Localizado na Rua do Mercado, em Ponta Delgada, o Espaço Cagarra é um ponto de encontro cultural para locais e estrangeiros, que promove discussões abertas sobre diversas temáticas, sessões de cinema e improviso musical, dança de Forró, bailes de máscaras e ateliês de desenho e pintura. Nesta entrevista, Nuno Malato, o proprietário do espaço, explica que, apesar da boa aceitação que tiveram no seu primeiro ano de existência, a falta de apoio financeiro levou à necessidade de ceder temporariamente o local. No entanto, promete que projecto vai reemergir como associação cultural, mantendo a sua “identidade açoriana” e a abertura a todas as formas de expressão e partilha que caracterizam o Espaço Cagarra.
Correio dos Açores – Que percurso o trouxe aos Açores?
Nuno Malato (proprietário do Espaço Cagarra/arquitecto) – Em 2014, vivia no sul de Angola, fui convidado a vir desenvolver uma oficina de desenho de curta duração em S. Miguel. Ao longo da estadia fui inesperadamente atravessado por um importante bem-estar na atmosfera deste território e também pela clarificação de um sentimento de amor por alguém, que mais tarde me propôs a vir para cá viver.
Como surgiu a ideia de criar o Espaço Cagarra?
Na altura não tinha trabalho na área de arquitectura, nem parecia que pudesse vir a ter, e precisava de desenvolver uma estrutura económica suficiente a médio prazo. Por outro lado, tenho a convicção na urgência e carência em se desencadearem processos abertos de consciência crítica activa individual e colectiva (política implícita pelo inteiro), associada às dinâmicas socioculturais próprias de um lugar, evolutivas e complexas, onde as expressões sensíveis ou artísticas são basilares.
Associando a isto o facto de existir uma loja degradada e fechada ao pé do Mercado da Graça, surgiu a ideia de desenvolver aí um espaço provocador do encontro social, tendo como pretexto e suporte económico a comida confeccionada com os produtos regionais adquiridos no mercado e, complementarmente, uma loja de produtos novos afectos à Região (design, utilitários, artísticos, gastronómicos…), numa perspectiva crítica contemporânea. Loja essa que não chegou a acontecer.
Qual o conceito do Espaço Cagarra no centro de Ponta Delgada?
No seguimento do já exposto, ainda no longo processo das obras de reabilitação do edifício e licenciamentos sem fim, conheci a Paula Rita Costa, um ser vital, micaelense, com evidente afinidade para com o projecto e com valências muito complementares, com quem partilhei o desenvolvimento daquilo que desenvolvemos até hoje.
O nome Cagarra surgiu, então, metaforicamente, como um espaço ligado à identidade açoriana e a uma atitude de abertura ao infinito da vida e de cada momento, com que estas aves também se lançam no seu primeiro voo, em direcção ao sul do Atlântico (voltando sete anos depois ao mesmo sítio).
O Espaço Cagarra efectivou-se como um lugar aberto à expressão de todos e à ignorância que nos disponibiliza ao acontecer de novos conhecimentos, em encontros naturalmente prazerosos.
Que tipo de cozinha oferecem e qual é a especialidade da casa? Quais os pratos que os clientes preferem?
Uma gastronomia simples e nutricionalmente saudável, tendencialmente vegetariana, feita por nós e baseada nos produtos açorianos disponíveis. Temos sempre sopa e prato do dia, chás, sumos naturais, três tipos de tostas próprias da Cagarra, petiscos de escabeche de atum ou cavala, e favas guisadas.
Ao prato do dia chamamos Pana Magana, que é normalmente entre vegetariano e vegano. No geral, as pessoas dizem gostar muito de tudo o que comem e voltam à procura destes pratos. Mas creio que os Miminhos, pequenos bolos feitos com uma receita da minha mãe, são dos mais procurados.
Desde músicos, realizadores, comediantes ou escritores que vieram apresentar os seus livros, este espaço tem sido palco para artistas de todas as áreas e nacionalidades. Quais foram os artistas que o marcaram mais?
Mais do que todos esses protagonistas, que de facto partilharam de forma muito generosa perspectivas próprias e enriquecedoras, o que mais me marcou nesses momentos foi, de modo geral, a atmosfera informal desenvolvida por todos no espaço, que proporcionou sempre um aprofundar dos conteúdos com trocas e expressões pessoais espontâneas, esbatendo distâncias inibidoras e potenciando descobertas a todos.
E quais foram os momentos mais marcantes deste espaço?
Naturalmente foram muitos, inclusive os da rotina sem eventos especiais: quando calha haver gente em quantidade numa diversidade de formas de coexistir no mesmo espaço.
O espaço, embora relativamente pequeno, oferece alguma diversidade de ambientes intimistas, tanto na sala voltada à rua da cidade em torno dum patiozinho, voltado às suas traseiras, com plantas acarinhadas pela Paula. Existem alguns instrumentos musicais disponíveis a qualquer um, assim como as portas das casas de banho se podem “arriscar” com giz, uma tela de projecção que pode correr do tecto para baixo e os assentos e mesas, de criptoméria, podem desaparecer em poucos segundos, versatilizando com simplicidade diversas vivências, acompanhadas por paredes coloridas de cal, antigos marmoreados fingidos, pedras de basalto, azulejos e cimento, em camadas sobrepostas ou justapostas, da própria história de vida do edifício.
Mas para eleger um momento marcante, falo das oficinas de conversas sonoras orientadas pelo Luís Senra, fruto da vontade comum para se abrir novas formas de expressão musical improvisada e acessível a qualquer pessoa, com ou sem formação nesta área, que proporcionasse uma maior riqueza no desenvolvimento dos encontros musicais livres que acontecem sempre à Quinta-feira (JAM). O resultado foi impressionante, também pelo ganho da disponibilidade das pessoas para aprender a escutar melhor os outros, a si próprios, e deixarem-se libertar naturalmente, construindo em comunhão tecidos sonoros próprios e surpreendentes do momento.
Qual a percepção dos estrangeiros? Diria que o Espaço Cagarra contribuiu para a sinergia entre artistas locais e artistas estrangeiros?
Os estrangeiros, em geral, mostram-se muito satisfeitos com a atmosfera e a filosofia do espaço. Relativamente a essa sinergia, até agora aconteceu sobretudo ao nível musical, com estrangeiros de passagem ocasional, por vezes durante um tempo, ou outros actualmente residentes.
Há alguma história que o tenha marcado particularmente que queira partilhar?
Naturalmente há muitas, mas de repente lembro-me de uma que ocorreu no passado Sábado. Num dia praticamente sem clientes, entrou um senhor de S. Miguel e perguntou se podia beber uma cervejinha rápida, olhou com curiosidade em volta e comentou que o espaço aqui era mais ao natural… Já a beber a sua cerveja, apresentou-se como Paulo, eu como Nuno, e depois questionou porque é que não tínhamos televisão. Eu respondi que se tivéssemos provavelmente não estaríamos a conversar os dois, pois ela roubar-nos-ia esse espaço. Ele sorriu, concordou e continuámos a conversar, agora sobre a ideia ou opinião que ele lançava sobre o paraíso da ilha de S. Miguel… desenvolvemos um pouco a conversa e acabámos por concordar os dois de que o paraíso será muito mais o que fazemos com a ilha do que ela por si só. Acabou por beber mais duas cervejas, chamou um amigo que passava na rua e, mais tarde, ao despedir-se disse: gostei mesmo muito de conhecer este espaço e vou cá voltar…
O Espaço Cagarra também é um ponto de encontro para voluntários da S.O.S Cagarro. Pode falar sobre o vosso papel e missão neste âmbito?
O apoio à S.O.S. Cagarro é semelhante a todas as outras associações ou iniciativas colectivas e pessoais que nos surjam como catalisadoras deste território arquipelágico numa perspectiva contemporânea: disponibilizamos a estrutura do espaço, publicitamos e participamos dentro do possível.
É assim que integramos também iniciativas de associações e movimentos como a Habitat Açores, as Cores dos Açores, as Atelineiras, a Anda & Fala, a Marca Pistola, Arte Alegria, assim como concertos, documentários ou exposições individuais de fotografia, poesia ou outras.
Que outras causas o Espaço Cagarra tem vindo a apoiar?
De forma algo sistemática, mas não constante, desenvolvemos espaços temáticos de conversa aberta com convidados informados sobre a matéria: Romeiros /Romeiras; os Cagarros; Inteligência Artificial; Probióticos; Urbanidade em Ponta Delgada; Papéis de Género; Habitação; Palestina / Israel; Horta Comunitária; Permacultura e outros…
Temos cinema pontual ao final de Domingo, com enquadramento de Ana Silva e Eleonora Duarte, proporcionando interessantes conversas de seguida; a Montra Aberta, convidando pessoas para desenvolverem a nossa montra que dá para a rua, em função de temas associados às épocas do momento; e espaços importantes de lazer como a Dança de Forró à 6ª feira e JAM à 5ª, Bailes de Máscaras, Karaoke e DJ’s convidados; e ateliers de desenho e pintura.
Qual tem sido a evolução do negócio neste primeiro ano de existência? O investimento que fez está a ter retorno? Quer explicar?
Embora haja uma evolução gradual positiva, até hoje não foi possível ter qualquer retorno do investimento económico, incluindo todas as minhas muitas horas de trabalho semanal. Esta situação tornou-se naturalmente insustentável, ainda mais aliada ao facto de também ter necessariamente outros compromissos profissionais como arquitecto, os quais são indispensáveis à minha actual subsistência.
Como resultado, infelizmente este projecto vai ter de ser interrompido, naturalmente com consequências pessoais penosas, também para a Paula Rita, o que me custa ainda mais. Irei, pois, ceder temporariamente a estrutura do espaço, a alguém com outra estratégia e disponibilidade para o seu forte potencial, que lhe dará outro nome e iniciará a sua actividade já durante o próximo mês de Julho.
Na sua visão, quais foram os principais desafios ou obstáculos que foi enfrentando?
Em primeiro lugar, toda a morosidade e peso económico dos diversos processos de obra e requisitos legais vários, respeitantes ao início e manutenção deste tipo de actividade. Em segundo, a constatação de que uma grande maioria das pessoas locais que participam activamente na dinâmica sócio-cultural desenvolvida não consome o necessário à subsistência do espaço. Por último, e em consequência de tudo isto, a falta de uma estratégia de produtos, preços, clientes e marketing mais capaz.
Que alternativas e apoios precisaria para manter o Espaço Cagarra em funcionamento?
Dada a forte e reconhecida dinâmica do espaço no domínio sócio-cultural, se houvesse um apoio financeiro para esse fim, ajudaria muito. Por outro lado, se houvesse um sócio com disponibilidade de tempo e experiência na área da restauração, como sempre procurei, também o voo seria outro.
Após fechar portas na Rua do Mercado, o Projecto Espaço Cagarra vai tomar outro rumo?
Sim. Tal como a ave cagarra deixa o seu ninho para mais tarde voltar, o Espaço Cagarra vai lançar-se noutra condição. Pretendemos criar uma associação cultural com esse nome, procurando desenvolver actividades afins, sem pouso certo e mantendo as redes sociais -, prevendo-se a possibilidade dum retorno ao seu espaço ninho, com outra envergadura, daqui a uns anos…
Daniela Canha