Nesta entrevista, Hélder Marques da Silva, investigador aposentado da Universidade dos Açores, critica a falta de representação dos Açores na ICCAT – Comissão Internacional para a Conservação dos Atuns do Atlântico, o que, no seu entender, prejudica a defesa dos interesses regionais e tem impactos a nível político. O antigo Presidente da ICCAT realça, ainda, a importância das rotas migratórias dos peixes para a biodiversidade marinha dos Açores e alerta que a poluição marinha e as alterações climáticas ameaçam essas rotas.
Correio dos Açores – Qual é a importância das rotas migratórias dos peixes para a biodiversidade marinha dos Açores e que espécies de peixes migratórios são mais comuns nas águas da Região?
Hélder Marques da Silva (Investigador aposentado da Universidade dos Açores) – A problemática das rotas migratórias dos peixes é muito importante para a biodiversidade em geral e para a manutenção dessa biodiversidade. É especialmente importante numa Região como a nossa, porque nós, efectivamente, temos um conjunto vasto de espécies altamente migratórias, ou seja, que fazem migrações de grande dimensão.
Posso dar o exemplo dos atuns, que é o mais conhecido. O bonito, o rabilho, o patudo, galha-à-ré e o voador são cinco espécies de atuns que temos nos Açores, umas mais exploradas do que outras, mas todas migratórias; algumas de temporadas quentes, como é o caso do patudo e do bonito que se deslocam para Norte. Estas espécies vêm de latitudes próximas de Angola e fazem migrações para Norte, atingindo os Açores uns anos em maior quantidade e outros anos em menor, precisamente em resultado, desde logo, da distribuição das temperaturas em toda esta área do Atlântico.
Porém, temos muitas outras espécies que efectuam migrações anuais e outras que o fazem em períodos distintos, como é o caso dos tubarões. Talvez, a mais conhecida é o tubarão-azul ou a tintureira, que faz uma migração diferente, pois vem da zona do Golfo, portanto da costa americana, e atravessa os Açores até à zona leste do Atlântico.
Outra espécie que também é muito emblemática e relevante do ponto de vista ambiental e da conservação, é a tartaruga. Aliás, existem várias espécies que atravessam os Açores e nós temos um papel importante na sua conservação. Embora se desloquem entre a costa americana e a costa africana, passam sempre pelos Açores. Naturalmente, a manutenção das rotas migratórias para este vasto conjunto de espécies passa também por uma boa conservação do mar dos Açores. Temos um papel muito relevante na manutenção das rotas migratórias destas espécies.
Há uma publicação da Nature – uma revista com grande impacto a nível científico –, em 2022, de uma investigação de colegas do Reino Unido que conseguiram pela primeira vez seguir uma enguia até ao Mar dos Sargaços.
Neste estudo, verificou-se a relevância dos Açores para a migração de uma espécie que penetra nos rios e ribeiras do continente europeu e que, na sua passagem pelo Mar dos Sargaços que fica a oeste dos Açores, penetra também nas nossas ribeiras. Embora não seja uma espécie com grande expressão do ponto de visto económico, as enguias aparecem frequentemente nas ribeiras dos Açores.
Já se sabia, há muito tempo, que as enguias faziam migrações. Ao contrário das espécies que referi, que são espécies marinhas, as enguias vivem entre o ambiente marítimo e os rios, onde penetram durante determinados períodos do ano. Supunha-se que esta espécie se deslocava ao Mar dos Sargaços para reproduzir anualmente e, neste momento, percebe-se que o ciclo de vida é diferente. As migrações são tão lentas que, provavelmente, as enguias não conseguem fazer estas migrações todos os anos. Ainda assim, elas deslocam-se anualmente para o ponto onde nasceram e surgiram como pequenas enguias ou angulas, e depois migram para a costa continental e, em alguns casos, também para as nossas ilhas. Isto permite-nos compreender a complexidade da vida marinha e destes peixes que são altamente adaptados a estes processos migratórios que não podem ser interrompidos.
Além disso, é relevante percebermos se, nos Açores, não temos grandes estruturas que possam pôr em causa as rotas migratórias. Não deixa de ser verdade que há processos, até de poluição, que têm e podem ter impacto não apenas directamente na abundância destas espécies, mas nas suas rotas migratórias. A questão do lixo marinho tem sido muito referida, bem como as alterações térmicas.
As alterações climáticas têm impacto ao nível do mar nas zonas de corrente, como a Corrente do Golfo. Temos uma relevância extraordinária do ponto de vista científico, porque a Corrente do Golfo, da costa americana, passa pelos Açores.
Há um braço que ao aproximar-se da costa continental portuguesa se desloca para Norte e aquece todas as águas do mar do Norte, e há outro braço com deslocação para Sul. Esta é uma das correntes mais importantes que existem a nível mundial, com mais significado e intensidade. Todas as perturbações que possam ocorrer na Corrente do Golfo terão certamente impacto no processo das rotas migratórias das espécies que passam anualmente pelos Açores. Todas estas questões devem ser pensadas. É um esforço de conservação que deve ser assegurado.
Em que medida a construção de infra-estruturas pode influenciar as rotas migratórias dos peixes?
Para algumas espécies, particularmente as que existem mais a nível do continente e também as que andam entre o mar e águas doces, como é o caso da lampreia marinha e a enguia, é fundamental que haja intervenções nos rios e ribeiras do continente que assegurem que o fluxo e as movimentações de água se façam livremente, porque sem isso provavelmente interrompemos o processo migratório e alteramos o comportamento destas espécies, bem como a sua capacidade de se alimentar e/ou reproduzir.
As construções, como é o caso das barragens, são estruturas que contribuem para a interrupção do processo migratório e, portanto, estes investimentos têm de ser bem pensados. Se, por um lado, há investimentos com uma dimensão positiva em alguns pontos, por outro, têm impactos negativos ao nível ambiental, particularmente no que toca à migração destas espécies.
Algo que tem algum impacto e que temos vindo a discutir, há já algum tempo, na ICCAT- Comissão Internacional para a Conservação dos Atuns do Atlântico, de que Portugal faz parte, é o recurso ao FAD’s (do inglês Fish Aggregating Devices) que são objectos fixos utilizados, sobretudo, na zona na proximidade de Cabo Verde, no chamado Golfo da Guiné. Supõe-se que, de alguma forma, a concentração de FAD’s está a perturbar a rota migratória de algumas destas espécies que, por vezes, não conseguem alcançar na mesma quantidade os Açores. Portanto, estes objectos atraem os peixes e perturbam a própria rota migratória destas espécies.
Para as frotas espanhola e francesa, que são as que essencialmente recorrem a estas estruturas porque concentra o peixe e facilita a sua captura, é vantajoso. Do ponto de vista de regiões como os Açores, a Madeira e as Canárias, que recorrem a actos de pesca menos impactantes do ponto de vista ambiental, a perturbação da rota migratória destas espécies significa que, por vezes, estas espécies não conseguem alcançar ou alcançam em menor quantidade as nossas costas, o que tem impactos a nível económico para a Região.
De que maneira se tem influenciado as rotas migratórias dos peixes com impacto na actividade piscatória nos Açores?
Essa é uma das causas. Outra será a poluição, em particular, de plásticos que está a ter impacto na migração de algumas destas espécies, assim como na sua sobrevivência. E, mais grave ainda, na nossa! Sabe-se que a concentração de plásticos, que está a ser absorvida por estas espécies, acaba por entrar na cadeia alimentar e nós acabamos por alimentarmo-nos destes peixes, absorvendo também parte destes plásticos. Tudo isto é impactante para a saúde e para as rotas migratórias destas espécies.
Com que desafios ambientais os peixes migratórios têm que lidar? Diria que o principal é a poluição por plásticos?
Não me atreveria a dizer que é o principal. Penso que o aquecimento global pode ser um desafio ao nível da rota migratória destas espécies. É importante estudarmos, acompanharmos e vermos melhor o impacto que a alterações climáticas estão a ter na migração de algumas destas espécies. Com o aquecimento das águas em determinados pontos, é possível que algumas espécies que estão habituadas a uma determinada temperatura neste ponto se comecem a deslocar mais para Norte para se manterem nas mesmas linhas térmicas. Portanto, tudo isto pode ter um impacto significativo nas migrações das espécies. O plástico também, mas a dimensão destas questões do lixo marinho tem um impacto mais alargado que é mais genérico e não passa exclusivamente pelas migrações.
Em que espécies se verifica uma alteração das rotas migratórias como resultado das alterações climáticas?
Não consigo dizer concretamente em que espécies se verifica uma alteração significativa das rotas migratórias, em função das alterações climáticas.
Algo que nos interessa especialmente nos Açores é a migração dos atuns, que chegam uns anos em maior abundância e noutros em menor abundância. Neste momento, temos um aluno de Doutoramento que está a estudar precisamente este processo e a tentar verificar o efeito que as alterações térmicas do mar na zona dos Açores ou na zona intermédia podem ter na migração destas espécies, em particular para o atum patudo e o atum bonito. O bonito é a espécie que usamos mais para a indústria conserveira e o patudo tem sido uma espécie mais vendida em fresco ao longo dos últimos anos.
De facto, ainda não se sabe muito acerca do impacto que as alterações climáticas podem ter para as outras espécies. É um esforço de investigação que deve ser continuado e, eventualmente, ainda mais acentuado no futuro. Mas, é facto que isto pode ter impacto significativo a nível económico e comercial para os Açores.
As medidas que estão a ser implementadas para mitigar os efeitos são suficientes?
Com o decorrer do tempo e com a complexidade dos problemas ambientais que se vão acumulando, vamos percebendo que as medidas que vamos desenvolvendo são sempre insuficientes para combater os efeitos nefastos da nossa intervenção ao nível ambiental. Portanto, não existe tal coisa como nós podermos estar satisfeitos com o conjunto de medidas que são estabelecidas.
Ao contrário do que acontecia há uns anos, ou décadas, em que não eram feitos estudos de impacto ambiental, hoje em dia, por exemplo, a construção de uma barragem passa necessariamente por uma avaliação do estudo de impacto e a minimização dos impactos que a estrutura possa ter ao nível ambiental. Quero crer, embora não tenha participado em nenhum destes estudos, que façam uma avaliação do impacto que pode ter na migração de algumas espécies.
No entanto, não tenho dúvidas de que é preciso mais esforço na redução dos impactos da intervenção humana no ambiente marinho, nos rios e ribeiras.
Que estratégias estão a ser implementadas para garantir a sustentabilidade da pesca de espécies migratórias nos Açores?
Relativamente às estratégias, numa região como os Açores e face às espécies a que fiz referência, que são espécies com uma distribuição muito alargada em todo o Atlântico Norte e algumas até tendendo para o Atlântico Sul, o esforço tem de ser a nível internacional. O que tem sido feito na conservação de tartarugas, na compreensão e melhoria da gestão dos atuns e, mais recentemente, ao nível da conservação dos tubarões e raias — dos peixes chamados elasmobrânquios – é um esforço que uma Região ou um país não consegue abraçar isoladamente. É um esforço que exige colaboração internacional e essa colaboração tem de ser cada vez mais intensificada.
A Região participa em vários projectos de investigação, procurando precisamente colaborações nestes domínios. Por exemplo, o recurso a marcações de peixes tem-nos permitido uma melhor compreensão dos circuitos migratórios dessas espécies. Este trabalho tem sido desenvolvido em colaboração internacional e que deve continuar e na medida do possível ser incentivado, estimulado e aumentado.
As quotas para o atum, por exemplo, não são pequenas para uma Região como os Açores?
Relativamente à gestão e às quotas dos atuns, temos vários problemas. O primeiro é o facto de haver uma variabilidade grande entre ambos. Desde logo, as espécies de temporadas quentes, como o patudo e o bonito, concentram-se nos Açores durante o Verão e desaparecem no Inverno – vão para os mares mais a Sul, próximo de Angola. Portanto, há uma sazonalidade associada à ocorrência destas espécies.
Temos tido dificuldade nos Açores em assegurar manutenções de quotas interessantes e não têm tido eco nas comissões internacionais como a ICCAT- Comissão Internacional para a Conservação dos Atuns do Atlântico, que leva a cabo o acompanhamento e a gestão destas espécies ao nível internacional no Atlântico-Norte.
Além disso, temos tido alguma dificuldade em afirmar a especificidade da pesca que existe nos Açores e o que deve ser também uma menor penalização a nível da captura, uma vez que recorremos a artes de pesca menos impactantes a nível ambiental e é por isso que as mantemos. Aliás, fizemos experiências, por exemplo com cercadores, que é a arte de pesca mais utilizada em alguns países da Europa e na América, e nós nunca enveredamos por esse caminho. Podíamos ter enveredado e com um grande cercador, ou dois, fazíamos as capturas que fazemos ao longo do ano com 20 ou 30 embarcações. Mas nunca foi essa a nossa abordagem. Aliás, sempre defendi a manutenção desta arte de pesca para minimizar os impactos ambientais em todas estas espécies. (…)
Durante alguns anos, fui Presidente do Comité dos Atuns Tropicais da ICCAT, que é o comité que gere precisamente o atum patudo e o bonito. Infelizmente, tivemos outra perda, do colega João Gil Pereira, que durante muitos anos foi quem acompanhou, ao nível científico e político, os atuns na Região. Foi durante largos anos presidente do FCRS, o comité na ICCAT que é responsável pela avaliação científica destes recursos e era respeitado, até pelos largos anos em que fez parte da ICCAT. João Gil Pereira saiu e o facto é que estas pessoas não têm sido substituídas por outras, o que significa um vazio da nossa capacidade científica dentro da ICCAT e tem necessariamente resultados ao nível político.
Portanto, agora, com esta paragem da pesca do patudo altamente impactante pela negativa para a pesca nos Açores, estamos a sofrer as consequências da incapacidade que tivemos nos últimos anos em garantir estes acompanhamentos. Nunca é tarde para corrigir e espero que a Região, a Universidade e as entidades que têm responsabilidades a esse nível tenham a capacidade de rectificar o que está mal. E deve ser emendado, o quanto antes, de modo a assegurar a dimensão que sempre tivemos e devemos continuar a ter ao nível científico e político dentro da ICCAT.
Carlota Pimentel