Almocei esta semana com um amigo de longa data com quem não estava há muito tempo.
Invariavelmente a conversa andou em torno da Igreja e deste amor a Jesus que nos une, cada um a seu modo, com as nossas contradições, omissões e desconfianças, com os nossos dias maus que se prolongam por noites escuras, mas sempre com a mesma determinação: servir; servir o Senhor no amor aos irmãos, aos mais próximos. E neste capítulo recordámos o cuidado das nossas mães. Ele felizmente ainda tem a sua e é o seu principal cuidador; a minha infelizmente já partiu, daqui a nada há quase um ano, mas continuo a cuidar da sua memória e sobretudo que ela continue na vida de cada um de nós, que éramos os seus, que ela tanto estimava e de quem gostava de ter sempre a companhia, porque , afinal, morrer é só deixar de ser visto, o que não acontece com ela que está sempre presente.
Como acompanhar os idosos, ser uma presença viva nas suas vidas; como tornar o seu sofrimento menos doloroso e consequentemente menos desesperante? Sobretudo, quando a vida é tão corrida e não temos tempo para nada e se não temos tempo para os filhos como podemos ter para os pais que nos deram a vida, nos aconchegaram quando caíamos, nos enxugavam as lágrimas quando a dor apertava… Os pais têm esse condão: são uma espécie de sacos de boxe onde descarregamos todas as frustrações e fazemo-lo assim porque sabemos que eles nunca, ou quase nunca, desistem de nós, seja qual for a nossa condição.
Tenho para mim que uma das maiores doenças deste século é a solidão. Um problema que já vem de traz e que a sociedade de consumo não conseguiu resolver; bem pelo contrário, acentuou.
Na sociedade do consumo, do brilho e das luzes, não há lugar para velhos porque eles vivem escondidos na sua ruralidade, espalhados pelas serras e montes de Portugal ou na sozinhês de prédios decrépitos, nas grandes cidades, onde aguardam agora modernamente pela ordem de despejo para que o ninho de uma vida possa dar lugar aos jovens que deambulam pelos alojamentos locais, que são mais baratos que os hotéis e muito mais rentáveis para quem os possui.
Um dos paradoxos do Cristianismo é justamente esse: acreditar num Deus que é Amor e olhar para o mundo e interpretar o mal que não se evita. E por mais mal que exista na guerra, na falta de paz, na pobreza, no infortúnio não haverá dor maior do que uma mãe ou um pai serem abandonados ou esquecidos pelos filhos. Em qualquer momento da vida e, por maioria de razão, na vulnerabilidade que é, quase sempre, sinónimo de velhice.
Todos os filhos têm um direito natural a ter pais; às vezes apetecia perguntar: onde estão os filhos desses pais abandonados e entregues ao sofrimento da sua sozinhês?
Lembro-me de uma catequese que o Papa Francisco fez em 2022, numa das quartas-feiras, de audiência geral. Intitulava-se “Honra o Pai e a Mãe: o amor pela vida vivida” e nela Francisco dizia com veemência: “Honra é uma boa palavra para enquadrar a restituição do amor que diz respeito aos idosos”, outra forma de dizer salvaguardar a sua dignidade.
Francisco afirmava que as experiências da nossa fragilidade humana, diante das situações dramáticas e às vezes trágicas da vida, podem acontecer em qualquer momento da existência. No entanto, na velhice “podem causar menos impressão e induzir uma espécie de vício, até mesmo de incómodo, nos outros”.
Segundo o Papa, “as feridas mais graves da infância e da juventude causam um sentimento de injustiça e rebelião, uma força de reação e luta. Ao contrário, as feridas, mesmo graves, da velhice são inevitavelmente acompanhadas pelo sentimento de que a vida não se contradiz, porque já foi vivida”.
“Na experiência humana comum, o amor – como se costuma dizer – é descendente: não volta à vida que está atrás de nós com a mesma força com que se derrama na vida que ainda está à nossa frente. A gratuidade do amor também aparece nisto: os pais sempre souberam disso, os idosos aprendem isso cedo. No entanto, a revelação abre caminho para uma restituição diferente do amor: é a estrada para honrar quem nos precedeu”, concluía o Papa.
De facto, a honra é a mais bela declinação do amor. O cuidado dos doentes, o apoio a quem não é autossuficiente, a garantia do sustento, a delicadeza e o afeto, a ternura e o respeito, são as várias declinações pelas quais a honra se defende.
Não creio que Jesus tenha conhecido muito sobre a velhice, até porque não teve pais velhos, mas deixou suficientemente claro como queria que tratássemos os mais velhos, os nossos pais, os nossos avós, os nossos mais próximos que precisam de nós, se não, não nos tinha seduzido com a ideia de uma civilização do amor.
Naquela catequese citada, o Papa contava, ainda, que ao visitar um lar, quando era arcebispo de Buenos Aires, aproximando-se de uma senhora perguntou-lhe: “A senhora tem quantos filhos?” – “Tenho quatro, todos casados, com netos…”, e começou a falar-lhe da família. “E eles vêm?” – “Sim, eles sempre vêm!”. Quando saiu do quarto, a enfermeira, que tinha ouvido a conversa disse-lhe: “Padre, ela disse uma mentira para encobrir os filhos. Não vem ninguém há seis meses!”.
Todos nós conhecemos histórias dessas. A teologia torna-se mais saborosa quando é vivida com afecto.
Regresso à minha mãe e à mãe do meu amigo, cuja história se cruza, sem elas se terem cruzado em algum momento das suas vidas. Apenas cada um de nós é filho da história da sua mãe e fora dela sentimo-nos murchos. Cuidar delas foi para mim, e é para esse meu amigo, uma forma de dizer que estamos vivos e queremos fazer como Jesus nos ensinou. Elas apoiaram-nos, dentro das suas possibilidades, e certamente foram possibilidades diferentes, durante as etapas do nosso crescimento e agora cada um de nós sentiu que lhe cabia apoiar a sua vida, aligeirar as suas dificuldades, estar atento às suas necessidades e criar todas as condições para que a sua dignidade seja respeitada e nunca se sintam sós.
“Honra o teu pai e a tua mãe e terás longa vida na terra”. Este mandamento de honrar os idosos dá-nos a maior bênção de todas. Não é só porque somos pessoas decentes, com um comportamento social exemplar, que honramos os nossos pais. Muito menos porque somos isto ou aquilo, porque estudámos e tivemos sucesso; porque lhes demos netos e prolongámos a sua descendência e guardámos o seu bom nome. Será isso tudo, com certeza! Mas é muito mais do que isso. Honrar pai e mãe é devolver-lhes aquilo que eles nos deram sempre: amor, que é como quem diz, colo, abraços, presença. Sobretudo, no fim da vida.
Fico contente por ter amigos assim.
Carmo Rodeia