Na edição de 12 de janeiro de 2018 deste jornal, na secção Correio Económico, publiquei um artigo sob o título em epígrafe, numa altura em que se falava na necessidade de rever o modelo de subsidiação das viagens aéreas dos residentes ao continente português.
Decorridos mais de seis anos (mais de nove anos desde a aplicação do regime de SSM), tudo continuou na mesma, apesar das muitas críticas ao modelo.
Seriam necessárias algumas centenas de páginas para descrever as iniciativas, debates e as opiniões expendidas sobre o assunto nos Açores e na Madeira.
Agora, a nossa Assembleia Legislativa Regional, no uso das suas competências, aprovou a Anteproposta de Lei que, no essencial, preconiza que os residentes paguem às transportadoras ou às agências de viagens não a totalidade da tarifa, mas apenas o valor que lhes cabe suportar (€134 ou €119), dispensando os famigerados reembolsos.
Ouvido no processo, o Ministro das Infraestruturas do actual Governo, preocupado com as fraudes entretanto descobertas, já preconizou as alterações que entende convenientes, mas admitiu a constituição de um novo Grupo de Trabalho com representantes das duas Regiões Autónomas para analisar o assunto e propor alterações.
O sistema actual tem a vantagem da transparência das relações entre o Estado e as transportadoras, pois o pagamento do subsídio é feito ao passageiro. Por outro lado, tem a desvantagem de não incentivar os residentes a procurar as classes tarifárias inferiores, quase sempre disponíveis, mas a optar frequentemente por tarifas que dão mais vantagens, nomeadamente, alteração ou cancelamento sem penalização, bagagem gratuita ou crédito de milhas.
Naturalmente, a questão envolve interesses divergentes.
Os residentes não querem pagar as passagens por inteiro e submeterem-se depois aos inconvenientes de obter nos CTT os reembolsos devidos. Aos residentes na Madeira acresce a reclamação de lhes ter sido imposto um tecto de €400 para o valor a reembolsar, além de que, quando o pagamento da viagem for feito por cartão de crédito, o reembolso apenas pode ser solicitado 60 dias após a emissão da factura ou fatura-recibo, mesmo que a viagem seja concluída antes desse prazo.
Tal como afirmei no meu artigo anterior não se compreende a existência de disparidades entre as soluções adoptadas para as duas Regiões.
Para o Governo da República a preocupação maior decorria do custo excessivo e, agora, também das fraudes. Em 2 de Setembro de 2019, o Primeiro-ministro António Costa, em entrevista ao Diário de Notícias da Madeira afirmou que o SSM: “Como sabemos hoje é um esquema completamente absurdo, ruinoso para as finanças públicas, uma despesa que subiu de 14 milhões de euros para setenta milhões de euros, que não beneficia nenhum residente nas regiões autónomas. Beneficia única e exclusivamente as companhias de aviação e as agências de viagens. Propusemos, desde 2017, transferir para as regiões autónomas o bolo que tinha sido pago no ano anterior, de forma a que cada uma das regiões pudesse, autonomamente, negociar e ajustar à sua realidade específica esse montante.”
Tão absurdas afirmações foram, então, contestadas. No entanto, parece ainda existir a ideia de que o processo do SSM deveria ser regionalizado, conforme preconizado pelo ex-Primeiro-Ministro. Ora, a meu ver isso seria uma manifesta insensatez. Desde logo, porque as Regiões Autónomas iriam assumir uma obrigação integrante do princípio da continuidade territorial que cabe ao Estado assegurar. A transferência do “bolo” não só não dá garantias de que o mesmo seja suficiente, como as Regiões ficariam com o ónus de financiar, como também de garantir o bom funcionamento do sistema. Além disso, as Regiões não têm qualquer capacidade ou poder contratual perante as companhias aéreas, exceptuando, obviamente, a SATA.
E chegamos ao terceiro núcleo de interessados no assunto – as companhias aéreas – que têm sido o principal obstáculo à alteração ao regime. Compreensivelmente, não querem ter de assumir os custos administrativos de fazer os controlos da qualidade de residente, bem como os relatórios demonstrativos das quantias a receber, suportar as perdas por eventuais irregularidades, além de recearem as habituais delongas nos pagamentos do Estado.
Em 2017,a Assembleia Legislativa Regional da Madeira aprovou uma Proposta de Lei com propósitos idênticos aos que constam da iniciativa legislativa agora aprovada na ALRAA. O processo viria a dar lugar à Lei nº 105/2019 de 6 de Setembro destinada a produzir efeitos com o OE de 2020. Acontece, porém, que não chegou a entrar em vigor. Foi suspensa através do Decreto-Lei nº 28/2022, de 24 de Março, com a fundamentação que consta do seu preâmbulo, designadamente, porque implica “a limitação da liberdade contratual das partes (que passou a estar condicionada pela obrigação de as companhias de transportes transacionarem os bilhetes a um valor máximo permitido)”.
Como se sabe a EasyJet ameaçou deixar de voar para a Madeira se a alteração do regime fosse aplicada – Diário dos Açores de 07/02/2020. A Ryanair ao tempo ainda não operava para a Madeira, mas certamente adotaria a mesma atitude.
A questão está, pois, em encontrar um “mecanismo” ou “procedimento” que permita conciliar os interesses em presença. Note-se que, como noticiava o Correio dos Açores de 03/09/2019, na sequência de uma nota do GaCS, embora ainda não fossem conhecidas as conclusões do grupo de trabalho, o ex-Ministro Pedro Nuno Santos garantira à ex -Scretária Regional dos Transportes e Obras Públicas que estava “em desenvolvimento uma plataforma electrónica que agilizará o processo de reembolso do SSM”.
Parece que nem houve conclusões, nem sequer sinais dessa plataforma. Não vale a pena perder tempo a inventar o que já foi inventado. No artigo aqui publicado em 2018, defendi que uma possível revisão de fundo do SSM poderia consistir em aplicar às Regiões Autónomas um modelo idêntico ao que vigora em Espanha para as viagens à península dos residentes nas Canárias, Baleares, Ceuta e Melilla, que em síntese consiste em: os residentes beneficiam de um desconto de 75% sobre a tarifa sem taxas, o qual é aplicado no acto da compra online ou nas agências; a companhia aérea recebe directamente do Estado o valor descontado.
O governo espanhol, em colaboração com o Amadeus, desenvolveu um sistema de verificação automática da qualidade de residente que actua durante o processo de reserva e emissão do bilhete, através do nome e do documento de identificação do passageiro (SARA – Sistema de Acreditación de Residencia Automático).
Trata-se de um processo simples, cómodo para o residente que fica dispensado de pagar a totalidade do preço da viagem e à posterior recuperação do subsídio.
Importa referir que, além da Ibéria, operam naquelas rotas low cost como a Vueling e a Ryanair, e, aparentemente, não têm problemas em aderir ao sistema.
Parece, pois, que o Grupo de Trabalho deveria perder algum tempo a estudar o sistema que vigora no país vizinho e a sua adaptabilidade ao caso dos Açores e Madeira.
Outra hipótese que poderia ser estudada seria uma solução mista. O Estado contratualiza com as transportadoras uma determinada tarifa para os residentes e estudantes, disponibilizada em todos os voos, baseada na média do SSM que tem sido pago em cada rota e incluindo determinadas condições tarifárias v.g. uma mala, uma alteração de data de viagem, etc. (seria basicamente um código tarifário sem valores expressos). Esta contratualização seria “obrigatória” para a TAP e SATA empresas públicas e aberta às demais.
Existindo uma tarifa contratualizada nos termos referidos, não prejudicaria o Estado nem as empresas e permitiria que estas facilmente quantificassem os passageiros transportados com aquela tarifa, pelos quais receberiam do Estado um valor unitário convencionado. Por sua vez, os passageiros apenas pagariam o valor fixo que se encontra determinado.
Quanto às emissões feitas por agências de viagens, teria de se estabelecer um processo de estas serem reembolsadas da sua taxa de emissão directamente pelo estado ou através das companhias aéreas, ficando, assim, eliminada a possibilidade de fraude por cobrança de valores excessivos.
A solução seria transparente, controlada e controlável e os residentes sempre poderiam viajar pagando menos se encontrassem tarifa inferior aos €134.
Naturalmente, seria imprescindível o Estado organizar uma plataforma automatizada de verificação da qualidade de residente, disponibilizada às companhias aéreas e demais agentes emissores, o que não será difícil dada a informação disponível pelo Cartão de Cidadãos, pelo Número de Identificação Fiscal e a capacidade propiciada pelos meios informáticos actuais.
Digo que seria um sistema misto, uma vez que os passageiros que viajassem nas companhias não aderentes à contratualização teriam a solução de reembolso via CTT.
Como disse um senhor deputado na ALRAA, o sistema actual tem defeitos, mas funciona. Espera-se, por isso, que o Grupo de Trabalho faça um trabalho aprofundado evitando propostas atamancadas, pois, como diz o povo, para pior já basta assim.
Luís Filipe Borges da Silveira