Actualmente, na generalidade, um Médico de Família é responsável por cerca de 1.900 utentes para 40 horas semanais. Para Maria Teresa Albergaria, médica especialista em Medicina Geral e Familiar da Unidade de Saúde da Ilha de São Miguel, “as extensas listas de utentes atribuídas a cada Médico de Família condicionam uma enorme dificuldade em garantir cuidados de qualidade e com a brevidade desejável.” A médica aponta, ainda, o excesso de burocracia, que impede de canalizar tempo para aspectos verdadeiramente relacionados com a saúde do utente e a necessidade de um sistema informático transversal aos cuidados de saúde primários e hospitalares. Maria Teresa Albergaria alerta para a carência de Médicos de Família existente em algumas zonas dos Açores, que nos próximos tempos será agravada por uma nova vaga de aposentações, bem como a saída crescente de médicos para o sector privado e para o estrangeiro. A médica de família defende que é necessário pensar em incentivos de fixação para os médicos, “que não passam exclusivamente por questões monetárias, e não apenas para os médicos recém-contratados.”
Correio dos Açores – Que relevância atribui ao Dia Mundial do Médico de Família?
Maria Teresa Albergaria (Médica de Medicina Geral e Familiar no Centro de Saúde da Lagoa) – O Dia Mundial do Médico de Família é celebrado no dia 19 de Maio, desde 2010, e tem como objectivo relembrar o papel central dos médicos especialistas em Medicina Geral e Familiar na gestão dos cuidados de saúde do utente, bem como destacar a importância da cobertura universal dos cuidados de saúde primários e do acesso a Médico de Família, para que se possa garantir cuidados abrangentes, de proximidade e de qualidade, ao longo de todas as fases da vida. A Medicina Geral e Familiar e os cuidados de saúde primários são o primeiro ponto de contacto da pessoa com os cuidados de saúde e devem ser a base do Serviço Regional de Saúde, apostando na promoção da saúde e prevenção da doença e para que o sistema funcione e seja sustentável.
Como médica de Medicina Geral e Familiar, uma área muito abrangente, em que medida é possível atender o paciente na sua amplitude física, psicológica e familiar?
O Médico de Família é o gestor dos problemas de saúde da pessoa e da sua família. Gere doenças crónicas e agudas, tanto físicas, como mentais, bem como problemas sociais e familiares, e garante cuidados que previnam o aparecimento de doenças e promovam a saúde. Este seguimento é feito ao longo de todas as fases da vida da pessoa e esta continuidade de cuidados demonstra melhores resultados em saúde e menores taxas de mortalidade global, como o evidenciam vários estudos.
Os Médicos de Família, após terminarem o curso de seis anos de Medicina, têm um ano de formação geral e quatro anos de formação específica (especialidade). Durante o período desta formação específica, têm estágios em várias áreas hospitalares como Psiquiatria, Pediatria, Ginecologia/Obstetrícia, Serviço de Urgência, entre outras. Paralelamente, mantêm contacto regular com os cuidados de saúde primários, permitindo integrar os conceitos teóricos e técnicos das várias especialidades médicas e cirúrgicas com as características da Medicina Geral e Familiar, onde os cuidados são centrados na pessoa e não na doença, considerando o indivíduo em toda a sua vertente biopsicossociocultural. Na abordagem centrada na pessoa está implícito considerar a família e a comunidade onde está inserida, tanto no diagnóstico, como no plano de cuidados, tendo em conta os determinantes sociais de saúde, tais como factores sociais, económicos, culturais, étnicos, psicológicos, entre outros.
Quais são os principais desafios enfrentados pelos Médicos de Família, actualmente, nos Açores?
As extensas listas de utentes atribuídas a cada Médico de Família condicionam uma enorme dificuldade em garantir cuidados de qualidade e com a brevidade desejável; o problema crónico do excesso de burocracia, que nos impede de canalizar tempo para aspectos verdadeiramente relacionados com a saúde do utente; a necessidade de um sistema informático transversal aos cuidados de saúde primários e hospitalares seria uma forma não só de garantir a continuidade de cuidados, diminuir gastos desnecessários – de tempo, financeiros, entre outros –, e garantir maior segurança, tendo em conta a partilha de informação entre todos os profissionais de saúde que prestam cuidados ao utente; a importância de informatizar processos como a partilha de informação clínica entre os vários níveis de cuidados, pedidos de consultas hospitalares, evitando extravio de muita informação relevante que ainda se faz em papel e por intermédio do utente; falhas diárias nos sistemas informáticos, condicionando atrasos e dificuldade na resposta imediata às necessidades do utente; a importância de adaptar estes mesmos sistemas informáticos às necessidades dos profissionais de saúde; a existência de inúmeras plataformas informáticas necessárias para a realização da consulta – seja para emissão de certificados de incapacidade temporária para o trabalho, rastreios oncológicos, realização de referenciações, entre outras –, que não comunicam entre si e não partilham informação.
Para além disso, há a necessidade de revisão das convenções dos exames complementares de diagnóstico com o objectivo de reduzir o tempo de espera para a sua realização, bem como a importância de serem contemplados alguns que ainda não estão disponíveis. No que se refere à orgânica do trabalho, a existência em número muito reduzido de Núcleos de Saúde Familiar, apesar de preconizados em legislação de 2015, onde se pretende promover trabalho de equipa (um médico, um enfermeiro e um assistente técnico) com ganhos em saúde conhecidos. Por outro lado, as carências de outros profissionais de saúde potenciam uma maior sobrecarga para os Médicos de Família, sendo a articulação e trabalho em equipa preponderantes para a qualidade dos cuidados de saúde. A carência de Médicos de Família em algumas zonas dos Açores, que nos próximos tempos será agravada por uma nova vaga de aposentações, bem como a saída crescente de médicos para o sector privado e para o estrangeiro, evidencia a necessidade de pensar em incentivos de fixação, que não passam exclusivamente por questões monetárias, e não apenas para os médicos recém-contratados. Outro dos desafios é a necessidade de actualização e formação contínua na Medicina actual, que tem como constrangimento a nossa dispersão geográfica, mas que ainda assim tem sido parcialmente colmatada com a possibilidade de formação à distância, em regime online, entre outros. Os desafios são ainda maiores para os colegas que exercem em ilhas sem hospital.
Estes são alguns dos desafios e constrangimentos com que nos confrontamos no nosso dia-a-dia, mas que acredito que progressivamente serão ultrapassados tendo em vista a excelência dos cuidados a toda a população.
Em termos gerais, as listas dos médicos de Medicina Geral e Familiar têm quantos utentes? Este número ultrapassa o razoável?
A generalidade dos Médicos de Família é responsável por cerca de 1.900 utentes, para 40 horas semanais. Acresce o facto de a maioria dos Médicos de Família ter ainda outros cargos, como a participação em equipas de saúde, realização de trabalho em unidades de urgência e de cuidados continuados, cargos de chefia, entre outros. Penso que facilmente se percebe que é um número francamente acima do razoável para que se possam garantir cuidados de qualidade.
É comum ouvir que os médicos de família estão sobrecarregados de trabalho devido ao elevado número de utentes. Como é possível melhorar o equilíbrio entre o número de utentes e o tempo disponível para consultas, garantindo um atendimento mais atempado?
Sem dúvida que é urgente a necessidade de reduzir o número de utentes por Médico de Família, não é possível garantir cuidados de qualidade a 1900 utentes. Além disso, e mais do que considerar o número absoluto de utentes, é muito relevante considerar outros aspectos como as características dos utentes, por exemplo a idade ou a existência de patologias crónicas. Um médico que tem uma lista de utentes com muitos idosos, com patologias crónicas, e/ou crianças, com menos de dois anos, terá muito maior consumo de consultas comparativamente a outro que tenha essencialmente adultos saudáveis.
A redução e ajuste das listas de utentes será sinónimo de melhoria na qualidade dos cuidados prestados, garantindo mais tempo para gestão das patologias agudas e crónicas, bem como permitindo investir mais tempo na prevenção das doenças e promoção da saúde, muitas vezes considerado secundário, mas que deverá ser o foco de intervenção dos cuidados de saúde primários e que se repercutirá em ganhos em saúde com uma população cada vez mais saudável e com melhor qualidade de vida.
Ao nível da Medicina Geral e Familiar, a relação médico-paciente deve ser mais próxima. Consegue realmente conhecer os pacientes e as suas famílias durante as consultas e, assim, realizar uma avaliação abrangente?
O Médico de Família inicia uma relação com a pessoa e a sua família ainda antes do nascimento, com o seguimento da gravidez, durante toda a vida, e mesmo depois da morte com o acompanhamento dos familiares. Nesta sequência estabelece-se uma relação próxima e de confiança, só possível porque o Médico de Família conhece o contexto daquela pessoa, na sua família e na comunidade onde está inserida, e, portanto, permite cuidados personalizados àquela pessoa/família.
Pode partilhar alguma experiência que a marcou enquanto médica de família, que ilustre a importância dessa função?
São inúmeras as situações que me marcaram, apesar da minha ainda curta experiência profissional. São diários os exemplos de resiliência e de coragem a que assisto, que me permitem relativizar situações menores e que são verdadeiros ensinamentos de vida. Por outro lado, apesar da enorme sobrecarga que existe no nosso dia a dia, é muito gratificante perceber a diferença que fazemos na vida das pessoas.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca o papel da família na promoção da saúde e bem-estar. Da sua experiência, até que ponto a história familiar é relevante para compreender a saúde do paciente e identificar potenciais problemas de saúde?
A família pode promover saúde e bem-estar, mas também pode ser fonte de doença. Importa ao Médico de Família conhecer a rede de suporte familiar; as relações entre os familiares mais próximos; os elementos de referência da pessoa; com quem vive, particularmente em idosos e crianças; a existência de problemas de saúde na família que possam ter impacto na saúde da pessoa, de forma directa ou indirecta, para que se possa reforçar cuidados preventivos ou intervir tentando minimizar o impacto de determinadas doenças. Além disso, o acompanhamento dos vários elementos da família pelo Médico de Família permite conhecer os seus hábitos de vida. Famílias com elementos que, por exemplo, tenham hábitos alimentares saudáveis e que não sejam fumadores têm maior probabilidade de servir como modelo para as crianças desta família adoptarem estes estilos de vida saudáveis. Por outro lado, é também frequente os utentes procurarem-nos por questões/conflitos familiares, que são desencadeantes de sintomas físicos e mentais. A mesma doença pode ter prognósticos diferentes em função da família onde acontece.
Há quem defenda que a Medicina Geral e Familiar deve colaborar estreitamente com outras especialidades médicas. Na sua opinião, essa colaboração é viável nos Açores?
O Médico de Família é a porta de entrada do utente no Sistema Regional de Saúde e, sempre que se justifica, faz a gestão e articula com outras especialidades médicas e cirúrgicas. Durante todo o processo e após a alta das consultas hospitalares, o utente mantém seguimento com o seu Médico de Família. A Medicina Geral e Familiar tem de colaborar e colabora diariamente com as outras especialidades médicas. Trabalhamos todos com o mesmo objectivo: promover a saúde do utente. Contudo, seria mais profícuo e sustentável se existisse um sistema de informação comum a todos os profissionais de saúde. Além da articulação hospitalar, a coordenação de cuidados contempla também a integração de outras áreas fundamentais neste processo como a Enfermagem, Serviço Social, Psicologia, Nutrição, Fisioterapia, entre outras.
Dada a natureza complexa da Medicina Geral e Familiar e as múltiplas variáveis envolvidas, acredita que as consultas devem ser mais prolongadas e menos condicionadas pelo tempo, a fim de garantir um melhor desempenho?
A Medicina Geral e Familiar faz a gestão de todas as queixas do utente, o controlo de doenças crónicas e agudas, tanto em termos de diagnóstico, de tratamento como reabilitação, bem como a promoção de cuidados preventivos. Deste modo, o tempo disponível para cada consulta é, com muita frequência, limitado e insuficiente para gerir todos estes aspectos, mas vamos gerindo em função de cada situação e do conhecimento que temos de cada pessoa/família.
Que mensagem quer deixar neste dia?
Neste dia, importa pensar na importância de garantir acesso universal e real a Médico de Família nos Açores, sendo estes grandes aliados na implementação de medidas preventivas, cuidados de qualidade e de proximidade. Por outro lado, é fundamental investir na literacia em saúde da população como forma de obter ganhos em saúde, termos uma população cada vez mais saudável e com melhor qualidade de vida, bem como reduzir custos. Somos todos responsáveis por gerir/utilizar o Sistema Regional de Saúde de forma sustentável, incluindo utentes e profissionais de saúde. Esta é uma responsabilidade de todos e de cada um de nós.
Carlota Pimentel