Os leitores que fizeram os exames nacionais do 12.º ano para admissão ao ensino superior lembram-se da pressão sentida, uma vez que grande parte do nosso futuro dependia do desempenho nestas provas.
Nos EUA, o famoso SAT é um exame realizado desde 1926 pelos alunos do ensino médio, o equivalente ao ensino secundário português, e que serve de critério para a admissão nas universidades americanas. O exame avalia os conhecimentos do aluno em três áreas: Matemática, Linguagem e interpretação de textos e Escrita.
Em 1982 todos os alunos erraram a pergunta 17 da área de matemática do SAT. A questão consistia em determinar o número de voltas que um círculo C1 dá em torno de um círculo C2 de modo a regressar ao ponto de partida, sabendo que o raio de C2 é o triplo do raio de C1 (ver Figura 1). As opções de resposta eram: (I) 3/2; (II) 3; (III) 6; (IV) 9/2; (V) 9. A salientar que estes exames são elaborados para serem respondidos rapidamente. Para termos uma ideia, nesse ano os alunos tiveram 30 minutos para resolver 25 perguntas.
Caro leitor, será que consegue resolver a questão colocada? Qual seria a sua resposta? Analisemos. A opção (I) não está correta. Já a resposta (II) parece bem, pois sendo o perímetro de uma circunferência com raio r igual a 2 x π x r, tem-se que o perímetro de C1 é 2πr e o perímetro de C2 é 2π x 3r = 6πr. Deste modo, ao calcularmos a razão entre os perímetros de C2 e C1 obtemos 6πr/2πr = 3. Contudo, a opção (II) está errada, tal como todas as outras. Ganhei a sua atenção?
O motivo pelo qual ninguém acertou na resposta deve-se ao facto do próprio júri de elaboração do exame se ter enganado, não incluindo a opção correta. Tais erros não deveriam acontecer, pois estas provas têm um rigoroso controle de qualidade. Note-se que durante décadas esta foi a única prova que os estudantes realizavam para entrar nas universidades americanas. Dos 300 000 candidatos apenas três, notavelmente Shivan Kartha, Bruce Taub e Doug Jungreis, escreveram para a College Board, a empresa que elabora o SAT, a reclamar da pergunta.
Os três estudantes estavam confiantes de que nenhuma das respostas estava correta, como referiu um diretor da College Board: — Eles não disseram que tinham encontrado respostas alternativas ou que talvez estivéssemos errados. Eles afirmaram “vocês estão enganados” e provaram isso.
Proponho começarmos com uma versão mais simples do problema em que os dois círculos têm o mesmo raio. A Figura 2 descreve uma visualização sequencial de como se procede à contagem. Partindo da posição inicial a) o círculo C1 começa a girar no sentido dos ponteiros do relógio em torno de C2. Na posição b) efetuou meia volta e em c) completa uma volta. Continuando a girar, na posição d) percorreu uma volta e meia e em e) completa as duas voltas. O leitor poderá facilmente replicar o problema utilizando, por exemplo, duas moedas idênticas e comprovar o descrito na Figura 2. Assunto arrumado.
E se o círculo C1 percorresse um caminho plano de comprimento igual ao da circunferência que limita C2 em vez do caminho circular descrito no parágrafo anterior? Note-se que os dois caminhos têm exatamente o mesmo comprimento (2πr). A Figura 3 descreve o rodar do círculo C1 do ponto A até ao ponto B, onde completa uma única volta, percorrendo todo o trajeto. Afinal são necessárias uma ou duas voltas!? Este problema é conhecido como o “paradoxo da rotação da moeda”.
Eis o busílis da questão: no caminho plano o ponto B não coincide com o ponto A e o problema requer que o círculo C1 regresse à posição inicial A, o que não acontece no movimento plano descrito na Figura 3 em que o círculo C1 acaba o percurso em B. Então como fazer? Podemos deformar o caminho plano de forma a que o ponto B coincida com A. Intuitivamente, imagine que o caminho é uma barra de metal que vergamos contornando, por exemplo, um círculo que quando fechado faz coincidir o ponto A com o ponto B. A Figura 4 ilustra tal movimento. Observe-se o que acontece ao círculo C1 durante esta operação de junção de B a A. No início o círculo está na posição B e ao moldarmos o caminho em torno do círculo a tracejado, C1 vai rodando no sentido dos ponteiros do relógio. No segundo passo a figura ilustra meia rotação do círculo, que continua a rodar até as extremidades B e A coincidirem. Este movimento traduz-se na outra volta que faltava quando o círculo percorreu o trajeto plano. Em resumo, para percorrer o trajeto de A a B o círculo C1 dá uma volta. A segunda volta ocorre quando se deforma o caminho plano para que A e B coincidam, fazendo assim C1 voltar à posição inicial. Note-se que nesta segunda volta o círculo não se move em relação à posição B e como tal não se desloca, fazendo com que em ambas as situações C1 dê duas voltas e percorra exatamente a mesma distância 2πr.
O problema é interessante por apresentar esta dicotomia entre movimento circular e movimento plano e por ser contraintuitiva que C1 complete mais uma volta do que o esperado no movimento circular. Não foi à toa que o problema escapou aos membros do júri de elaboração do SAT e à quase totalidade dos alunos.
Entre os poderes da matemática encontram-se a sua capacidade de abstração e de generalização. Vamos então encontrar uma fórmula que descreva problemas semelhantes ao apresentado, para os quais já fomos construindo toda a intuição necessária à sua resolução. Observe-se a Figura 5. Sem entrar em grandes detalhes de natureza Física, peço ao leitor que entenda que os pontos da circunferência que delimita C1 percorrem exatamente o mesmo espaço que o seu centro quando esta roda em torno de C2, pois C1 não desliza ou derrapa quando se move. Assim sendo, o centro de C1 percorre a circunferência C3 (a tracejado) cujo raio é r + r = 2r. O perímetro desta circunferência é de 2π x 2r = 4πr. Se calcularmos a razão entre este comprimento e o de C2 (4πr/2πr = 2) concluímos que C1 dá duas voltas, tal como ilustramos anteriormente de forma intuitiva.
Generalizando. Seja r o raio do círculo que roda em torno de outro círculo de raio R. Ao calcular a razão entre os perímetros das circunferências com raios R + r e r, obtém-se 2π(r + R)/2πr = 2πr/2πr + 2πR/2πr = 1 + R/r. Assim, para calcularmos o número de voltas que um círculo de raio r dá em torno de outro de raio R, basta dividir os raios e adicionar 1.
Tratemos agora da questão do exame. Para uma melhor visualização, o leitor pode fazer um modelo em cartão com dois círculos em que o raio de um é um terço do raio do outro ou, em alternativa, pode simplesmente aplicar a fórmula a que chegámos. Ora, 3r/r + 1 = 3 + 1 = 4. Foi este o erro no problema 17 do SAT de 1982, o júri incluiu a opção 3, que resulta de 3r/r, e não a alternativa correta 4, esquecendo-se de adicionar 1.
Segundo o então candidato Doug, atualmente professor de matemática na Universidade da Califórnia, Berkeley, “Na altura resolvi muitos problemas de matemática, pois entrava em muitas competições. Respondi à questão escolhendo 3, pois era a opção que mais se aproximava da resposta certa que é 4.”
Após analisarem as cartas dos estudantes, a College Board admitiu publicamente o erro e anulou a questão a todos os candidatos, ajustando as notas. Tal alteração teve impacto nas oportunidades educacionais dos alunos, uma vez que algumas universidades e bolsas de estudo são rigorosas na pontuação mínima dos testes, e custou mais de 100 mil dólares.
Este não foi o único erro no SAT em quase 100 anos, contudo, atualmente, os erros têm menor impacto, pois após o Covid-19 quase 80% das faculdades de graduação dos EUA deixaram de exigir esse exame.
Curiosamente, aquele exame de 1982 acabou bem para Doug que obteve a classificação máxima na prova e muito antes do sucedido já tinha decidido licenciar-se em matemática. Na sua vida profissional, já elaborou questões para competições de matemática, sendo muito cuidadoso na sua escrita para evitar que os erros do passado voltem a repetir-se.
Caro leitor, a repetir-se que sejam as férias! Bom descanso, muitas voltas e bom regresso ao ponto de partida.
Maria do Carmo Martins