Com o tema de dissertação de mestrado intitulado de “Sem-abrigo no feminino: o impacto da desigualdade de género na construção da situação de sem-abrigo na ilha de São Miguel”, Joana Paiva Dias aprofundou esta temática. A autora acredita que a realidade feminina nesta situação é mais “invisível”. Joana Dias afirma na sua dissertação que, em quase todas as entrevistadas, as mulheres sem abrigo estão “em profundo sofrimento psicológico pela situação em que vivem”, e muitas delas foram vítimas de violência doméstica. Em entrevista ao Correio dos Açores, Joana Paiva Dias explica os resultados da investigação que realizou no âmbito do mestrado na Universidade dos Açores.
Correio dos Açores – Qual é o motivo para que o tema da sua dissertação de mestrado na Universidade dos Açores tenha sido sobre os sem-abrigos no feminino na ilha de São Miguel?
Joana Paiva Dias (Mestre em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais) – O interesse sobre o fenómeno da situação de sem-abrigo surgiu enquanto frequentei a licenciatura em Serviço Social. Após terminar a licenciatura, realizei o programa Estagiar L na Associação Novo Dia, especificamente no Centro de Acolhimento de Emergência. É um centro de acolhimento para mulheres e homens, em situações muito delicadas.
Ao longo da experiência que tive enquanto estagiária nessa Associação consegui perceber que muitas vezes a comunidade micaelense não está ciente da fragilidade em que estas pessoas se encontram. Não só pela minha experiência, como também pelas pesquisas que fiz enquanto frequentei mestrado, percebi que a necessidade de compreender melhor as mulheres em situação de sem-abrigo em Portugal continental está a crescer, contudo, especificamente nos Açores, não consegui encontrar estudos nesta área. É neste sentido que considerei relevante debruçar-me sobre a situação de sem-abrigo no feminino na ilha de São Miguel, porque de facto é um tema pouco aprofundado aqui na região, como também é de extrema importância alargarmos a nossa percepção sobre este fenómeno no âmbito da relação entre ser mulher, estar em situação de sem-abrigo, desigualdade de género e o que as conduz a encontrarem-se nesta situação.
Quais foram os tópicos abordados no seu inquérito?
Os tópicos que foram abordados durante a entrevista tiveram como objectivo de estudar as trajectórias de vida para a construção da situação de sem-abrigo na mulher, numa perspectiva de género, ou seja, foram colocadas questões que fosse possível identificar causas e factores de risco que as colocaram na situação de sem-abrigo, tentar perceber se estas causas ou factores têm por base a desigualdade e repressão de género, compreender que desafios enfrentam e perceber o impacto da condição de sem-abrigo nas suas relações e redes de suporte. Na sequência destes objectivos foram também abordadas questões sobre relação laboral, maternidade, por que motivos necessitam do apoio da instituição, como se veem a si próprias, com quem podem contar em situações mais desafiantes, e inclusive, os seus maiores objectivos de vida. A violência doméstica foi um tema central durante toda a entrevista, com histórias muito difíceis e que demostram a sua resiliência em continuar a lutar por uma vida digna.
Qual foi o resultado desta investigação? Quantas pessoas participaram?
Participaram no estudo nove senhoras, oito vivem no centro de acolhimento temporário feminino e uma senhora num quarto. Esta senhora quando foi entrevistada tinha feito recentemente a transição para um quarto.
O facto de estarem num centro de acolhimento temporário também significa que estão em situação de sem-abrigo, mas na condição de “sem-casa”. É neste sentido que no meu entender, muitas vezes por não associarem uma mulher que seja vítima de violência doméstica e que viva num centro de acolhimento a uma mulher em situação de sem-abrigo, considero que isto acabe por contribuir ainda mais para a invisibilidade da situação de sem-abrigo no feminino.
Os resultados mais impactantes desta investigação centram-se nas causas que as colocaram na situação de sem-abrigo, como por exemplo a instabilidade familiar, instabilidade na habitação, dependência de substâncias psicoactivas e doenças de foro psiquiátrico, violência doméstica e precariedade ou instabilidade laboral. As duas causas com maior número de entrevistadas foram a violência doméstica e a precariedade ou instabilidade laboral. Com esta investigação foi também possível perceber que a violência doméstica tem um impacto mais directo para as senhoras se encontrarem em situação de sem-abrigo, enquanto a precariedade ou instabilidade laboral foi um factor que não as conduziu directamente a esta situação, mas que esteve presente durante as suas trajectórias de vida, acabando por condicionar todo o seu percurso até à situação de sem-abrigo.
Para além disto, verificou-se muita solidão na vida destas senhoras, onde aqui entra as suas fracas redes de suporte e desafiliação, cujos aspectos que têm profundo impacto nas suas vidas.
Quantas mulheres sem-abrigo estão em Ponta Delgada? E no resto dos concelhos da ilha? Há uma grande desigualdade de género na situação de sem-abrigo na ilha de São Miguel?
Foi elaborado um relatório que foi disponibilizado em 2023, intitulado “À Margem – A Condição de Sem Abrigo nos Açores”, elaborado por. Hélder Fernandes, Lídia Fernandes e Paulo Fontes. É uma investigação inovadora cá nos Açores porque se fez pela primeira vez um levantamento aprofundado sobre o número de pessoas em situação de sem-abrigo em todas as ilhas, até à data de Dezembro de 2020. Inclusive, afirmado pelos autores, estes dados estão desactualizados, até porque a situação de sem-abrigo nos Açores está a crescer.
Através destes dados do relatório elaborado por estes autores, é na ilha de São Miguel, principalmente no concelho de Ponta Delgada, onde se concentra o maior número de pessoas nesta situação. Especificamente para mulheres, até à data de dezembro de 2020 encontravam-se nos Açores 84 mulheres em situação de sem-abrigo, em São Miguel havia 68 mulheres e 62 dessas mulheres estavam no concelho de Ponta Delgada.
Apesar de haver uma discrepância acentuada entre homens e mulheres em situação de sem-abrigo, uma vez que são homens em maior número nesta situação, acredito que a realidade feminina seja mais invisível do que a do homem. As mulheres tendem a encontrar as suas próprias estratégias de sobrevivência recorrendo muitas vezes a redes de apoio informais, contribuindo ainda mais para a lacuna nos números reais sobre a situação de sem-abrigo na mulher.
Há uma diferença entre os motivos que levam uma mulher a ser uma sem-abrigo em relação aos motivos que levam um homem a sê-lo?
A principal diferença centra-se no cerne que as coloca nesta situação. É necessário fazer uma retrospectiva, perceber o que realmente esteve na base da sua situação atual. A grande maioria das entrevistadas refere a violência doméstica e a precariedade ou instabilidade laboral. A literatura e os estudos nesta área mostram-nos que são as mulheres as mais suscetíveis e prejudicadas neste âmbito, é aqui que entra a repressão e a desigualdade de género. Contudo, poderá sempre existir outros motivos corelacionados, como a dependência de substâncias psicoativas e doenças de foro psiquiátrico, desemprego, situações de despejo, entre outras questões. A situação de sem-abrigo é um fenómeno muito complexo e cada vez mais heterogéneo, cada vez mais com raízes estruturais para que isto aconteça.
Quais são os maiores desafios enfrentados pelas mulheres que estão nesta situação?
Há alguns desafios mais marcantes que podemos encontrar. Um deles é o facto de existir muito estigma por parte da sociedade relativamente a pessoas em situação de sem-abrigo, principalmente para as mulheres nesta situação. Na minha perspectiva, o estigma perante mulheres em situação de sem-abrigo poderá ser mais acentuado porque apesar de todas as mudanças que se vê no decorrer do tempo relativamente ao papel da mulher na sociedade, ainda é muito intrínseco na sociedade o seu papel maternal e de cuidado.
O facto de vivermos actualmente numa época bastante desafiante em termos de emprego e da própria estabilidade deste emprego também é um desafio. Apenas uma utente encontrava-se a trabalhar, mas através de um programa do Centro de Emprego. As restantes estavam ou desempregadas ou em algumas ocupações. Sobre a questão laboral, terem dificuldade de acesso ao mercado laboral e habitacional é um enorme desafio, principalmente para as pessoas que se encontram nesta situação. Acho que neste ponto é importante falar de ambas as realidades, para mulheres e homens.
Outro grande desafio que as senhoras que foram entrevistadas encontram é o facto de não terem redes de suporte estáveis e também não terem um contacto próximo com a família, na sua grande maioria. É unânime entre todas a sua necessidade de ter a sua própria casa, o seu emprego estável, voltarem a estar próximas dos filhos. Referem mesmo que sentem necessidade de ter um futuro, uma vida comum à restante sociedade.
Qual é o estado psicológico e físico das mulheres sem-abrigo na ilha de São Miguel?
Naquilo que me é possível responder dentro deste tema, das nove senhoras que participaram no estudo, todas estão em profundo sofrimento psicológico pela situação que experienciaram, foram situações traumáticas e isto deixa marcas que perduram no tempo. Muitos destes traumas surgem na infância, adolescência, pela sua experiência em contextos familiares muito instáveis, muitas vezes marcados por violência doméstica.
Algumas entrevistadas também estão em processo de desabituação de substâncias psicoactivas, o que acaba por condicionar o seu bem-estar tanto físico, psicológico e emocional. Posso afirmar que é unânime entre todas que o impacto psicológico que a grande maioria das senhoras entrevistadas sofrem por não terem um contacto próximo com os seus familiares.
Todas as mulheres sem-abrigo quiserem colaborar no estudo? E os familiares?
As senhoras entrevistadas são utentes do Centro de Acolhimento Temporário Feminino, pelo que não correspondem à população total de mulheres em situação de sem-abrigo em São Miguel ou em Ponta Delgada.
O objectivo foi entrevistar as senhoras que estariam mais disponíveis e estáveis para tal, com um maior foco na história de vida mais recente e imediata à sua actual situação de sem-abrigo.
Até à data que foram efectuadas as entrevistas, residiam no centro nove utentes, apenas uma utente não quis ser entrevistada. No entanto entrevistei uma senhora que tinha acabado de fazer transição para um quarto, mas continuava a manter contacto com este Centro de Acolhimento Temporário Feminino e muitas vezes há saída do quarto e o regresso desta senhora novamente ao centro. É uma realidade que é comum não só com mulheres, mas também com homens.
Relativamente aos familiares, não foi um aspecto explorado nesta dissertação, mas que sem dúvida seria importante explorar estas relações em investigações futuras, caso haja consenso tanto por parte das senhoras como dos familiares. Contudo, a relação com os familiares é sempre um aspecto sensível de se explorar. Muitas senhoras não têm contacto recorrente com a família.
Entrou em contacto com alguma instituição para colaborar no inquérito?
Tive a colaboração da Associação Novo Dia, mais concretamente do seu Centro de Acolhimento Temporário Feminino. Foi muito importante esta colaboração porque através dela consegui com maior fluidez uma comunicação com as senhoras entrevistadas e também permitiu perceber quais as senhoras que estariam mais disponíveis emocionalmente para participarem no estudo. Considero sempre importante frisar que estas senhoras têm trajetórias de vida muito delicadas e que para mim foi muito importante o facto de elas se disponibilizarem para partilharem um pouco da sua vida comigo e do quão importante foi o seu contributo para esta dissertação.
A conclusão dos resultados correspondeu às expectativas?
No que diz respeito ao meu foco principal da investigação, ou seja, perceber em que medida os factores que conduziram as mulheres à situação de sem-abrigo foram condicionados pela desigualdade de género, sim, correspondeu às expectativas. Digo isto porque ao longo das pesquisas bibliográficas que fiz tanto a nível internacional como nacional, é possível ver claramente que tanto a violência doméstica como a precariedade ou instabilidade laboral foram factores que as conduziram à situação de sem-abrigo.
Estes dois factores foram também os que mais se verificaram junto das senhoras que entrevistei no concelho de Ponta Delgada. A questão da desigualdade de género entra aqui como catalisadora tanto para a violência doméstica como para a precariedade ou instabilidade laboral, uma vez que são as mulheres que se encontram numa situação mais propícia e vulnerável a estas situações, comparativamente aos homens.
No entanto, considero relevante para investigações futuras realizar entrevistas mais longas para aprofundar as histórias de vida e para compreender melhor as questões de insegurança e vulnerabilidade das mulheres nesta situação. É sem dúvida um tema que merece cada vez mais ser explorado, principalmente numa perspetiva de género.
Filipe Torres