Médico endocrinologista João Anselmo no Dia da Luta Contra a Obesidade
Qual a importância de se assinalar o Dia Nacional de Luta Contra a Obesidade?
Médico Endocrinologista João Anselmo – Portugal foi dos primeiros países da União Europeia a reconhecer a obesidade como uma doença e isto aconteceu há 20 anos, isto é, em Março de 2004. A título de exemplo, a Associação Médica Americana só reconheceu a obesidade como doença em 2014, cerca de 10 anos depois da decisão portuguesa. Desde então, o penúltimo Sábado do mês de Maio é considerado o Dia Nacional de Luta Contra a Obesidade, uma efeméride estabelecida pela associação de doentes obesos e ex-obesos (Adexo) com o patrocínio da Direcção Geral de Saúde. Este dia tem como objectivo sensibilizar a população para o problema da obesidade e das suas consequências. Note-se que o Dia Mundial da Obesidade, que se comemora em 4 de Março 2020, só foi instituído pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2015. A Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade (SPEO) integrou o consenso da OMS que adoptou o dia 4 Março como a principal referência na luta contra a obesidade. Mas neste aspecto, é caso para dizer que todos os contributos e oportunidade são bem-vindos no sentido de alertar a população para o risco do excesso de peso e da obesidade e para as suas complicações entre as quais salientamos a diabetes, a hipertensão e a dislipidémia que são os principais responsáveis pela elevada mortalidade cardiovascular na nossa Região.
Qual a taxa de obesidade nos Açores face à média nacional?
De acordo com os dados referidos pelo Plano Regional de Saúde, Açores 2030, 33% da população adulta açoriana apresenta obesidade, isto é, tem um Índice de Massa Corporal – IMC – acima de 30 kg/m2. Por sua vez, 39% apresenta excesso de peso (Índice de Massa Corporal entre os 25 e os 30 Kg/m2). Podemos assim afirmar que 69% dos açorianos têm um peso acima do desejado, dos quais cerca de 1/3 são obesos.
No que toca à obesidade infantil, os Açores estão à frente do resto do país.
Em relação à obesidade infantil e de acordo com o estudo COSI/Portugal, uma iniciativa da Organização Mundial Saúde/Europa, 43% das crianças açorianas entre os 6 e 8 anos avaliadas durante o ano lectivo de 2021/2022, apresentavam excesso de peso e 18% % eram obesas. Entre as regiões com uma prevalência de obesidade infantil acima da média nacional que é de 13,5%, estavam os Açores com 18%, a Madeira com 14,9% e o Alentejo com 13,9%. A região do Algarve foi a que apresentou uma menor prevalência de obesidade infantil de apenas 11,5%, De salientar que o grupo etário dos 6 aos 8 anos tem uma particularidade especial uma vez que precede o inicio da puberdade e coincide com o segundo ressalto adipocitário (período de rápido de crescimento da gordura corporal), pelo que se torna importante a introdução de estratégias de prevenção da obesidade especialmente durante este período do desenvolvimento das crianças.
Como descreve a situação actual da obesidade nos Açores? Quais são os principais desafios na gestão dessa condição?
Preocupante, absolutamente preocu-pante em particular a obesidade infantil. O novo Plano Regional de Saúde, Açores-2030, considera prioritária esta área de intervenção, a meu ver de forma muito realista. As metas estabelecidas para 2030 apontam para uma redução da percentagem de crianças entre os 6 e os 8 anos com excesso de peso (incluindo obesidade) para valores inferiores a 30%. Relembro que, actualmente, esta percentagem é de 43%. Julgo que estas metas não poderão ser atingidas sem medidas restritivas, isto é, sem uma intervenção direta nos hábitos alimentares das crianças e das famílias açorianas em geral. Isto significa que, para atingir as metas propostas, têm de ser implementadas restrições à comercialização dos produtos processados com alto teor de gordura e açúcar; Mai-or carga fiscal sobre alimentos e bebidas altamente processados e calóricos; Utilização de rótulos de advertência nas embalagens deste tipo de alimentos, com uma visibilidade maximizada. Mas são também recomendáveis medidas de discriminação positiva, como um “cabaz de alimentos saudáveis” incluindo produtos hortículas e fruta, aliás, a exemplo do que foi estabelecido nos últimos anos para combater a subida de preços e a inflação. Estas medidas são indispensáveis para atingir as metas propostas no Plano Regional de Saúde. Necessitamos também de aumentar a literacia na saúde, de fomentar a prática de exercício físico, mas neste momento há decisões no curto prazo que terão de ser tomadas sob pena de a obesidade infantil manter a sua curva ascendente nos Açores em contraciclo com a evolução nacional e de toda a Europa. Seria ridículo que os Açores passassem a ser reconhecidos como uma espécie de “gueto” da obesidade.
Quais são os factores que contribuem para a prevalência crescente da obesidade na Região?
Entre os factores “obesogénicos” mais relevantes na Região, salientamos:
1) A ausência ou curta duração do aleitamento materno (<1 mês);
2) O consumo excessivo de alimentos ultra processados densamente calóricos, ricos em gorduras, açúcares e sódio;
3) A inactividade física, comportamento sedentário e sono inadequado por excessiva exposição à televisão e telemóveis.
Apesar da melhoria registada nos últimos anos, a taxa de amamentação nos Açores continua a ser a mais baixa do país, isto é, apenas 73% das puérperas amamenta até um mês. Por sua vez a taxa, de aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses é de 13.2%, uma percentagem baixíssima no contexto nacional e europeu. Sabe-se que o aleitamento materno é um factor de proteção da obesidade infantil, pelo que o sucesso da amamentação poderá ser uma medida preventiva no combate à obesidade em gerações futuras. Temos mesmo que exorcizar os demónios que teimam em condicionar os nossos rácios de amamentação.
Nos Açores, o consumo de refrigerantes per capita é cerca de dobro da média nacional. Isto representa uma sobrecarga de açúcares, sob a forma de hidratos de carbono de absorção rápida, absolutamente inacreditável para as nossas crianças e adolescentes. É essencial promover uma política de preços que impeça as grandes superfícies de vender refrigerantes a preços inferiores aos da água engarrafada.
Outro exemplo é o consumo per capita de batatas fritas de pacote que já atingiu os 4 kg/ano, aproximando-se dos cerca de 6 kg/ano nos Estados Unidos. É necessário introduzir um rótulo sanitário neste tipo de alimentos. De facto, a indústria alimentar é tão poderosa como as tabaqueiras no século passado, refiro-me ao século XX, claro. Dispõem de meios de divulgação e marketing de tal forma eficazes e poderosos que tornam absolutamente ridículos e obsoletos os nossos conteúdos de prevenção da obesidade.
Em 2004, Portugal reconheceu a obesidade como uma doença. Contudo, subsiste a ideia estereotipada de que ser obeso é uma opção individual baseada em maus hábitos alimentares e na preguiça de mudar. Porquê?
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estabeleceu os critérios actuais de obesidade e excesso de peso em 1996, isto é, há pouco mais de 25 anos. Até então existiam diversas formas de quantificar o excesso de peso, com critérios subjectivos variáveis, às vezes dentro do mesmo país. A decisão do Governo português em 2004 de considerar a obesidade como uma doença foi, por isso, pioneira e corajosa. Mas seguiram-se anos de indefinição que comprometeram a tentativa inicial de travar a evolução epidémica da obesidade que a OMS classifica como a pandemia do século XXI. Por exemplo, nos últimos anos, assistimos à introdução no mercado de medicamentos altamente eficazes no controlo da obesidade, mas que não foram ainda aprovados em Portugal para o tratamento desta doença. É óbvio que devemos optar, em primeiro lugar, pelas medidas de higiene alimentar e de exercício físico, mas quando elas não são suficientes temos que ter alternativas.
A obesidade já foi considerada uma manifestação de bem-estar e prosperidade sobretudo durante o seculo XVII e XVIII, altura do célebre epitáfio, gordura é formosura. Mas, nas últimas décadas, a obesidade tem cada vez mais uma conotação pejorativa, considerando-se muitas vezes os obesos como “preguiçosos e gente com falta de vontade”. Há, inclusivamente, relatos de segregação social e profissional de pessoas obesas. Digamos que é um rótulo pesado para as pessoas de peso. Condicionar as pessoas com rótulos pejorativos sempre foi uma forma de as coagir, uma forma de as excluir social e profissionalmente. Numa altura em que sociedades modernas se tentam libertar desde tipo de constrangimentos é absurdo que a obesidade venha a configurar e a consubstanciar atitudes discriminatórias. A obesidade é uma doença multifactorial para a qual contribuem factores genéticos, metabólicos, socias e ambientais. Mas os rótulos podem levar o individuo a pensar que a culpa é só dele associando-a à falta de vontade. É um ciclo vicioso perigoso e com profundas implicações no bem-estar físico e emocional das pessoas.
Vivemos todos no mesmo ambiente, mas nem todos desenvolvemos obesidade. Porquê?
Porque há uma genética favorável ao ganho de peso e à acumulação de gordura. Ao longo de história da humanidade tem havido períodos de abundância alimentar, alternando com períodos de carestia prolongada. Os sobreviventes dos períodos de grande carestia alimentar são os indivíduos com maior eficiência metabólica, isto é, aqueles cuja eficiência metabólica lhes permitiu sobreviver à fome e carestia alimentar. Quando estes indivíduos ou os seus descendentes se deslocam para sociedades de abundância como é a nossa, a sua eficácia metabólica é redundante, o que os leva a acumular gordura e a ficarem obesos. Este aspecto foi documentado pela primeira vez na comunidade japonesa emigrada para os Estados Unidos, mas tem sido reproduzido em muitas outas circunstâncias, quer em populações migrantes ou não. Assim, e para responder à sua pergunta, há pessoas que engordam com muito maior facilidade porque são mais eficientes do ponto de vista metabólico. Estes indivíduos resistem melhor em circunstâncias de privação alimentar, como nas grandes cirurgias, em estados comatosos traumáticos ou de calamidade social. Esta interpretação não é propriamente do domínio da genética clássica, mas da epigenética, uma ciência que estuda a modulação dos genes por acção do ambiente. O nosso país, e particularmente os Açores, sofria, até há 50 anos, de enormes carências alimentares, com uma mortalidade infantil acima dos 90 por 1000. Podemos dizer que os que sobreviveram até nós, são aqueles com maior eficiência metabólica a qual se manifesta nos nossos dias por um ganho ponderal.
Existe um conjunto de genes que estão associados à obesidade. Estes genes são herdados dos nossos pais?
Temos estudado algumas famílias açorianas com alterações genéticas, regra geral monogénicas, que favorecem a obesidade. São habitualmente doenças raras. No cômputo geral, estas doenças hereditárias são responsáveis por cerca de 10% dos casos de obesidade infantil severa. Não têm, por isso, uma representatividade significativa na obesidade em geral. A obesidade será certamente condicionada por múltiplos genes, ou seja, uma doença genética complexa ou poligénica. Nos últimos anos tem também aumentado o número de investigadores que acreditam que a obesidade é uma doença comportamental em que os padrões psico-sociais se sobrepõem às alterações de índole genética ou epigenética.
É possível avaliar o risco de vir a desenvolver a obesidade?
O risco individual de vir a ser obeso não é ainda previsível, mas em termos sociais, ou seja, em grandes populações, as extrapolações estatísticas permitem antever o futuro de uma forma razoável. Indicadores como o peso das crianças entre os 6 e 8 anos, são altamente preditivos do que pode acontecer a toda uma sociedade nos 20 anos seguintes e neste aspecto as nossas perspetivas não são muito animadoras.
É possível saber qual é a causa da obesidade através de uma consulta médica? Como se faz o diagnóstico?
O diagnóstico da obesidade, tal como é actualmente reconhecido pela OMS, é feito através do cálculo do índice de massa corporal, que se obtém dividindo o peso do doente pelo quadrado da sua altura (Peso em Kg/2altura em metros). O peso, só por si, não garante um carácter discriminatório eficaz, uma vez que é influenciado pela altura. Obesidade não é assim o mesmo que corpulência.
Só em situações muito particulares temos aquilo a que chamamos uma obesidade secundária cuja causa é conhecida, como por exemplo na doença de Cushing ou no hipotiroidismo crónico. Na maioria dos pacientes a causa da sua obesidade não é identificável, ou pela menos ainda não é conhecida. A questão fundamental é de saber qual a razão que leva as pessoas a ingerir sistematicamente mais calorias do que aquelas que realmente necessitam. Haverá uma avaria no termostato, isto é, nos centros cerebrais que controlam a fome e o apetite? Será esta avaria a nível dos sistemas periféricos que transmitem ao cérebro a informação sobre a saciedade? São estas as questões científicas mais pertinentes no âmbito do estudo da obesidade.
A obesidade é uma doença crónica? O tratamento é para toda a vida? Que medicamentos existem para a obesidade?
O ganho ponderal resulta da ingestão crónica excessiva de calorias em relação àquilo que se gasta. Há por isso um ganho positivo e persistente de energia que se acumula sob a forma de gordura. A obesidade persiste enquanto se mantiver este desequilíbrio e é neste sentido que é uma doença crónica. Na maioria dos casos o indivíduo não tem consciência do excesso de calorias que consome, pelo que a primeira abordagem do doente obeso consiste em confrontá-lo com este excesso do qual perdeu a consciência. É neste sentido que a vertente comportamental do tratamento da obesidade faz todo o sentido e é por vezes muito eficaz. Quando falham as tentativas de alterar o estilo de vida do indivíduo, passamos à fase seguinte que é a abordagem farmacológica e por fim, isto é, já em fim de linha, temos a cirurgia.
Qual o papel da falta de literacia alimentar? Como podemos suprimir esta falha?
A literacia alimentar é a mãe de todas as virtudes no combate à obesidade, bem como na promoção da saúde e do bem-estar das populações. Os grandes números (“Big Data”) apontam no sentido de que a obesidade é uma doença com muito maior prevalência nas classes mais desfavorecidas, com menos escolaridade e rendimentos, nomeadamente nos bairros pobres das grandes cidades. O que faz toda a diferença é a informação que têm sobre os alimentos e a capacidade de tomar decisões no dia-a-dia em relação aos estilos de vida mais saudáveis. Sem sentido crítico, os cidadãos tornam-se presa fácil da manipulação da indústria alimentar. O reforço da literacia alimentar nas escolas, nos programas de televisão, no meio laboral são essenciais na prevenção da obesidade. Cidadãos melhor informados serão necessariamente cidadãos mais capazes de tomar decisões acertadas, contribuindo para melhores resultados em saúde.
Quais são as perspectivas para o futuro no combate à obesidade nos Açores?
A luta contra a obesidade não se pode confinar a um modelo arregimentado nos serviços de saúde que dificilmente poderá mobilizar a comunidade para hábitos de vida saudáveis.
As autarquias têm um papel fundamental na prevenção da obesidade e na promoção da saúde em geral, por exemplo, ao promoverem a pedonalidade, as ciclovias, os equipamentos desportivos. Para além disso, estão na primeira linha dos licenciamentos de estabelecimentos de fast-food, bebidas e similares, bem como na promoção da atividade física e no apoio aos clubes desportivos que, actualmente, desempenham um papel fundamental, que se sobrepõe às escolas ou que as substitui em muitos casos. É neste sentido que as autarquias devem ser consideradas parceiros estratégicos na luta contra a obesidade. Por sua vez, a escola tem um papel fundamental na educação alimentar e na implementação de hábitos alimentares saudáveis. O desenvolvimento de currículos escolares dirigidos à alimentação é já uma realidade desde há alguns anos. Mas nunca será demais lembrar o papel estruturante da família em particular dos pais que não devem adoptar o laxismo alimentar como forma de facilitar o relacionamento com os filhos. Educar é ensinar a fazer escolhas.
Daniela Canha