Nesta edição do Diário de viagem, Cláudia Viveiros recorda algumas das suas aventuras vividas no México, em África do Sul, no Canadá e nos Estados Unidos da América, mais concretamente em Las Vegas, Boston, Miami e nos estados do Nevada, Utah e Arizona. Recorde-se que a micaelense já viajou por mais de 100 países, fazendo parte do Traveler’s Century Club – um clube exclusivo de viagens que só aceita quem já tenha visitado, pelo menos, 100 países e territórios –, e foi considerada pelo Sapo Viagens como uma das viajantes que mais inspiraram em 2023.
A indomável América levou-me a viajar para dentro de mim com uma intensidade que jamais esperava. Visitei este continente, pela primeira vez, no último trimestre de 2019. No Canadá, em Toronto, hospedei-me como convidada na casa do Presidente da Federação de Naturistas Canadianos e vivenciei a minha primeira e única experiência nudista. Como em cada viagem tento viver experiências significativas, a nudez simbolizou o meu desprendimento e a minha entrega ao desconhecido. Esta atitude foi essencial para mergulhar em culturas cujas crenças pudessem parecer obsoletas ou ilógicas.
No México, onde a morte tem outra vida, renovei a minha perspectiva sobre o que me rodeia ao confiar a minha vida a um completo estranho. Não vi Deus porque eu não podia ver algo que para mim não existe. Mas vivi um perecimento temporário. Antes desta cerimónia repleta de cerimónias, agradava-me ser capaz de acreditar na existência de uma vida espiritual após a morte. Fascinava-me continuar a existir como uma energia consciente dispersa pelo Universo. Mas ser convertida em energia, alma ou consciência fora do corpo chega a ser insuportável e ficar retida nesta eternidade pode ser ainda mais avassalador.
Conheci alguns nativos americanos que sentem as forças presentes na natureza. No Vale de Teotihuacán, convivi com a Maribel que comunica intimamente com as plantas e as árvores ao seu redor. Ela foi capaz de transformar uma cerimónia ancestral de banho de vapor numa sequência de momentos esotéricos.
Visitei o México num ano muito marcado pela violência. Foi também um acto de violência que me incitou a explorar algumas cerimónias ancestrais pelo Novo Mundo. No início de 2019, fui atacada e roubada em Joanesburgo. Os sul africanos, que me atenderam numa clínica, afirmam que foi um milagre eu ter escapado praticamente ilesa. Até à publicação desta crónica, eu só tinha partilhado este infortúnio com um punhado de amigos e vários viajantes que também foram vítimas de crimes perpetuados em África do Sul.
No Mercado de Sonora, recebi a bênção da intimidante Santa Morte – uma entidade que os mexicanos associam aos criminosos. Cuspiram-me álcool da cabeça aos pés e golpearam-me com ramas por todo o corpo. Garantiram-me que assim estaria protegida durante toda a minha jornada.
Ao visitar as Patronas de Veracruz e ao comunicar com os migrantes ilegais que acolhem, abri os olhos para o verdadeiro México. Ouvi relatos e testemunhos marcados pelo medo e pela dor. Fui descobrindo que os mexicanos não escondem a verdade, nem embelezam a realidade do seu país e que comer picante é como comer o que é difícil da vida. Naquela altura, Veracruz encabeçava a lista de estados com o maior número de sequestros. Eu também nem sempre tinha em mente que no México há muitas mortes provocadas por sicários. Por isso, em regiões mais delicadas, eu não podia abordar aleatoriamente qualquer pessoa na rua. Explicaram-me porque é que cheguei a ser ignorada. Como ninguém sabe quem está conectado ou não a actividades ilícitas, as pessoas evitam interacções com desconhecidos para se protegerem da ínfima possibilidade de serem consideradas cúmplices em crimes que não cometeram e, mais tarde, alguém apagar-lhes o rasto por qualquer suspeita atribuída por associação injusta.
No México, desconfia-se tanto de tudo e de todos que até, numa área rural, tentámos fugir da própria polícia e acabámos por ser interceptados. Além disso, a todo o instante, andávamos com uma carteira e um telemóvel falsos porque é o que tens de ter na tua posse se não quiseres ser verdadeiramente roubado. Por falso, entenda-se: um telemóvel secundário e uma carteira extra com algum dinheiro dentro para entregar durante alguma abordagem à mão armada.
À saída de Cuetzalan del Progreso conseguimos evitar um carjacking coordenado por um grupo de marginais apetrechados com catanas. Com um veículo alugado por cerca de um mês, várias foram as vezes que adentrámos algumas zonas vermelhas, mas conseguimos evitar ser vítimas de crimes organizados. Já um casal mexicano, com quem estabelecimentos uma relação de amizade, não se pode gabar do mesmo. Para além de um deles ter sido roubado com uma arma de fogo e de, noutra circunstância, o outro ter encontrado o seu automóvel danificado e sem a sua pasta de trabalho no interior ainda tiveram de escapar juntos a um tiroteio. No entanto, quando regressámos a casa, percebemos que o nosso cartão de crédito tinha sido clonado. Ainda bem que tínhamos o sistema de autenticação 3D Secure activado.
Tive o privilégio de conhecer e entrevistar um agente de operações especiais que, durante a fracassada guerra ao narcotráfico, ajudou a destruir um cartel de drogas. O agente De La Torre andava a investigar um caso de cadáveres embolsados. Ele tinha sido destacado para descobrir quem tinha assassinado e desmembrado alguns indivíduos por identificar. Ele tem de permanecer constantemente armado porque recebe com frequência ameaças de morte.
O México foi um autêntico carrossel de emoções inebriantes que me encheram de diversos estímulos. Vivemos aventuras atrás de aventuras neste país que, com toda a certeza, nunca sairá de nós.
A cidade que alimenta perdedores e deixa muitas pessoas arruinadas, de dia, tem um toque infantil, mas quando anoitece há uma explosão de luzes que enche Las Vegas de pecados. Felizmente, conseguimos sair de lá sem estourar as nossas economias. Em Boston, comi uma das iguarias que mais me surpreenderam nos EUA: a deliciosa sopa de moluscos. Alugámos uma pick-up e fizemos off-road pelos estados de Nevada, Utah e Arizona. No mês em que relaxámos por Miami, e desfrutámos de passeios pela Ocean Drive, houve dois tiroteios que resultaram em duas fatalidades. Se contabilizar a nossa viagem a Puerto Rico, então, já visitámos quatro vezes este país que já não nos autoriza a viajar ao abrigo do programa ESTA.
Este ano, a nossa autorização para viajar para os EUA foi revogada. A nossa viagem ao Iraque e à Síria, no contexto do conflito israelo-palestiniano, resultou numa investigação que não nos favoreceu. Para tornar o nosso caso possivelmente mais desfavorável: explorámos os pântanos da Mesopotâmia guiados por um jihadista.
Foi nos meus sentimentos que encontrei algumas respostas para tudo o que vivi neste continente e no cessar desta milagrosa chama da vida, agora, reconforta-me que o absoluto nada seja o único desenlace destinado à humanidade. Viver uma única vida é o que torna a vida tão extraordinária e esta foi a lição mais bonita que eu poderia ter aprendido.
Cláudia Viveiros