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Jaime Oliveira foi um dos cinco açorianos que ao lado de Salgueiro Maia desceram de Santarém a Lisboa no dia 25 de Abril de 1974: “Tive medo…”

Saiu de São Miguel muito cedo para poder ter uma educação que os seus pais não lhe podiam proporcionar. Depois de alguns anos num seminário, sentiu que não era a sua vocação e voltou a casa. Combateu na revolução de Abril ao lado de Salgueiro Maia e hoje aproveita a vida ao lado da sua esposa, filhos e neto. Jaime Oliveira conta ao Correio dos Açores como foi feita a revolução, o que se seguiu após e afirma: “é preciso estar-se preparado para a vida na reforma”.

Nascido e criado nos Açores?
Jaime Oliveira – Nascido e criado em Santo António.

Onde estudou?
Estudei no Seminário. Antigamente, os pais não tinham dinheiro para os filhos estudarem. Venho de uma família humilde. O meu pai tinha uma pequena lavoura de sete vacas e com esta lavoura criou os 13 filhos. Quer dizer, não foi só com a lavoura, uma vez que ele foi para o Canadá, duas vezes, não como emigrante mas com uma licença de trabalho de seis meses. A ideia dele foi sempre fazer uma lavoura maior, e ele conseguiu.
Eu era o mais velho e detestava trabalhar em vacas. Fazia-me impressão andar em cima da uma égua. Os caminhos, também, não eram como são hoje. Quando chovia, as éguas ficavam atoladas de lama quase até à barriga e se caíssem, nós caiamos também e ficávamos todos sujos.
Quando estava na quarta classe, o meu pai falou com pessoas da Auto Viação Micaelense para ser aprendiz de mecânico, porque eu não gostava de vacas. Não gostava nada dessa vida.
Só que, entretanto, apareceram uns padres que vinham da Madeira cá. Era um padre italiano, mas que tinha o seminário na Madeira. Era o seminário dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus. Ele veio cá e andava pelas escolas à procura dos melhores alunos dessas escolas para os levar para o seminário.
Toda a gente queria ser padre. Nunca fui com a ideia de ir e não ser, a verdade é essa. Fui com 11 anos para a Madeira. O meu pai não queria, de maneira nenhuma, e só foi demovido pela acção da minha mãe e isto porque, na altura, os seminários cobravam uma mensalidade mínima aos que não podiam, que era o meu caso.
É graças a eles que tenho o que tenho hoje e que tive a educação que tive. Os meus irmãos não tiveram, à excepção das raparigas mais novas, que já estudaram. Os mais velhos tinham a escolaridade mínima obrigatória, quarta e sexta classe.
Nunca tinha saído de São Miguel. Fui de barco para a Madeira. Demorei dois dias e duas noites a chegar, caminho esse que fiz sempre a chorar com saudades. Não me consegui, tanto é que perdi o primeiro ano. Vinha cá, quando os meus pais podiam pagar a passagem, apenas no Verão. Houve duas vezes que não consegui vir, porque os meus pais não tiveram possibilidades. Com muito sacrifício tirei o 11º ano. Podia ter tirando o 12º, mas já tinha quase 18 anos e vi que não era a minha vocação. Os padres ainda tentaram me demover mas a minha cabeça já estava feita.
E como descobriu que esta não era a sua vocação?
Por causa das mulheres (risos). Mais a sério, havia qualquer coisa que não me chamava a atenção, apesar de hoje em dia ser um católico praticante. Foi uma das coisas que eu aprendi. Tenho colegas ex-seminaristas que hoje não querem saber da Igreja.
Tudo o que aprendi no seminário como o rigor e a disciplina, incuti nos meus filhos. Eles com sete anos já faziam as suas camas. Iam para a escola com tudo feito. Foi o que eu aprendi no seminário.
Sai do seminário e era muito difícil de arranjar emprego antes de cumprir o serviço militar.
Eu, nesta altura, jogava futebol em Santo António e havia um senhor, o Jaime Leite, que me levou para o Santa Clara. E foram eles que me arranjaram um serviço, através do senhor Humberto Moniz, que tinha uma empresa de electricidade, a trabalhar no escritório. Trabalhei um ano e meio com ele antes de ir para a tropa. Depois, fui cumprir o serviço militar, com 20 anos de idade.
Fui para Tavira fazer o curso de agentes milicianos. Fui um entre muitos dos Açores que foram fazer o curso.
A 16 de Março de 1974, dá-se uma revolução que falhou. Para nós aquilo não dizia muito uma vez que tinha apenas três meses de tropa. Lembro-me perfeitamente que, na altura, entramos todos de prevenção. Ninguém podia sair do quartel. Disso recordo-me perfeitamente.
Já tinha acabado a recruta e estava à espera de ir para Santarém tirar a especialidade de polícia militar. Acabei por ir para Santarém no espaço entre 16 e 24 de Março.
Quando se dá o 25 de Abril, eu estava em Santarém há uma semana. Na noite de 24 de Abril, mandaram-nos estar na parada, todos formados, com roupa de campanha, G3 e tudo. Pensávamos que era uma praxe que nos estavam a fazer. Na tropa, tal como nas universidades, faz-se praxe aos ‘maçaricos’ e era isso que pensava que estava a acontecer.
Depois de estarmos todos formados, foi-nos explicada a situação toda. Uma das coisas que me lembro, perfeitamente, de Salgueiro Maia dizer foi que só queria voluntários, não queria ninguém forçado. Contou o que se estava a passar, que íamos marchar sobre Lisboa, que tínhamos de tomar conta do Ministério do Exército. Esta era a nossa missão. Toda a gente queria ir, mas tinha que ficar gente para trás, para tomar conta do quartel. Fomos 249 pessoas.

E foi uma dessas pessoas…?
Fui uma destas 249 pessoas, sim. Era muito novo na altura. Éramos cinco açorianos, quatro micaelenses e um terceirense. Um é muito conhecido, que é o dono do restaurante O Farol, era primeiro-cabo. Um outro era escriturário, e o outro, para além de mim, trabalha hoje em dia em Ponta Delgada. O da Terceira era meu colega de curso.
Fez-se o 25 de Abril, como conhece a história. Quem quer ver o 25 de Abril, e eu ponho-me na realidade do 25 de Abril quando vejo o filme “Capitães de Abril”. Eu fiz aquilo tudo pessoalmente. Na revolução morreu o meu colega de Santo António, o João Guilherme.
Ele era um revolucionário na altura, e já era contra algumas coisas. Chegou a contar-me que, caso não acontecesse o 25 de Abril, que iria imigrar para França.
Quando a PIDE dispara a primeira coisa que fizemos foi, com as cunhas das armas, meter portas dentro para nos protegermos. Infelizmente ele estava na frente e apanhou com um tiro. Só soube três dias depois que era ele. Ele foi na nossa ambulância, a de quartel de Santarém, para o hospital e só soube três dias depois que ele tinha falecido, infelizmente.

Só conheceu Salgueiro e Maia quando chegou ao Exército?
Foi mesmo só lá. Ele não era polícia militar, era atirador, se não estou em erro. Ele é que chefiou as tropas de Santarém.
Mas também passamos o nosso susto. O 25 de Abril foi muito bonito, mas também tive medo. A maioria era tudo rapazes novos, novatos. Tudo cadetes, oficiais e instruendos a sargento. Ele preferiu levar a maioria destas pessoas porque eram mais instruídas. Os outros que foram eram pessoas que já estavam lá. Os condutores das chaimites, bayardes ou charlies e atiradores. Tinha que levar gente segura.
Mas nós levamos o nosso susto. Estávamos na Praça do Comércio e o Ministério do Exército ficava num dos edifícios debaixo das arcadas. Estávamos com um helicóptero por cima de nós, a Cavalaria 7, que não se queria render, na rua com os M47 apontados contra nós e a Marinha, no Tejo, com os canhões também apontados contra nós. E nós ali sozinhos, só com espingardas e metralhadoras para nos defender. Correu tudo muito bem. Mas se aqueles soldados, os atiradores e condutores dos M47 tivessem dado o primeiro tiro, ia ser um banho de sangue. Eram seis e tal da manhã e as pessoas começavam a chegar para ir para o trabalho. Houve uma aglomeração muito grande gente e se desse para o torto, ia haver muita morte.
Agora foi um dia muito feliz. Ainda me recordo dos meses a seguir. Acabei a especialidade e fui para lanceiros 2 na Ajuda. Fazíamos as rondas na cidade. A polícia militar tinha de entrar sempre nos sítios mais complicados, que eram onde os soldados estavam e as pessoas achavam-nos uns heróis. Adoravam os militares, na altura. Como tinham vivido num regime ditatorial e agora eram livres, queriam agradecer.
Lembro-me de irmos à noite para o quartel para pernoitarmos, depois do 25 de Abril, e nas avenidas e varandas só se viam cravos vermelhos e flores e agradecer.

Quando volta para São Miguel?
Estive dois ou três meses como polícia militar, mas a minha especialidade não dava para voltar para os Açores. Então, transferi-me para a Força Aérea uma vez que era a única hipótese que tinha de voltar para os Açores. Fui aceite e fui dar instrução a Tancos durante três meses e regressei aos Açores, há Base, em Janeiro de 1975.
Estive na Base desde Janeiro de 75 a Dezembro do mesmo ano, portanto cerca de um ano. A partir daí, vim novamente para São Miguel.
Quando cheguei deparei-me, novamente, com o problema que era para arranjar emprego. A prioridade era para todos os retornados das ex-colónias.
Como veio essa grande avalanche de pessoas, a lei dizia que eles tinham prioridade sobre nós. Quando concorríamos para um lugar, se sabíamos que estavam retornados a concorrer já sabíamos que não ficaríamos com as vagas.
Fiz diversos concursos, até para a televisão. Na altura quem ficou com a vaga foi o Sidónio Bettencourt. Também concorri para a POLNATO. Tudo quanto havia concursos, eu concorria. Também continuei a jogar futebol no Santa Clara.

Chegou a ser profissional de futebol?
Naquela altura não havia profissionais de futebol.

Então não recebia por jogar futebol?
Nos primeiros anos, não recebia nada. Havia um médico que gostava muito do Santa Clara, o doutor Benjamin Viveiros, que, nos jogos que precisávamos mesmo de ganhar, dava-nos 20 escudos, ao intervalo, para ganharmos o jogo.
Só quando o Santa Clara chegou, pela primeira vez, à Divisão Sul do Campeonato Nacional é que comecei a ganhar algum dinheiro. Ganhava 3.500 escudos. Tinha 26 anos, nesta altura, e depois não continuei a jogar durante muito tempo. Era casado de novo e tive que optar por deixar o futebol.

E como arranjou emprego?
Foi através do Santa Clara que consegui arranjar emprego. Fui contínuo no Liceu. Não era o que eu queria, mas foi o que apareceu. Então agarrei-me ao trabalho que apareceu. Estive lá durante um ano.
Depois, apareceu um concurso para a Casa de Povo da Bretanha. Concorri e fiquei lá durante um ano também. De seguida, concorri para a Secretaria Regional do Trabalho, cujo secretário era o Dr. Manuel Arruda, e fui seleccionado. Fiquei três anos a trabalhar no Centro de Formação Profissional.
Depois destes três anos, concorri para o Banco Fonsecas & Burnay. Sai da função pública e trabalhei 25 anos naquele que é agora o banco BPI. Trabalhei até aos 52 anos. Nessa altura, reformei-me por antecipação porque tinha um emprego garantido. Fui trabalhar com um cunhado meu, o Vítor Câmara. Fui trabalhar com ele na empresa de construção civil e depois na hotelaria. Trabalhei até aos 62. Não me queria reformar, mas algumas circunstâncias levaram a que eu tivesse que o fazer.
A princípio, custou-me muito. A gente para ir para a reforma, tem de estar preparado. Eu dizia, quando trabalhava, que queria estar na reforma. Que poderia fazer coisas que não conseguia fazer estando a trabalhar, mas não é bem assim.
Os primeiros seis meses foram terríveis. Levei seis meses a capacitar-me que já não estava a trabalhar e que tinha que começar a fazer outro tipo de vida. Então, procurei ocupar o meu tempo. Ganhei gosto pela terra, cultivo tudo o que preciso: alhos, cebolas, feijões…
Tento ter sempre uma vida activa.

Quando conheceu a sua esposa?
Conheci a minha esposa quando sai do seminário. Comecei por namorar uma moça que estava no Canadá. Foi um namoro só de cartas, conheci-a no Verão que sai do seminário. Como ela era filha única, o pai não queria que ela namorasse. Ainda namorei durante um ano por cartas.
Quando estava na Base, vim de férias a São Miguel e conheci a minha esposa. Ela morava perto da casa da minha avó. Cheguei ao pé dela e perguntei se ela queria conversar comigo. Felizmente o pai aceitou. Ela tinha 15 anos na altura. Depois de três anos de namoro, decidimos casar.
No meu tempo era um encargo grande ter um filho em casa. Se os filhos saíssem de casa cedo, era menos uma despesa para os pais.
Então, aos 25 anos, decidi casar, apesar de a minha esposa ser bem mais nova que eu e ainda não tinha terminado o seu curso. Eu disse que o meu ordenado era o suficiente para a gente viver e então avançamos.
A vida foi avançando depois. Já como funcionário bancário comprei o terreno onde nos encontramos e fiz aqui a minha casa. Surgiram, naturalmente, os problemas de quem estava a iniciar a sua vida. Eu tive uma benesse quando construi a minha casa. Todos os bancos eram obrigados a ter um plafond para contemplar determinados funcionários do banco com uma taxa de juro muito mais baixa.
Tenho um casal de filhos. O meu filho é licenciado em Ciências de Educação e doutorado em miúdos com hiperactividade e está a terminar uma licenciatura em psicologia clínica; e a minha filha é licenciada em inglês e alemão. Os dois foram estudar para Coimbra. Antigamente não havia universidade cá, e tudo isto custa dinheiro. A minha vida foi toda construída à custa do meu trabalho e do trabalho da minha esposa. Com sacrifícios durante este tempo. Agora vivemos desafogadamente, felizmente.

Se pudesse voltar atrás no tempo, tinha optado por participar no 25 de Abril?
Sem dúvida. Nós vivíamos no tempo da miséria, da escravidão e da pobreza. Nas ilhas ainda era pior. Só meia dúvida de pessoas é que tinha posses. Era tudo pobre. Para ter noção, a primeira vez que andei de carro foi aos 7 anos e foi numa camioneta.
Fui voluntário e não me arrependo nada.

Arrepende-se de ter deixado de jogar futebol tão novo?
Arrependo-me um pouco porque era algo que gostava. Mas primeiro estava a minha vida pessoal. Não ia acabar o meu casamento por causa do futebol.
O meu filho também jogou futebol. E neste momento, acompanho um dos meus netos que também joga futebol. Ia-o levar e buscar aos treinos. Agora, felizmente, vai para um clube que lhe proporciona transporte.
Isto para dizer que eu gosto de futebol.

O Santa Clara é o clube do seu coração?
Sim. Tudo o que ganhei foi lá. Nunca fui um jogador fora de série, mas cumpria.
Fui contratado como médio, depois o treinador Bendavid, que foi o meu primeiro treinador, colocou-me a jogar como defesa esquerdo e lá fiquei.

Que mensagem gostaria de transmitir às gerações mais novas?
Vou transmitir a mensagem que transmiti aos meus filhos e que vou transmitindo aos meus netos. Aproveitem a liberdade e que nada se consegue sem trabalho. Nada é dado.
Tudo quanto é-nos dado não tem o mesmo valor. Damos muito mais valor ao que conseguimos alcançar com o nosso trabalho e o nosso suor.
Aproveitem ao máximo e que tenham liberdade, que é muito diferente de libertinagem. Para tudo tem que haver rigor e leis. Não é só fazer o que bem entendemos. Se formos disciplinados na nossa vida e com os outros, o mundo viveria em paz.

Frederico Figueiredo

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