ordem dos Enfermeiros procura promover a valorização da profissão e garantir o reconhecimento do papel dos enfermeiros no sistema de saúde?
Estas são matérias a que igualmente temos dado grande atenção, não apenas por estarem plasmadas nos desígnios das funções da Ordem dos Enfermeiros, mas também porque acredito que são parte de uma base fundamental na construção de uma Enfermagem açoriana de futuro, virada para o mundo além do nosso.
Julgo que o reconhecimento, apesar de ser automático na relação que estabelecemos diariamente com os nossos utentes, pode ser muito mais potencializado e, para isso, temos feito várias participações e campanhas públicas onde demonstramos o que a nossa Enfermagem faz, onde faz, as nossas diversas competências e potencialidades. É importante que a população conheça os seus enfermeiros e não se lembrem apenas quando em situações limites como a pandemia.
Temos, por outro lado, trabalhado internamente com a classe, promovendo iniciativas para o desenvolvimento e valorização profissional com programas de formação contínua, actualização de conhecimentos e competências, e incentivos à especialização. O objectivo é garantir que os enfermeiros estejam preparados para enfrentar os desafios do sistema de saúde e proporcionar cuidados de qualidade aos utentes.
Por exemplo, temos, ainda, trabalhado no sentido de ser uma voz activa na defesa dos direitos dos enfermeiros, participando na discussão com as autoridades de saúde no garante de melhores condições de trabalho e reconhecimento profissional, entre outras acções.
Quais são os principais objectivos e prioridades da Ordem dos Enfermeiros nos Açores para o próximo ano?
Temos um compromisso eleitoral com os nossos enfermeiros que será cumprido num projecto desenhado para quatro anos, sendo que, das diversas matérias, damos prioridade em fortalecer a profissão nos Açores e melhorar os cuidados de saúde na Região.
Neste primeiro ano do segundo mandato, iremos continuar a lutar pela justa valorização dos enfermeiros, garantindo melhores condições e reconhecimento, assim como a implementação do enfermeiro de família e a promoção da literacia em saúde.
Temos, ainda, diversas intervenções em matérias ligadas ao desenvolvimento da formação contínua dos nossos enfermeiros, e promoção da formação especializada apoiada. Continuaremos a desenvolver um trabalho de colaboração e cooperação com diversas entidades públicas e privadas. Com os recentes acontecimentos no HDES, teremos igualmente um papel de suporte e assessoria junto das instituições e de todas as equipas envolvidas, no sentido de contribuir para uma rápida mitigação do problema.
Em que ilhas há mais falta de enfermeiros? Como se pode cativar os enfermeiros para estas ilhas?
Esta é, de facto, uma problemática que me preocupa: haver cuidados de enfermagem equilibrados em todas as ilhas e o facto de não estarmos a formar o suficiente para compensar as saídas de enfermeiros do activo nos Açores. A juntar a isto, o défice que existe é, de facto, uma questão importante para resolver num trabalho conjunto, não só da Ordem dos Enfermeiros. Ao contrário do anunciado pelo Instituto Nacional de Estatística, os Açores estão de uma forma geral com valores de enfermeiros por mil habitantes abaixo do preconizado. O INE faz a média juntando todas as ilhas, quando o certo é olharmos cada ilha individualmente. Colocada esta premissa, ilhas como as Flores e a Graciosa preocupam-nos no imediato. Outras seguem o mesmo caminho de alta necessidade, sendo que venho defendendo que uma das questões que poderia ajudar a atrair e cativar enfermeiros passa pela implementação de apoios à fixação e não estou a falar estritamente financeiros. Outra iniciativa que podíamos criar passa por apoios à formação pós-base, o que hoje praticamente não existe e, claro, uma carreira com progressão actualizada poderia ser uma fonte de atractividade. Em sumula, é necessário combinar incentivos financeiros com melhorias nas condições de trabalho, formação contínua e apoio à fixação.
Com o incêndio no Hospital do Divino Espírito Santo, os enfermeiros assumem ainda mais relevância. Quer comentar?
O incêndio no HDES em Ponta Delgada foi um evento trágico e muito impactante no nosso Sistema Regional de saúde. Ficou claro que, junto com outros profissionais, mas fundamentalmente os enfermeiros, tiveram um papel fulcral, primeiro na evacuação dos utentes e, depois, na organização no imediato da acomodação de toda a estrutura nos diversos pontos seleccionados. Os açorianos devem ter orgulho nos seus enfermeiros. Demonstramos razões para tal todos os dias, mas nestes momentos críticos temos sempre dito presente e temos sido um exemplo para o mundo, num trabalho de coragem, competência e resiliência, com altos níveis de eficácia.
Tive a oportunidade de, nos dias seguintes ao incêndio, estar no terreno ao lado dos colegas e o que vi foi, apesar das adversidades – que são muitas –, uma capacidade de sacrifício pessoal tremendo para que o sistema regional de saúde não ficasse em ruptura. Reparem, adaptou-se espaços, criaram-se rotinas, cuidou-se no imediato e iniciou-se a preparação do futuro, isto num sistema regional limitado, numa região em que nestes momentos o peso do mar que nos rodeia é maior. Eu tenho muito orgulho no trabalho que foi e está a ser feito e, enquanto Ordem, estaremos todos os dias literalmente ao lado.
Quais são as preocupações imediatas dos enfermeiros em relação a este incidente?
Diria que de uma forma geral, e no imediato, preocupa-nos a segurança dos nossos utentes, a continuidade dos cuidados e a reorganização e planeamento futuro do atendimento. Foi preciso criar um hospital fora do hospital e falamos do nosso hospital de referência. Foi feito um trabalho, nas primeiras horas, de garantir a segurança dos utentes e, logo de seguida, melhorar as condições porque efectivamente não temos um espaço temporal previsível para regressar aos serviços hospitalares. Depois, tivemos que manter a continuidade dos cuidados com as condições possíveis e, repito, nada fáceis, em cenários de actuação muito difíceis. Por fim, a reorganização e planeamento futuros, num horizonte incerto, nunca é fácil, e, portanto, no desconhecido causa maior preocupação. Temos todos de ter a noção de que o nosso Sistema Regional de Saúde está no seu limite, pelo que a colaboração colectiva é fundamental. De uma coisa tenhamos a certeza: os nossos enfermeiros são altamente profissionais, o que se percebe pelo sucesso de todo o trabalho até ao momento.
O que prevê para os enfermeiros nos próximos tempos? Avizinham-se tempos difíceis?
Eu diria que esta geração actual não tem tido vida fácil. Só nos últimos três anos, tiveram de enfrentar uma pandemia, apoiar a crise sismovulcânica de São Jorge e agora esta questão do nosso hospital de referência. Mesmo assim, sinto que enfrentaremos os próximos tempos de frente, com a certeza de desafios significativos, mas a resiliência e determinação tão característicos dos enfermeiros açorianos serão fundamentais para superar os obstáculos e alcançar melhorias. De uma forma geral, prevejo que o regresso à normalidade em São Miguel não será tão célere como todos nós desejaríamos, e isso será um desafio para a nossa enfermagem. O combate à falta de enfermeiros nos serviços será outro ponto, com as consequências que isso tem, nomeadamente excesso de horas de trabalho que terão de ser asseguradas sempre pelos mesmos, entre outras questões.
Que medidas devem ser implementadas para garantir que os hospitais nos Açores estejam adequadamente preparados para lidar com situações de emergência como esta no futuro?
Sem me estar a referir a ninguém directamente, julgo que é fulcral termos um modelo de gestão diferente em que os gestores devam ser garantidamente escolhidos pelas suas competências avançadas e, quiçá, pensarmos na criação de um centro hospitalar regional constituído pelos três hospitais, pois julgo que, entre muitas questões, as operacionalizações em situações extremas seriam mais facilitadas. Depois, há as questões de certificação e aplicação de modelos de qualidade nessas instituições. Não compreendo como em alguns casos ainda não acontece, apesar das sucessivas orçamentações. Por fim, corrigir anos de desinvestimento estruturais e aplicar medidas modernas de controlo. Sairá muito mais barato este investimento do que a recuperação, como a que agora tem de ser feita.
Carlota Pimentel