Jurista Rui Medeiros no debate sobre a Lei do Mar, em Ponta Delgada
Rui Medeiros, professor catedrático na Faculdade de Direito da Universidade Católica e sócio na área de Direito Público do gabinete de advogados Sérvulo e Associados, propôs ontem tratar a Lei do Mar em cinco mandamentos, durante a conferência ‘Reflexões sobre a Lei do Mar e o Simplex Urbanístico”, que decorreu em Ponta Delgada.
O primeiro mandamento, segundo Rui Medeiros, “é para dizer que sem surpresa a questão do mar esteve sempre no âmago da discussão autónoma.”
Como referiu, “o território e o espaço português com o mar é 40 vezes mais do que a superfície terrestre e é sabido que para esta expansão marítima os Açores são absolutamente determinantes.”
“Não é por acaso”, prosseguiu, que “logo na primeira versão dos estatutos dos Açores tinha uma formação ambiciosa que dizia que todos os bens do Estado situados no arquipélago eram bens de domínio público regional. E apenas ressalvava os bens que pertencessem à Defesa Nacional ou os bens que estivessem afectos a serviços públicos que não fossem classificados como património nacional.”
No entender de Rui Medeiros, “é certo que o domínio público marítimo é mais curto que o espaço marítimo regional. Ainda assim a ambição era clara. O domínio público marítimo era pertença do domínio público regional. Só que, como diz o povo, o Diabo está nos detalhes e, logo no início, o primeiro Presidente da Assembleia Legislativa dos Açores, o Dr. Álvaro Monjardino, veio explicar que, como se diz, os bens situados no arquipélago, (e ele acrescenta que o arquipélago são as ilhas e os ilhéus), que os Açores não tinham que entregar o domínio regional.”
Segundo o especialista, o Estatuto da Autonomia hoje “ultrapassou esta dificuldade porque há um artigo claro que diz que se integra no quadro regional, também, além das águas interiores, o mar territorial e a plataforma continental. Só que esta versão do estatuto, de 80, é uma versão que era demasiado ambiciosa, queria abraçar o céu e a terra. E claro que não resultou, porque a Comissão do Domínio Público Marítimo, o Conselho Consultivo da Autoridade Marítima e o Tribunal Constitucional chumbaram esta função. Para o Tribunal Constitucional a autoridade de domínio público cabe ao Estado e não pode deixar de depender, por imperativo constitucional.”
Rui Medeiros abordou, depois, um segundo mandamento para dizer que, de facto, “houve uma viragem na abordagem ao Mar com a muito importante terceira revisão do Estatuto da Autonomia. Não é demais exacerbar isto. Esta revisão mostrou o fogo e a profundidade da reflexão autonómica dos Açores. Muitas vezes desvalorizaram, mas esta revisão de 2009 tentou aproveitar todas as eventualidades da Constituição de 2004 e dar um quadro consistente e sólido à Autonomia incluindo no tratamento do espaço marítimo,” afirmou.
Depois de abordar a posição da Madeira, Rui Medeiros chega aos poderes de gestão do mar, e a legislação económica do espaço marítimo dos Açores “vem dizer que haverá gestão conjunta e que todos os poderes que o Estado exercer na plataforma continental e na zona económica exclusiva devem ser geridos em partilha com os Açores, para além da competência exclusiva para as actividades de extracção de minério para produção de energia.”
Esta era, no entender de Rui Medeiros, “uma solução completamente equilibrada assente numa distinção que a doutrina e a jurisprudência assumem e que a lei reconhece: uma coisa é a titularidade do domínio público e outra coisa é a gestão do domínio público. Uma coisa são os poderes primários inerentes à gestão da própria Autonomia, outra coisa são os poderes de gestão secundários. É a própria lei nacional que há muito reconhece isto,” disse.
O terceiro mandamento diz que os Estatutos da Autonomia, “em larga medida, ficaram em letra morta muito por força da jurisprudência do tribunal constitucional. Não há surpresa. A jurisprudência já tinha assassinado a revisão de 2004. A jurisprudência sempre desvalorizou o estatuto. O Estatuto de Autonomia que, constitucionalmente, é a lei ordinária mais importante, sempre foi tratado com o tribunal constitucional com absoluto desdém.”
E explica, depois, o posicionamento do TC. “O que o Tribunal Constitucional fez foi, em três acórdãos marcantes, praticamente ignorados, porque anulam-se esses acórdãos e volta-se aos Estatutos. Vale a pena conhecer esses acórdãos porque são em crescendo. O primeiro que é em 2014 evoca o Estatuto para declarar ilegal o decreto regional de 2012 que regulava as alterações de protecção, pesquisa e exploração de recursos geológicos e abolição das respectivas licenças. E neste primeiro acórdão de 2012 o Tribunal Constitucional diz que não é possível porque viola o estatuto de 2014 porque fala em gestão conjunta/partilhada. O decreto regional o que faz é todos os procedimentos e contratos administrativos previstos no diploma são partilhados exclusivamente pela Região. Ora isto viola a gestão conjunta. É pela primeira vez o Tribunal Constitucional a dar relevância aos estatutos.”
Segundo o especialista, o problema “vem nos dois acórdãos seguintes que se pronunciam sobre a Lei do Mar. Perante a Lei do Mar e o seu desenvolvimento de 2014 e 2015, que claramente abandona a lógica da gestão partilhada e que assume que a gestão partilhada (…) significa apenas ouvir a Região. O Tribunal Constitucional, perante isto, vem dizer no acórdão de 2016 que este regime é inconstitucional. É curioso porque este regime, expressamente, excluiu tudo o que tem a ver com os interesses de segurança do estado e defesa do Estado. Mas, apesar disto, o tribunal constitucional diz que toda esta ordenação que tem efeitos económicos, ambientais, etc., está indissociada à defesa do Estado.”
Rui Medeiros cita o Tribunal Constitucional quando diz que estão em causa “sempre poderes que se prendem com a soberania e que devem ser sempre constados. Há ‘N’ acórdãos em que se fala na soberania. É o papel do Estado. Por exemplo, diz-se que os espaços territoriais, a identidade do território regional, não deixa de ser espaços com naturais transmissão do território português. Nesta questão do espaço hídrico regional a soberania é um conceito chave. E quando, no inicio de 2021, a Assembleia da República decidiu alterar a Lei do Mar e dizer que os instrumentos de ordenamento do espaço marítimo nacional “são elaborados e alterados pelo Governo da República mediante a emissão de parecer obrigatório das regiões autónomas.”
Salvo matérias remetidas ao Estado, o Tribunal Constitucional, no tal acórdão de 2022, disse que” vamos esquecer da ressalva. É certo que o que verdadeiramente queríamos era a actual decisão: nada se podia fazer sem o parecer da Região e a decisão do Governo. Mas o Tribunal Constitucional disse que isto ponha em causa o poder político.”
Há declarações de voto no Tribunal Constitucional que dizem o seguinte: “nem sequer é possível que a Região reivindique algo para além das 180 milhas. Viola a lógica do fundamento de Autonomia geográfica. Para lá das 180 milhas é muito longe da costa.”
E Rui Medeiros chega ao quarto mandamento: (…) A Comissão Eventual para a Reforma da Autonomia o que fez “foi alterar o artigo 84 que fala num domínio público do Estado e onde diz que as regiões autónomas têm direito a uma opção constitutiva no ordenamento e gestão das zonas marítimas adjacentes.”
Como sublinhou, “os tempos não são favoráveis ao aprofundamento da Autonomia. O contexto político europeu e o contexto da vizinha Espanha que sempre marcou. A relação entre Portugal e Espanha, que sempre andou de paredes meias, aconselha a tudo menos a uma revisão, porque as pessoas têm medo do que se faz em Espanha.”
E o quinto e último mandamento foi considerado por Rui Medeiros como “absolutamente fundamental que a Região não abdique do seu direito, não abdique do seu Estatuto. A verdade é que vai ser possível pensar em novas formas e formas imaginativas de dar cimento a esta gestão.”
Citou, a propósito, o que disse o Secretário do Mar, Rui Pinho e considerou “interessante” a comissão que preparou o plano de situação de Ordenamento do Espaço Marítimo dos Açores “e, se calhar, dentro de uma lógica de autonomia de cooperação, o espaço vai passar por pensar em esquemas organizacionais ou procedimentais que permitam concretizar esta gestão comum.”
“Se calhar vamos ver que evoluímos para esquemas organizacionais que permitam um espaço de diálogo, sem receios. E para esse efeito uma comissão que criada pelo Estado e pela Região incluindo propostas legislativas, pode ser a única forma de concretizar algo que é absolutamente fundamental para os Açores, mas porque os Açores são Portugal, para Portugal, que é o enquadramento pleno de um espaço regional e que pode ser fonte de desenvolvimento para os Açores, beneficiando todos.”
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‘A relevância da Lei do Mar para os Açores’ começou por ser realçada por José Manuel Sérvulo Correia, professor na Faculdade de Direito na Universidade de Lisboa e sócio fundador da Servulo e Associados.
Antes interveio o Secretário do Mar, Rui Pinho, que salientou “a firme determinação do Governo dos Açores de, junto do novo Governo da República, inaugurar “um novo modelo de autonomia para o século XXI: uma Autonomia de cooperação, em que todos os entes se entreajudam no exercício dos objectivos comuns, onde a verdadeira gestão partilhada entre a República e as regiões autónomas consubstancie-se na união das vontades de ambos os níveis de poder público para se alcançar uma solução final justa. Tal corresponderá, ainda que com diferentes figurinos de intervenção, a uma co-decisão de intervenção no ordenamento e gestão dos espaços marítimos regionais açoriano e madeirense”.
Frederico Figueiredo