A deriva de 2015, que levou António Costa ao poder através da criação de uma plataforma de mínimos comuns com os partidos à sua esquerda, foi por muitos vista como a queda de um muro. Um muro que durava desde abril de 1974, e que se consubstanciava numa ideia assimétrica de sociedade, colocando de cada lado uma visão da organização em sociedade, dos direitos, deveres, liberdades e garantias, e da própria noção de democracia. Para além de ter dado ao Partido Socialista o papel de charneira do sistema político português, podendo desta forma perpetuar-se no poder, ora governando com os partidos do centro, ora governando com o apoio de uma frente de esquerda, a abertura ao exercício do poder com bloquistas e comunistas tornou estes corresponsáveis do exercício do poder, levando-os a uma acentuada quebra eleitoral, consequência de uma menor influência social, sindical e laboral.
Disse-se e escreveu-se que era um caminho sem retorno, levando a que os partidos à direita dos socialistas os acusassem de se terem radicalizado, de terem colocado no lixo o legado de Mário Soares, com o propósito único do afã do poder. E o hemisfério partidário oposto, apesar das perdas eleitorais, encontrou nesta alteração de paradigma da cúpula socialista, a prova de que o progresso do país não seria feito sem a incorporação prática e programática das suas políticas. Seria a forma quase perfeita de arredar o Partido Social-Democrata da governação sem tempo limite, assegurando que, de uma forma ou de outra, o centro político passasse a ser assegurado por um e único partido central do sistema.
Como é natural, e o conhecimento empírico demonstrou, esta alteração estrutural não aconteceu, mesmo com a ajuda, com o seu aparecimento e crescimento, do partido de direita radical Chega, que subtraindo quadros e apoio popular aos partidos centristas, acalentou nos socialistas uma reforçada esperança de que a eternidade fosse sinónimo de manutenção do poder. Hoje aqui chegados, sabemos que aquela alteração de paradigma – que levou o segundo classificado a reclamar vitória, com isso assumindo as rédeas da governação – que usou os partidos radicais de esquerda para chegar ao poder, foi meramente tática, na senda do “consenso eterno” que parece ser a forma mais habitual de António Costa não encontrar atrito em qualquer mesa de negociação que se encontre. A próxima, pode muito bem ser a mesa do Conselho Europeu.
Durante os seus mandatos, com vários ministros com a pasta das contas públicas, os socialistas foram muitas vezes acusados de usar a receita do PSD – as contas certas, uma espécie de austeridade permanente encapotada, para o país poder ser melhor no futuro – que perante o eleitorado mais conservador, nomeadamente os reformados e uma parte importante da Administração Pública, consideravam que o país não poderia voltar a passar por um processo de desconsideração pública e resgate financeiro, depois da memória recente da troika. Ou seja, apesar de se alcandorar nos partidos à sua esquerda, o PS governou com as armas do PSD. Os partidos centrais da democracia portuguesa, afinal de contas, não estavam assim tão afastados. Parecia, apenas, que os papéis se tinham invertido, com os socialistas a apertarem o cinto e os sociais-democratas a exigirem mais gastos públicos, em particular a cada cativação, e a cada nova degradação dos serviços públicos.
Aqui chegados, esta proximidade parece cada vez mais presente. O atual líder socialista, após ter inicialmente diabolizado o orçamento para o ano que vem, já não coloca de parte a possibilidade de viabilização do documento pela abstenção. Se olharmos para o PSD, vemos por exemplo o novo líder da juventude do partido a propor coisas como a defesa dos quatro dias da semana de trabalho, uma proposta muito cara à esquerda, a alocação de meia hora do horário de trabalho à prática desportiva obrigatória, a limitação de mandatos dos deputados, ou a criação do estatuto do estudante-artista. Casos há no país, como a recente proposta da autarquia de Ponta Delgada (PSD) com vista à isenção do pagamento de transportes públicos coletivos – no caso em apreço, o minibus – para maiores de 65 e estudantes, independentemente do grau de ensino, medidas que sempre fizeram parte dos cadernos reivindicativos de comissões de utentes, ancoradas nas mesmas posições dos partidos de esquerda. O centro está mais próximo do que parece, e quem ganha é a população.
Fernando Marta