Sempre que deixo a ilha de São Miguel, um pedaço de mim fica ali e em cada pedra que toco, permanece o meu gesto de amor. Pelas manhãs saio à deriva, porque na Cidade dos Poetas não se fazem programas. A beleza está nos encontros inesperados ou no trespassar as portas das igrejas, esplendorosas, onde crentes e não crentes se cruzam numa peregrinação de fé e esperança. Na igreja matriz ouvi, no domingo último, vozes belíssimas, entoando um cântico de exaltação. Quando atravesso as vilas, com as suas pequenas casas, às vezes, ladeadas por espantosas casas solarengas, penso sempre: que o progresso selvagem, submetendo a natureza à economia, não se atreverá a chegar aqui. Já me incomoda ver, porque é uma interferência na planície, tão verde e viçosa, alguns letreiros de publicidade, nem menos acho adequado, numa urbe que tão hospitaleiramente nos recebe, que é fidalguia de um povo, o barulho infernal, ensurdecedor, na romântica Rua Hintze Ribeiro, que, a partir das quartas-feiras até aos sábados, não deixa que durmam, em paz, os visitantes, hospedados ali nos hotéis. O turismo, já escrevi muitas vezes, tem de ter regras. Não podemos, em nome dele, faz-se tudo quanto é altamente prejudicial ao mesmo. As discotecas devem funcionar em lugares próprios e não nas ruas, até às 6 horas da manhã. Os Açores é, ainda, um dos poucos refúgios da Europa, onde as noites proporcionam segurança e paz. Estes dois fatores, das nossas ilhas, são garantia para atração de turistas. Diferenciam-nos dos outros destinos. Não os estraguemos.
Escrevo sob a emoção forte que me provoca a Lagoa do Fogo. Perdi já a conta de quantas vezes ali estive. Porém, quando ali chego, é como se nunca tivesse visto aquele lugar divino, onde os meus olhos mais se valorizam perante a paisagem mergulhada no mais profundo dos silêncios. Quando cheguei, à Lagoa, domingo último, o nevoeiro teimava roubar a visão daquela natureza que um dia Deus desenhou para presentear um povo, compensado, com o amor. Um povo que devia defender aquele património, testemunho de uma natureza exaltante.
Pessoa disse que a natureza era a diferença entre a alma e Deus. É esta simbiose que me fez refletir. Quando desci ao terceiro miradouro, aí o Sol derrotou o nevoeiro e sob a cúpula do céu espraiava-se a vasta amplitude das águas solitárias. Aquela luz solar fez da calmaria do lago um espelho imenso, enquanto o meu olhar se inquietou e correndo, como gaivota sem rumo, de um lado para o outro, para açambarcar tudo quanto via, porque a beleza esmaga-me, embebeda-me e atira-me para a utopia: aqui começa um Mundo Novo. Um mundo mais solidário, sem guerras, sem ódios. Nós é que decidimos que assim seja. Para que o mal triunfe basta que não se reaja…
Os meus amigos, mais chegados, perguntam-me: porque vais tantas vezes a São Miguel? Respondo-lhes: necessito matar as saudades de encontrar a família Neves que adotei como minha, porque, desde o primeiro dia que a encontrei, recebeu-me com amor. Na realidade, sem eles não voltaria, tantas vezes, a São Miguel, embora esteja sempre enamorado pelas paisagens e pelos amigos. Mas são eles, a Sra. D. Ermelinda, a Teresa, o Pedro e o Sr. Joaquim, a razão deste meu voltar frequentemente, por que foram eles que me ajudaram a descobrir e a amar os Açores, com os seus gestos que se tornaram numa amizade que enriquece as nossas almas e jamais morrerá.
Aqui, nestas montanhas, planícies e nos trilhos, corro livremente, neles leio as histórias, de tantas gerações, que os traçaram sempre nas razões de uma relação-apego à terra, cujas raízes das árvores, são as veias onde corre o sangue de homens e mulheres, embrulhados nos sonhos que os faziam heróis de vidas tão difíceis, mas tão enriquecedoras, humanamente, por isso, destruir o que eles construíram e conservaram, é desrespeitá-los.
Mas o fascínio da ilha não está só na espetacularidade das paisagens. Há muitos atrativos que nos prendem: os convívios literários em casa do prestigiado poeta Vítor Meirelles, que na sua discrição esconde a riqueza da sua poesia. Levei à sua casa um jovem casal: o Ricardo, filho da Nininha Jardim, e a Susana, engenheira agrónoma, duas pessoas maravilhosas que abandonaram o continente e vivem agora no silêncio do Nordeste, embrulhados numa paisagem que os fazem felizes. Ali estavam o Joel Gordinho, que pela primeira vez visitou São Miguel, e a Dra. Ana Franco, escritora, que, sendo micaelense, vive em Lisboa. Uma açoriana de uma simpatia extraordinária, que logo conquistou os convivas reunidos no jantar, confecionado pelo poeta. Um menu excelente. A escritora, com o seu discurso fluente, estruturado na sua cultura versátil, encantou-nos, bem como a sua beleza e elegância. A determinada altura, pus-lhe uma questão, se a ilha, vivendo ela em Lisboa, lhe fazia falta. “Naturalmente”, por isso, vinha frequentemente a São Miguel, porém como fez a sua vida de professora e escritora em Lisboa, ali se fixou, mas o seu coração está bem enraizado em São Miguel.
Quis a Teresa fazer um jantar para assinalar a minha presença “na minha tão amada Cidade dos Poetas”. Reuniu um grupo de amigos, no restaurante PH, não distante do seu hotel, Casa Hintze Ribeiro, decorado pela nossa amiga Nini. Reunidos no restaurante: Vítor Meirelles, Ricardo e Suzana, Nininha Jardim, Isabel Portugal, Ana Franco, Teresa Neves, Joel Gordinho e Armando Moreira. Uma noite agradabilíssima de um convívio onde se falou de poesia, literatura e turismo. Uma noite de amizade. Na parte da tarde, o escritor José de Mello, brindou-nos com um five o’clock tea, onde estavam presentes outros amigos. O Dr. José de Mello, tem desenvolvido, na sua ilha, uma notável ação, na área da cultura, merecendo, por isso, a admiração dos concidadãos.
Quarta-feira, chegou o momento do regresso à Madeira, depois de três dias de uma estadia intensamente vivida entre amigos. Nunca é fácil deixar os amigos. Eu tinha sentido a alegria das saudades da chegada, agora, vivo a tristeza das saudades da partida.
João Carlos Abreu