Começou por praticar outros desportos mas cedo percebeu que o futebol era a sua paixão. Por momentos conciliou o jornalismo com o futebol mas, a certa altura, o futebol venceu. Mariana Cabral foi subindo nos escalões de formação até chegar à equipa principal do Sporting. Há alguns dias esteve numa visita relâmpago a casa da família, no Pico da Pedra. Uma visita tão rápida que nem deu para nos vermos. Apesar disso, aceitou dar esta entrevista e ao Correio dos Açores conta o seu percurso, o porquê de ser treinadora e que objectivos terá o Sporting Clube de Portugal para a próxima época. Para os açorianos que vivem o futebol com paixão e são do sporting, Mariana Cabral é um motivo de orgulho.
Correio dos Açores – Começou por ser jogadora do União Micaelense e depois foi jogar para o Odivelas. A que se deveu esta mudança?
Mariana Cabral (Treinador da equipa de futebol sénior feminino do Sporting Clube de Portugal) – Em São Miguel joguei ténis muitos anos, era federada. Mas também gostava muito de jogar futebol, que era algo que fazia na escola. A certa altura, comecei a jogar na equipa do União Micaelense, na Inatel ou num campeonato do género. Desisti do ténis porque percebi que preferia estar rodeada por uma equipa do que propriamente estar a jogar sozinha. Era mais desafiante.
Quando vim estudar para Lisboa continuei a jogar. Primeiro, no Odivelas, depois no Futebol Benfica, mais conhecido como FóFó, e depois para o 1º Dezembro, que, na altura, era a grande equipa que existia antes de haver as equipas profissionais. Era o campeão e ia à Liga dos Campeões. Obviamente que foi uma grande experiência, mas não éramos profissionais.
Era um mundo de diferença em relação ao que existe hoje. As jogadoras, hoje em dia, são profissionais e fazem disso a sua vida e a sua carreira. Na altura, ninguém fazia disso carreira.
Terminou a carreira de jogadora aos 26 anos. A que se deveu?
Na altura já estava a trabalhar, era jornalista, e depois ia à noite treinar para o 1º Dezembro, em Sintra. Quando estive no Odivelas, tive uma treinadora, a Helena Costa, que me fez perceber um bocadinho do que era o treino, o que era o jogo e porque se jogava de certa forma. Fiquei com vontade e ela incentivou-me a ser treinadora. Nessa altura, comecei a tirar o curso de treinadora à noite e comecei a estagiar, como treinadora nas escolas de formação do Benfica, na altura com rapazes.
Chegou a uma altura em que não dava para conciliar tudo e, como disse, a carreira de jogadora não existia, era apenas um part-time onde só eram pagas as despesas. Entre escolher uma e outra coisa, preferi continuar a evoluir na carreira de treinadora que era algo que estava a dar-me muito prazer. Fiquei com essa escolha porque também o tempo não dava para tudo. É que, durante o dia, ainda estava a trabalhar como jornalista.
Como foi chegar ao Sporting que é um dos maiores clubes de Portugal?
Comecei a ser treinadora nas escolas de formação do Benfica e depois fui treinar no Estoril de Praia, onde aí sim, já treinei futebol feminino. Enquanto estive no Estoril, uma das pessoas que estava lá e era a directora de marketing, foi a pessoa que foi reiniciar o futebol feminino no Sporting, a Raquel Sampaio. Ela convidou-me e, na altura, eu fui coordenar a formação do futebol feminino e treinar as juniores.
Foi uma diferença bastante grande. É um clube muito maior, onde há expectativas muito maiores das pessoas em relação aos outros clubes do que, por exemplo, no Estoril, onde estava. Foi uma aprendizagem também e foi bom. Como fomos iniciar o projecto, não havia nada feito, nós é que fizemos tudo. No fundo, colocamos as bases para o futuro na formação. Foi assim que o futebol feminino do Sporting foi crescendo e estive lá quatro anos até me convidarem para a equipa principal.
Como é que recebeu este convite?
Com alguma surpresa mas, ao mesmo tempo, com expectativa e com vontade. Já há algum tempo que vinha a ponderar a minha situação profissional, porque era jornalista durante o dia e ao fim do dia dava treino. Todos sabemos que ser jornalista não é fácil, é uma carreira onde se trabalha muito e onde se ganha pouco. Gostei muito do meu trabalho no jornal Expresso, – na minha opinião o melhor jornal do país -, mas, a certa altura, dava-me mais prazer e mais vontade estar no futebol do que propriamente no trabalho que tinha. Isso é sinal de que queria mudar. Já tinha tomado a decisão de mudar de carreira mesmo antes de surgir o convite do Sporting.
Curiosamente, antes do convite do Sporting, surgiram convites de outros clubes portugueses, mas depois apareceu o convite do Sporting e tudo se encaixa e foi fácil, para mim, aceitar embora tenha sido uma mudança de vida muito grande, porque não é algo a que eu estivesse habituada. Tinha um trabalho completamente diferente e, quando mudamos de repente de rotina e do que fazemos no dia-a-dia, é um impacto grande na nossa vida pessoal e social. A verdade é que ser treinador, seja no masculino ou no feminino, é um trabalho muito duro. As pessoas não têm noção do peso que é, não só em termos de volume de horas mas também em termos de responsabilidade, stress, liderança e ter de dar a cara pelas coisas. É um trabalho muito desgastante mas, obviamente, também muito recompensador para quem gosta do jogo, para quem gosta de futebol.
Como se define como treinadora?
Defino-me como uma treinadora que tem uma paixão muito grande pelo jogo, particularmente pelo jogo ofensivo. Gosto que as minhas equipas ataquem muito e que troquem bem a bola, atacando a baliza adversária. Isto tem a ver um pouco com a minha personalidade. Não gosto de estar parada, sou um bocadinho impaciente e tenho um bocadinho de mau feitio. Sou um bocadinho vulcão dos Açores e as minhas equipas reflectem essa personalidade. De quererem ir sempre atrás do que nós queremos e não ficar à espera que as coisas nos caiam no colo, sabendo que muitas vezes é difícil. Num jogo de futebol temos de ir atrás da felicidade para termos mais probabilidades de ser felizes.
Vencer o campeonato é um objectivo na próxima época?
No Sporting vencer é sempre o objectivo em todos os jogos, em todos os troféus e em todas as épocas. Será sempre esse o objectivo. Temos as nossas condicionantes e a nossa forma de estar. O clube tem um ADN Sporting, de aposta na formação, de valores que são muito importantes para o clube e, portanto, dentro desse contexto, e sabendo que não jogamos sozinhas, uma vez que temos adversárias de grande qualidade e que têm outras condições financeiras, fazemos o nosso trabalho. Pensamos em nós e tentamos melhorar e evoluir. Na época passada creio que jogamos muito melhor do que nas épocas anteriores mas, infelizmente, não conseguimos ganhar nenhum troféu. O que fica para a história é que não ganhamos nenhum troféu. Se calhar foi o ano em que trabalhamos melhor, em que tivemos mais capacidade de fazer as coisas, em que acreditamos mais e acabamos por não ter este prémio no final.
Há algum campeonato em particular onde gostasse de treinar?
Não. O campeonato que eu gosto é o futebol. Na verdade, desde que as pessoas gostem do futebol feminino, desde que os clubes tenham condições, isso é que é importante. Desde que se perceba, e acho que em Portugal não percebemos bem, que o futebol feminino é um produto e tem de ser tratado como um produto, portanto temos de vender este produto às pessoas, que tem um potencial gigantesco. Nos Estados Unidos e em Inglaterra falamos de clubes que estão a gerar já dezenas de milhões de euros de receitas quer de bilheteira, quer de transmissão televisiva, quer de merchandising ou de transferência de jogadoras. Em Portugal, ainda não percebemos isso e ainda tratamos o futebol feminino como apenas uma coisa engraçadas que as pessoas estão a começar a gostar de ver, em vez de tratarmos como um produto que é o que tem vindo a ser feito para que o futebol feminino possa crescer mais. Gostaria de estar num sítio em que as pessoas apreciem o futebol por aquilo que ele é e onde eu possa ser só treinadora. Muitas vezes custa-me só ser treinadora, tenho de me preocupar com outras coisas. Com tentar fazer com que o futebol feminino evolua em Portugal. Não é bem o meu trabalho mas é algo com que me preocupo.
Em sua opinião, o que falta para que o futebol feminino se desenvolva nos Açores?
Eu não posso falar com grande conhecimento de causa e acho que não seria justo também fazer uma avaliação ou uma análise porque não tenho grandes informações. Pegando um bocadinho no meu tempo e vendo as equipas que existem agora, não é fácil fazer com que o futebol feminino cresça numa ilha. Há poucas raparigas para jogar, as praticantes são em menor número e, se calhar, as que querem praticar não têm sítios perto delas onde possam jogar.
Recentemente, participei numa festa organização pela Associação de Futebol de Ponta Delgada e pela Embaixada dos Estados Unidos que foi absolutamente excepcional. Vimos centenas de raparigas a jogar nesse dia e foi algo que me deixou muito feliz. É algo que deve continuar porque elas têm de jogar, se querem jogar. Tem de haver espaço nas escolas para elas jogarem. Espero que já não exista a separação que existia no meu tempo, onde os rapazes iam jogar à bola e as raparigas iam fazer ginástica, na Educação Física. Os clubes, e isto é a parte mais difícil, também deveriam ter espaço, tanto no lado misto, se tiverem competências para isto, como ter, efectivamente, uma equipa feminina onde as jogadoras possam praticar e possam ter o prazer pelo jogo à vontade. Nesse sentido, fico muito contente que o clube da minha terra, o Vitória do Pico da Pedra, tenha este espaço e esta aposta no futebol feminino porque é preciso que haja esses espaços para as jogadoras poderem jogar e para haver campeonatos e haver uma evolução. Não tenho dúvidas que há talento. Às vezes, o talento não tem sítio para se manifestar e onde crescer. Há jogadoras açorianas que estão nos melhores clubes no continente. A Inês Simas foi um caso desses, e vai agora para os Estados Unidos.
Este é um outro aspecto importante. As jogadoras até podem não continuar uma carreira profissional, mas o facto de estarem a jogar enquanto jovens pode proporcionar algo como aconteceu à Inês. Tem uma bolsa de estudo e vai estudar para os Estados Unidos e não tem de pagar absolutamente nada. É excepcional para uma jovem se poder formar e poder continuar a sua vida.
Como tem sido a experiência de ser comentadora do Euro 2024?
Tem sido um enorme prazer para mim. Estou com um painel de pessoas que comentam muito bem o jogo e que eu admiro muito como por exemplo o Carlos Daniel e o Rui Malheiro. Eu quando era jornalista já tinha feito alguns comentários e, tendo esse período de férias, também me permite ter essa possibilidade de comentar o Europeu. Posso dizer que comentar é muito mais fácil do que treinar. O trabalho de comentador, ou comentadora, é o melhor emprego do país.
Que mensagem gostaria de deixar a possíveis futuras atletas de futebol feminino?
Se gostam de jogar futebol, se têm essa paixão, que continuem. Que persigam esse sonho porque nós devemos sempre, na nossa vida, tentar fazer aquilo que nos dá prazer. É para isso que serve a vida. Só vivemos uma vez. No futuro, as jogadoras podem não ser jogadoras profissionais, mas podem ser treinadoras, dirigentes, fisioterapeutas, árbitras ou uma série de coisas.
As experiências que levamos de jogar futebol, de fazer parte de uma equipa são muito boas para nós nos sentirmos bem e confiantes. Também aprendemos a lidar com as adversidades, a lidar com a frustração. Temos de saber perder e saber ganhar. Temos de saber trabalhar em equipa porque só assim é que se avança. O futebol é muito importante para a nossa vida.
Frederico Figueiredo