Por uso e costume, e manda o rigor de quem tem opiniões próprias, quem aprecia uma obra literária, não embandeira em arco com sinopses feitas por outros. Contudo, encontrei num jornal online de alunos de Comunicação Social da Universidade do Minho a referência ao livro A Palavra que Resta, de Stênio Gardel, Publicações D. Quixote, 2024, que passo a tomar como minha, como ponto de partida da leitura que pude fazer desta obra-prima:
“A Palavra que Resta” marca o romance inaugural de Stênio Gardel no universo literário, amplamente premiada, e mesmo em dois continentes.
A narrativa desenrola-se ao redor de uma antiga carta preservada por mais de meio século e jamais lida, que se torna a chave de uma jornada pessoal para Raimundo Gaudêncio. O homem carrega consigo não apenas a carta: há também a memória de um amor secreto e trancado na sua juventude. Analfabeto, Raimundo Gaudêncio nunca pôde decifrar o conteúdo daquela missiva, mas agora, com 71 anos, propõe-se aprender a ler, decidido a desvendar os segredos da carta e, com isso, curar a ferida emocional que o acompanha desde a juventude.
Nascido e criado na roça, Raimundo não frequentou a escola, pois desde cedo precisou de ajudar nas tarefas do campo. Há muito tempo, foi forçado a deixar a família e a sua vida no interior do Brasil para trás. Desse tempo, ele guarda apenas a carta que recebeu de Cícero, quando o amor proibido entre os dois foi descoberto. Cícero partiu sem deixar rasto, exceto aquela carta que Raimundo não sabe ler (pelo menos até agora).
Com uma personagem principal tão humana e real, o autor deixa-nos presos a esta história desde as primeiras linhas. A sua escrita livre, em fluxo, torna-se atordoante para o leitor, não por ser críptica, mas por representar com maestria o turbilhão de sentimentos de Gaudêncio. É notável a forma como Gardel consegue transmitir as mais profundas angústias e os demais confrontos enfrentados por Raimundo.
Mais do que uma história de amor entre duas pessoas do mesmo género, A Palavra que Resta não é só um romance arrebatador sobre a repressão, o preconceito homofóbico e a violência física ou psicológica. É, acima de tudo, uma história de superação e de coragem para ultrapassar todos estes desafios.”
A primeira tentação é a de procurar catalogar a obra: que este romance pertence ao género da literatura homoerótica, no fundo houve o amor de Raimundo e Cícero, de que resta uma carta, cujo conteúdo é um completo enigma para o leitor. Acontece que este tipo de carpintaria literária, independentemente do tema, tem uma longa história, é um expediente com um poder catalisador, mas que também se pode limitar a uma mera e ofuscante pirotecnia. O que não é o caso deste livro, os valores infundidos podem reclamar-se do preconceito sexual, mas no caso vertente todo este amor escondido é uma peça clássica que pode perfeitamente decorrer numa relação heterossexual. Penso que posicionar esta escrita é uma operação de valorizar a sinceridade desta escrita, um amor transcendente, uma fidelidade amorosa que jamais perde a esperança. Então, não é que a primeira obra-prima da literatura mundial, que terá saído do punho de Homero, não fala de uma Penélope que aguarda a chegada de Ulisses, afastando todos que a pretendem?
O que domina esta pulsão da escrita é o uso de uma simplicidade, de um casticismo, de um processo ficcional em que se sente desde a primeira página que estamos a cavalgar num mundo de sentimentos nobres sob a pena da exclusão, somos engolfados na ilusão de que aquela carta irá restituir a dois longevos o que a juventude não permitiu, como se o mais importante não fosse mesmo o esplendente da esperança. O velho Raimundo Gaudêncio guardou a carta toda a vida, então começa a história, os pais descobrem aquele amor adolescente, dar-se-á a separação entre amantes. E agora voltamos ao velho Raimundo Gaudêncio que está a aprender a ler para depois regressar a um amor proibido que Stênio Gardel conduz com uma delicadeza ímpar: “Nas peles nuas, a saliva dos beijos e o suor dos abraços irrigavam, dentro deles, raízes fortes, de agarrar as tripas e o que mais tivesse dentro. Até a alma. E as raízes faziam das veias seiva e cresciam pelos poros como galhos trepadeiros em direção ao sol. Quando se tocavam, se engarranchavam e viravam uma planta só, com flor que se abria sobre o peito. Papoula amarela de cálice cor de sangue.”
Saberemos quase tudo do itinerário de Raimundo, chegou mesmo a procurar sexo em relações sem compromisso, tudo efémero, encontros nos cinemas porno, o texto intercala a sua relação com Cícero, os ambientes familiares, como Raimundo sobreviveu no trabalho, como os anos passaram, como um dia procurou voltar à terra natal, como Raimundo e Suzzanný travesti vivem juntos, aconchegados, é uma velhice serena: “Quando a gente sai na rua é desse jeito, fica segurando minha mão, ainda hoje tem gente que estranha, homem velho de mão dada com travesti velha, uns cochichando de um lado, uns olhando atravessado de outro, deixa estranhar, um dia eles aprendem, eu aprendi, eles aprendem, mas tem que querer, querer sair da ignorância, é quase como eu querendo aprender a ler e escrever, tomei a decisão de ver o mundo de outro jeito, me sentir mais dentro dele, porque a ignorância faz é isso, exclui, isola, e não era isolado que eu vivia?” Não é que estes dois velhos não tenham arrofos, mas tudo acaba bem.
Há lugares míticos, de lembrança inextinguível, é o caso daquela cruz no rio onde Raimundo e Cícero se iriam encontrar, o que não aconteceu. A irmã de Raimundo, Marcinha, entregou-lhe a carta de Cícero, e o fulgor desta escrita parece um chamamento à coragem do leitor, prosa magnética:
“eu fui deixando, fugindo, ainda estou é fugindo, fugindo de mim, como fugi muito tempo, agora tento fugir do que vou ser depois da leitura da tua carta, e eu trouxe ela aqui pensando em jogar no rio, tanta vez que já pensei dar cabo desse papel mas nunca fui até ao fim, tenho mais uma chance agora, deixar o rio dissolver e afundar tuas palavras, já que não vou saber mais de tu mesmo, e seu eu aprender a ler e puder responder, eu não ia poder te mandar e tu nunca ia descobrir o que eu escrevi, se pelo menos soubesse onde tu está, se tá vivo ainda, me esperando…”
É o derradeiro flashback, Cícero a entregar a carta a Marcinha, podemos supor tudo o que ela contém, talvez Cícero tenha dito que capitulava, ia desaparecer para outro lugar, ter outro destino, aquela exclusão era asfixiante, viveriam sobre o peso da vergonha. É que a esperança nunca morre, Raimundo sabe ler, aprendeu a ler e a escrever, é nesta liberdade que ele encontrou um começo.
Uma obra-prima absoluta.
Mário Beja Santos