“É fundamental que as crianças tenham tempo para brincar de forma natural e espontânea, ou seja, momentos para expressarem os seus interesses, vontades e motivações. Através do brincar as crianças exploram, experimentam e constroem o seu próprio conhecimento. São nas brincadeiras simples e espontâneas, como brincar às casinhas, ao faz-de-conta ou com as bonecas, que as crianças constroem cenários imaginários, assumem diferentes papéis e criam diálogos, estimulando a sua criatividade, a comunicação e a resolução de problemas. Com estas brincadeiras, as crianças imitam situações do dia-a-dia, desenvolvendo a imaginação, a empatia e a capacidade de adaptação.” Quem o diz é Carolina Arruda, psicomotricista e especialista no Modelo DIRFloortime, no NIITE – Núcleo de Investigação e Intervenções Terapêuticas Especializadas.
Correio dos Açores – Qual é a importância do Dia da Criança na sensibilização para os direitos e bem-estar das crianças?
Carolina Arruda (Psicomotricista e especialista no Modelo DIRFloortime) – O Dia da Criança assume extrema importância para a promoção, consciencialização e sensibilização dos direitos das crianças. Através das várias acções, campanhas e eventos que, normalmente, ocorrem em comemoração deste dia, promovem-se não só momentos recreativos e de lazer para as crianças e respectivas famílias, mas constituiu igualmente uma oportunidade para reforçar junto da comunidade os direitos e bem-estar das crianças, nomeadamente o direito a brincar, questões de protecção, saúde, educação e inclusão.
Considera que temos de libertar as nossas crianças? Porquê? Onde estamos a falhar enquanto sociedade?
Considero que, em relação há uns anos, já se observam mudanças e as crianças começam novamente a ter mais liberdade. Têm havido, sob diferentes formas e em várias alturas do ano, através das redes sociais e meios de comunicação social, mais campanhas de sensibilização e promoção da importância do brincar e de “libertarmos” as nossas crianças num meio seguro, afectuoso que lhes promova um crescimento e desenvolvimento equilibrado e saudável. Começamos a ver novamente os parques com mais crianças, criação de espaços e projectos promotores de momentos de lazer e exploração da natureza durante o ano inteiro para crianças e famílias, escolas mais sensibilizadas para a importância dos momentos de recreio e da aprendizagem através do brincar. Ainda assim, considero que ainda temos um longo caminho a percorrer e que podemos ainda fazer mais e melhor. Seria fundamental a existência de locais de lazer que pudessem ser utilizados em dias que o tempo não esteja tão favorável, disponibilizar, sobretudo para as crianças mais desprotegidas e desfavorecidas, o acesso a oportunidades educativas e culturais, de lazer e bem-estar, actividade física e desportiva, não só durante o ano lectivo mas particularmente nos períodos não lectivos onde, muitas crianças e jovens não têm ocupação, acabando por passar a maioria do tempo de interrupção lectiva em casa.
Um dos principais desafios que as crianças enfrentam hoje em dia é a falta de tempo e de espaço para brincar livremente. A pressão escolar excessiva, muitas vezes com agendas lotadas de actividades extracurriculares, limita o tempo que as crianças têm para explorar o mundo à sua volta, desenvolver a criatividade e interagir com outras crianças de forma espontânea. Contudo, é importante evitar generalizações e chavões ao discutir este tema. Cada criança é única, com suas próprias necessidades e contextos familiares. As soluções para os desafios que as crianças enfrentam devem ser reflectidas e seleccionadas de forma sensível e empática, levando em consideração a realidade individual de cada uma delas.
Quanto mais as crianças brincarem, maior será a disponibilidade para aprender?
Sem dúvida alguma. O brincar constitui algo natural e espontâneo no desenvolvimento. A relação entre aprendizagem e o brincar está bem assente. O brincar promove o desenvolvimento de competências cognitivas, sociais, emocionais e motoras.
É fundamental que as crianças tenham tempo para brincar de forma natural e espontânea, ou seja, momentos para expressarem os seus interesses, vontades e motivações. Através do brincar as crianças exploram, experimentam e constroem o seu próprio conhecimento. São nas brincadeiras simples e espontâneas, como brincar às casinhas, ao faz-de-conta ou com as bonecas, que as crianças constroem cenários imaginários, assumem diferentes papéis e criam diálogos, estimulando a sua criatividade, a comunicação e a resolução de problemas. Com estas brincadeiras, as crianças imitam situações do dia-a-dia, desenvolvendo a imaginação, a empatia e a capacidade de adaptação.
Ao brincar ao ar livre, por exemplo, as crianças observam a natureza, descobrem diferentes texturas, cheiros e sons, e desenvolvem uma visão holística do mundo. Já nas brincadeiras através dos jogos e desafios, as crianças esforçam-se para superar obstáculos, desenvolvendo competências de perseverança e de gestão emocional, como gerir a frustração de perder a vez no jogo.
O brincar é, portanto, um investimento no futuro das crianças. Ao garantir que as crianças tenham tempo e espaço para brincar livremente, estamos a ajudá-las a tornarem-se criativos, resilientes, autoconfiantes e com capacidade de aprendizagem ao longo da vida.
O nosso sistema de ensino deveria incluir mais tempo de brincadeira, dentro e fora das salas. Durante o brincar, a criança desenvolve inúmeras ferramentas e competências fundamentais para as aprendizagens escolares, nomeadamente, resolução de problemas, criatividade, raciocínio lógico, atenção e concentração, contribuindo positivamente para o desempenho académico. O brincar não se constitui, apenas, como uma actividade divertida, mas sim uma necessidade fundamental para o desenvolvimento integral das crianças.
Actualmente, observa-se um aumento de doenças cardiorrespiratórias, pulmonares, excesso de peso e diabetes nas crianças. Nos Açores, estamos à frente da média nacional no que toca à obesidade infantil… Que factores contribuem para tal?
Na minha opinião, há vários factores que contribuem para esses resultados. Uma das principais razões poderá ser o tempo excessivo que as crianças e jovens passam, hoje em dia, em actividades sedentárias. Além disso, ainda existem zonas habitacionais sem estruturas, parques infantis e dificuldade de muitas famílias no acesso a actividades extracurriculares. Estes aspectos, aliados a uma alimentação inadequada, são factores que, a meu ver, contribuem para o sedentarismo e consequentemente para a obesidade infantil.
Que estratégias poderão ser úteis aos pais para que as crianças passem menos tempo ligadas aos ecrãs e tenham mais tempo para conviver com a família e os amigos, e mais contacto com a natureza?
É importante, junto das crianças, estabelecer e definir limites claros e consistentes no que se refere à utilização de ecrãs, incentivando e oferecendo alternativas que não envolvam recurso a tecnologias. Contudo, as crianças aprendem por imitação e vão seguir os exemplos das suas figuras de referência. O exemplo deve partir da família. Os pais deverão limitar e controlar a sua própria utilização de ecrãs, fomentando mais momentos de qualidade em família e criando rotinas diárias saudáveis como por exemplo, desenhos, pinturas, jogos de tabuleiros, leitura e caminhadas e actividades ao ar livre em família.
Quais são os sinais de alerta a que os pais devem estar atentos no que diz respeito à saúde mental dos seus filhos?
Existem vários sinais de alerta. Diria que os principais e mais facilmente observáveis pelos pais prendem-se com o isolamento social, como por exemplo, desistir de actividades ou evitar momentos de socialização com amigos e familiares, alterações no sono e nos hábitos alimentares, como dificuldade em adormecer e mudanças repentinas de apetite, mudanças no comportamento e no humor e desinteresse ou recusa pela escola.
Que conselhos dá aos pais para promoverem um ambiente saudável e seguro para o desenvolvimento emocional dos seus filhos?
É necessário um envolvimento contínuo e consciente dos pais no desenvolvimento emocional dos filhos. Diria que tudo começa na relação. Conheçam os interesses dos filhos, descubram o que faz os olhos deles brilharem. É importante e fundamental os pais conhecerem os filhos! Conhecerem as características únicas de cada criança, as suas preferências sensoriais, as suas competências cognitivas, motoras e emocionais. Criem momentos de interacções prazerosas, validem as vossas emoções e as emoções dos vossos filhos.
No entanto, a responsabilidade por criar um ambiente propício ao desenvolvimento saudável das crianças não deverá recair apenas sobre as famílias. Esta é uma missão de todos nós, enquanto comunidade e inclui contextos como escolas, governos e empresas. Trabalharmos juntos, em rede, pode constituir-se como uma excelente alavanca para um futuro onde as crianças tenham a oportunidade de brincar livremente, explorar o mundo com curiosidade e desenvolverem-se plenamente.
Como é que o NIITE aborda a questão da saúde mental infantil nas suas intervenções?
O NIITE oferece várias respostas clínicas e terapêuticas especializadas ao nível da prevenção, avaliação e intervenção em saúde mental e desenvolvimento infantil que inclui a resposta aos familiares/adultos. A nossa equipa, em conjunto com as famílias e com outros profissionais da saúde e da educação, desenvolve planos individualizados e personalizados às características, preferências e necessidades de cada criança, considerando o potencial dos seus contextos e intervenientes.
De que forma o NIITE apoia as famílias que têm crianças com necessidades especiais?
O NIITE disponibiliza às famílias orientação, apoio, intervenção clínica e formação sobre as necessidades específicas dos seus filhos e das suas, enquanto pais, cuidadores e pessoas. Reconhecemos a importância de cuidar de quem cuida e continuaremos a investir na construção de uma rede de cuidados abrangentes e multifacetados capazes de dar resposta às necessidades e expectativas das famílias com crianças que apresentam necessidades do foro da saúde mental.
A promoção do bem-estar familiar constitui-se como um alicerce na relação positiva e afectiva entre pais e filhos, promovendo a vinculação segura. O apoio integral e humanizado ao sistema familiar, disponibilizado pela nossa equipa, visa capacitar estas famílias para a superação dos desafios do quotidiano e promover a resiliência familiar, alcançando o bem-estar e a qualidade de vida do todo e de cada uma das suas partes.
Que mensagem gostaria de dedicar às famílias neste dia?
Que aproveitem cada minuto com os vossos filhos e em família.
A infância passa a correr e somos nós, os adultos de hoje, responsáveis pelos adultos de amanhã. Cabe a nós proporcionar às nossas crianças um espaço seguro, acolhedor, de amor, que permita florescer o seu potencial. Criem memórias positivas, vínculos fortes, relações afectivas recíprocas e de confiança. As crianças não são exigentes, apenas pedem o nosso tempo, a nossa presença, atenção e afecto.
Carlota Pimentel