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“ A democracia tem de ser mais saudável,e o exercício da política, mais responsável menos partidário e mais solidário”

Sidónio Bettencourt, o homem da rádio e da ilha que toca o céu, o seu Pico e as memórias das Lajes. A sua escrita sibilina numa entrevista em que olha para o seu interior e, ao mesmo tempo, memoriza a trajectória que tem seguido no mundo, sem nunca esquecer a neta. De entre o que sublinha na entrevista, ficam alguns recados que o jornalista regista: “O centralismo nacional é profundo e não tem cor política e é muito difícil combatê-lo no dia-a-dia.” Acentua que “a democracia tem de ser mais saudável, e o exercício da política, mais responsável, menos partidária e mais solidário.” E, como sublinha em sequência, “a pobreza e o atraso estrutural, que fizeram da nossa canção uma arma ”a paz, o pão, saúde, educação”, ainda estão por cumprir.” Realça que “…o mero funcionamento das regras de mercado deixem os Açores deslumbrados e até inibidos de reclamar o direito à sua voz.” E não tem dúvidas de que a inteligência artificial “é o futuro que já chegou”. Cada açoriano com a sua entrevista. Esta é a de Sidónio Bettencourt que todos ouvimos nas manhãs da Antena 1 Açores e que, agora, passamos a conhecer um pouco melhor! Com destaques da nossa responsabilidade.

(…)encontrar no arquipélago as vozes pela geografia que as domina, mas pela religiosidade, vinham descobrir a singularidade de uma comunidade que se distinguia pelo arrojo, pela luta, pela arte, que do mar e da terra inventaram a sua forma de subsistência. Eu gostava de os ver; de vir a ser como eles. Ir à baleia sem pagar e, depois, contar histórias. Então, ter sido mesmo ali, naquele sítio… Se era para ser homenageado, então, ali foi o lugar certo e fico muito grato por isso. Com os meus filhos, naquele espaço da “pedreira” atrás da baliza do campo de futebol; ao lado da Igreja Matriz de Nossa Senhora de Lourdes; da minha escola primária e olhar os quintais, de todos os meus queridos parentes e amigos de infância, ali senti que estávamos todos juntos e que a condecoração na minha pessoa era mesmo para toda aquela gente da Rua de Baixo. Tudo o que a vida me deu e retirou passou pelas Lajes do Pico.

Sente-se picaroto, mas não só pelo facto de ter ascendentes naturais do Pico. Porquê?
Toda a minha família é das Lajes do Pico. Meu pai era militar e foi mobilizado para o mato em Angola quando a guerra rebentou em 1961. Foi curiosamente com Otelo. O avô meteu-se numa traineira e foi a São Miguel trazer-nos para o Pico: A filha, minha mãe Alda, a minha irmã Teresinha, e eu. Vivi três anos numa casa típica de baleeiro, agricultor, estivador; vivi numa casa com atafona e poço de maré; de forno de lenha, de luz a petróleo, carro de bois e animais: vaca, burro, galinhas e porco. Uma casa de milho e laranjas da quinta. Uma casa de luz a petróleo invadida tantas vezes pelos ciclones de mar do oeste. O meu professor, Manuel Moniz Bettencourt, irmão do meu pai, era tio e padrinho e tratava-me como um filho que tinha o pai na guerra. Vivi nas Lajes nos anos 60 quando o carteiro dizia “hoje não há cartas nem aerogramas para tua mãe”. Mais tarde, depois de uma ausência de três anos no continente, regressei saudoso, todas as férias grandes para essa terra que me marca a alma de todos os invernos. O Pico, as Lajes do Pico, estiveram sempre comigo nas horas de alegria, de perda, de profunda tristeza e mágoa. Como não ser picaroto? os agentes e líderes de comunidade; e sempre que possível com a espontânea adesão dos ouvintes, das pessoas anónimas: uma simples chamada telefónica, um e-mail, um fax, uma mensagem no Facebook, um contacto na rua, uma carta (adoro receber cartas) uma palavrinha no café, no canto da rua, ao virar da esquina…andar por aí, de terra em terra, ao encontro das pessoas mantendo o espírito, a mística, a razão de ser da Rádio, expressando o grande desafio de compromisso com o Serviço Público num arquipélago como o dos Açores e, assim, permitir uma maior consistência diversificada, entre a rádio e os seus ouvintes, o mesmo é dizer, entre as diferentes comunidades do mundo rural e urbano e a visibilidade das suas singularidades sociais, recreativas, culturais e desportivas. Num apelo constante à cidadania, encontrar no arquipélago as vozes que distinguem as ilhas, não tanto pela geografia que as domina mas pelos cidadãos que as habitam. Levar a rádio a todas as ilhas e dar voz às ilhas na rádio. A descentralização é um factor inevitável como contributo à unidade e à universalização. Acabámos por constituir uma família, uma família repartida por ilhas, e por comunidades na América, no Canadá, na Alemanha, no Brasil, por todo o lado…

Qual o Atlântida, programa da RTP Açores, que ainda não fez e gostava de fazer?
Fazer uma Atlântida no cimo da montanha do Pico? Bela ideia. Um Atlântida no cimo da Montanha do Pico. Já estivemos em todos os concelhos de todas as ilhas, em Porto Santo, em Toronto, Mississauga, Dia de Portugal em New Bedford, em Lisboa, em San Carlos no Uruguai, em São José da Califórnia, em Fall River e Boston, em breve em Santa Catarina – Brasil, mas de facto, essa ideia é fantástica, ainda, por cima, inspirada na recente, saudável e exemplar, peregrinação do Bispo, D. Armando Esteves Domingues. Partindo do princípio de Vasco Pereira da Costa de que “ o pico do Pico é o cais do céu” resta-nos cumprir Almeida Firmino: “Descobre-te montanha sol! Temos que fecundar/ o ventre da terra/ de todas as raízes/ Transformar os homens/ em Homens felizes…”

É um jornalista premiado, é poeta, é uma das vozes inconfundíveis dos Açores, já foi deputado, o que lhe falta fazer ainda?
Tudo. A vida está sempre em renovação. O que me move são as causas. Embora sinta que há cada vez menos no horizonte político do país e dos Açores, a verdade é que há desafios que devíamos acompanhar, liderar. Não gosto do jornalismo de agenda e de uma rádio – pregão que sirva de suporte apenas para os “outros” debitarem mensagem pré-feita, quantas vezes publicitária e manipuladora. Na rádio ou por ser dela, fiz de tudo. Sou do tempo em que ser-se “profissional de rádio” significava estar preparado para todas as frentes no domínio dos géneros de produção e informação, até ao relato de futebol e hóquei em patins, apresentação de espectáculos, ou interpretação de textos de poesia ou teatro radiofónico. Tínhamos que saber escrever para dizer. A voz era essencial mas o poder da comunicação passou a ganhar força. Com os directos, seja em que circunstância fosse, cerimónias solenes, parlamentares, enviado -especial, enfim muitas, o jogo entre o imprevisto e o improviso, espevitou o imaginário e a criação; obrigou a uma preparação prévia sempre muito cuidada e rigorosa.

Qual o teu género preferido?
O meu género de eleição foi sempre a “Grande – Reportagem” que hoje nos faz tanta falta; o debate, a criação de novas dialécticas para liderar e exigir pensamento. Percebi e aprendi muito no Parlamento, enquanto deputado, mas só me ajudou a ser mais e melhor jornalista; a perceber dos dois lados da barricada, as virtudes e todos os defeitos. Gostava ainda de Manuel Tomás “O que me move são as causas. Embora sinta que há cada vez menos no horizonte político do país e dos Açores, a verdade é que há desafios que devíamos acompanhar, liderar. Não gosto do jornalismo de agenda e de uma rádio – pegão que sirva de suporte apenas para os “outros” debitarem mensagem pré-feita, quantas vezes publicitária e manipuladora.” Conversar com os pioneiros vivos da Autonomia; gostava de editar em livros diferentes, as declarações de amor ao Pico; muito do que recolhi aqui nas ilhas e na minha experiência profissional por esse mundo fora; gostava de escrever uma carta à minha neta Benedita, com tudo o que o avô bebeu, da Suécia, ao Uruguai; da Angola, a Tijuana; de San Diego, a Bruxelas, de Toronto a São Luís do Maranhão, de Florianópolis, a Las Palmas; de New Orleans às Nações Unidas; da visita do Papa João Paulo II à chegada de Bill Clinton à Casa Branca; sei lá, gostava de lhe contar os Açores à luz do mundo que eu vivi. Mas, viajar e conhecer, é sempre aliciante nesta fase da vida.

Assistiu ao nascimento da Autonomia e acompanhou o seu desenvolvimento. Hoje volta-se a falar muito de centralismos e de incompreensões do centralismo nacional. Como analisa o momento actual e acha que já acabaram todos os centralismos regionais ou as ilhas capitalinas continuam a ficar com a parte de leão?
No início foi a orgânica física dos órgãos de governo próprio; a afirmação de um estatuto autonómico, a criação de infra-estruturas: estradas, portos, aeroportos, escolas, hospitais, suas localizações, criação de “pólos de desenvolvimento”; as dinâmicas na agricultura e nas pescas, nos transportes, na integração na CEE; o reconhecimento do estatuto das Ilhas Periféricas Europeias, enfim era o tempo da afirmação tendo por base ainda, uma lógica de ex-distritos, com seus preponderantes líderes, que se prolongou demasiado no tempo no contexto de uma “ Região Autónoma” presumível impulsionadora de um “desenvolvimento harmónico”. O centralismo nacional é profundo e não tem cor política. Muito difícil combatê-lo no dia – a – dia. No que diz respeito aos Açores em nome de um conceito constitucional perdemos de vista a realidade “arquipélago”, ou como diz um verso de um poema meu “a minha terra é a minha ilha e a minha ilha é a minha gente”. Mas, se é verdade que, com o advento das auto-estradas da informação, o mundo está muito mais perto deste arquipélago de cidadãos, não deixa de ser preocupante que o mero funcionamento das regras de mercado deixem os Açores deslumbrados e até inibidos de reclamar o direito à sua voz; se deixam afundar neste contentamento – descontente que pode prejudicar a inserção das nossas singularidades sócio – culturais num espaço mais amplo da comunidade nacional, relação com as comunidades emigrantes espalhadas pelo mundo e até paradoxalmente, alimentar o fosso entre “ilhas grandes” e “ilhas pequenas”, “ilhas mais desenvolvidas” e “ilhas menos desenvolvidas”, “ilhas mais populosas” e “ilhas mais desertificadas”. Nos Açores, as ilhas são gente, apesar de a geografia condicionar, quantas vezes, a vontade política, e os interesses das populações!? Gente com iguais deveres e iguais direitos. Este é o grande desígnio do futuro, levar cada ilha ao limite da sua dimensão, sabendo que algumas precisam de mais gente, gente nova, e população flutuante duradoira, para que o “ mercado” possa funcionar. As dinâmicas socioeconómicas não impostas por lei e cada ilha deve encontrar a sua natural vocação, como tem sido o caso exemplar da ilha do Pico. Outras, porventura, insistem com alarido apenas e só numa evocação histórica sem correspondência directa nas suas propostas, pouco racionais e modernas.

Qual a sua maior preocupação em relação ao futuro? A sua geração está a deixar um mundo melhor ou nem por isso?
O mundo está em mudança. A todos os níveis; geopolítico e geoestratégico. Vem aí uma nova ordem mundial. E não é por causa da pandemia como se pensou. É a correlação de forças entre as superpotências, ou lá o que isso significa, e as economias emergentes. O meu mundo já não andava nos carros de bois de meu avô e a minha neta não sabe o que é uma ardósia e um caderno de duas linhas. Ela tem dez anos e ajuda-me a descobrir todas as potencialidades das aplicações que vêm no telemóvel. A mudança é sempre um choque e, por isso, temos sempre a tendência de dizer ”no meu tempo, é que era…” ou “ os jovens de hoje, não querem nada”. Eu acredito nesta malta que vem aí. Há gente muito bem preparada, mas nós, que sofremos com a guerra em África e fizemos Abril, não estamos agora a saber conduzir o nosso peque. “As dinâmicas socioeconómicas não impostas por lei e cada ilha deve encontrar a sua natural vocação, como tem sido o caso exemplar da ilha do Pico. Outras, porventura, insistem com alarido apenas e só numa evocação histórica sem correspondência directa nas suas propostas, pouco racionais e modernas.” “Entre o latim e a matemática, duvido que uma criança sobreviva sozinha dentro de um telemóvel, com sabedoria e competência. Mas felizmente há crianças brilhantes. Espero é que os responsáveis sejam razoáveis e não inventem demais. ” no mundo pelo melhor caminho. A democracia tem de ser mais saudável, e o exercício da política, mais responsável, menos partidária e mais solidário. A pobreza e o atraso estrutural, que fizeram da nossa canção uma arma ”a paz, o pão, saúde, educação”, ainda estão por cumprir.

A internet, a digitalização do nosso tempo, a inteligência artificial, o telemóvel é o paraíso da sustentabilidade e da actualidade?
Alguns são uma ferramenta para ajudar, para facilitar, para deixar tempo para criar. São facilitadores, não substitutos. A inteligência artificial é um mundo que me mete medo. Ainda está tudo no início e eu já não tenho capacidade para absorver. Eu que vim de brincar com carrinhos de lata e sou do tempo de levar um dia à espera de uma chamada telefónica para Lisboa, e já era avanço de gente rica, ainda não estou preparado para muita coisa, mas a inteligência artificial, não há dúvida é o futuro que já chegou.

Como analisou o facto de crianças do segundo ano de escolaridade (8 anos) terem feito provas em suportes digitais?
Faz-me impressão, sim. Espero que tenha sido uma fase de transição experimental e que haja conclusões. Não sei se estamos a matar o passado ou no advento do futuro. Acho que não há futuro sem passado. Ou seja, acho que vai ser sempre fundamental saber tabuada, e saber escrever, mesmo que em suporte moderno, em tecnologia de ponta. Duvido é que sem livros se tenha paixão pela leitura, logo pela escrita. Já hoje, há pessoas que me dizem que não gostam de ler ou, pior, que nunca leram um livro ou que não têm tempo a perder com livros. Espero que as crianças não sejam cobaias de infundados experimentalismos. Estamos sempre a desafiar o futuro, mas pouco consistentes, às vezes muito teóricos e, cientificamente, pouco comprovados. Entre o latim e a matemática, duvido que uma criança sobreviva sozinha dentro de um telemóvel, com sabedoria e competência.

In Ilha Maior

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