Quando iniciei a escrita desta coluna, a população mundial somava mais de 8,12 mil milhões de pessoas, prevendo-se que em 2030 atinja os 8,5 mil milhões, a manter-se um crescimento diário superior a 200.000. Pode imaginar-se a consequente pressão exercida sobre os recursos naturais do planeta, quando sabemos que em 50 anos, entre 1970 e 2020, a população mais que duplicou, a economia quadruplicou e o consumo de recursos naturais triplicou. Consumo que tem uma incidência forte no setor agro-alimentar, passando pela produção e distribuição. Segundo o Food Report Index/2024 da ONU, passam fome neste mundo muito perto de 800 milhões de seres humanos, enquanto são desperdiçadas todos os dias mais de 1000 milhões de refeições. Tais perdas e lixo alimentar, já estimadas em mais de 1000milhões de toneladas anuais, causam entre 8 a 10% das emissões globais de GEE-gases com efeito de estufa. Destes valores, cerca de 60/61%têm origem doméstica, 26/30% vêm da restauração e serviços similares, vindo o restante da distribuição. Sendo que apenas na fase de produção, perdem-se à partida uns 50%. Procurando comparar com os dados disponíveis para a aviação e o transporte marítimo, quem aprofundar a recolha de informação fiável, entra num labirinto de contradições e opacidades, pois a aviação refere apenas o transporte aéreo de passageiros e carga, omitindo a responsabilidade que cabe também à aviação militar, a que se junta uma parafernália de mísseis e drones. Isto levanta sérias dúvidas quanto aos 2 ou 3% da percentagem total, atribuídos à aviação, pondo em causa a fiabilidade de alguns relatórios das Nações Unidas, como este da UNEP, dedicado ao ambiente. Passemos adiante.
Passar adiante, é colocar o enfoque novamente na questão do desperdício alimentar, conforme vínhamos fazendo, virando a atenção para a União Europeia. De acordo com o Eurostat/ 2023, são geradas anualmente 58 milhões de toneladas de desperdícios alimentares, cujo valor de mercado se estima acima dos 130.000 milhões de euros. Entretanto – e segundo a mesma fonte -em torno de 10% dos alimentos disponibilizados aos consumidores são desperdiçados, enquanto se calcula que 37 milhões de cidadãos europeus não conseguem ter 2 dias seguidos com 1 refeição de alguma qualidade. Muito se fala dos SDG/ODS- objectivos de desenvolvimento sustentável, havendo organizações e gente genuinamente empenhada na minoração, quiçá eliminação, de um problema responsável por 16% das emissões de GEE originadas pela cadeia alimentar da União Europeia. Todavia, é imperioso cada um de nós, das nossas casas e famílias, às empresas e ao Estado, seja a nível central, regional ou autárquico, assuma a sua quota de responsabilidade na gigantesca tarefa que temos pela frente, porque os factores condicionantes são numerosos. Numa breve revisão, de acordo com os atrás citados SDG/ODS, devemos considerar 17 desses condicionantes, que vão de um deficiente planeamento das refeições e respectivas compras de alimentos, às armadilhas do ambiente shopping, facilitador de aquisições extra, tipo “compre 1, leve outro grátis”, bem como as enganadoras etiquetas de validade dos produtos, largas vezes descartados quando ainda matariam a fome a muitos necessitados. Outra questão é a sobre produção, excedendo a procura em certos produtos sazonais, tudo encimado por uma falsa perceção do valor ambiental, financeiro e social dos alimentos e seu desperdício. Por outro lado, os estilos de vida actualmente em vigor, conduzem a uma alimentação fast food e ao uso de alimentos refrigerados ou congelados, com consequentes deteriorações de embalagens e conteúdos.
Através do Pacto Ecológico Europeu/Green Deal, a União Europeia desenhou oprojeto “From farm to fork”, conhecido entre nós por “Do prado ao prato”, conforme divulgado pela Associação Agrícola de São Miguel. As linhas mestras incluem a sustentabilidade da cadeia de produção alimentar (respeitando as regras ambientais desde a origem agrícola) do processamento, distribuição e consumo de alimentos, finalizando com a prevenção das perdas e desperdícios. Neste sentido, a ASSM -Associação de Seniores de São Miguel organizou o programa “Zero desperdício”, que somente no passado mês de Junho recolheu e distribuiu mais de 5 toneladas de alimentos, das quais 1,905 kg de refeições confeccionadas e 1,847 kg de sopas. Tudo resultou da contribuição de 33 entidades diversas do sector hoteleiro, da restauração, das clínicas, hospitais privados, supermercados e estabelecimentos de ensino, entre outros. Com o patrocínio da Câmara Municipal de Ponta Delgada, foram entregues alimentos a78 pessoas, numa acção de voluntariado duma equipa da ASSM, constituída pelos associados Guilherme Miranda, Carlos Coelho e Leonor Borges. Este exemplo de cidadania solidária, merecedor do nosso respeito, evidencia uma faceta da nossa sociedade civil que deveria exigir maior atenção, porque muitas das situações pertencem ao sector da chamada “pobreza envergonhada”, uma chaga que o desperdício alimentar, se convenientemente gerido, poderia sarar com relativa facilidade. Até lá, programas solidários e ambientalmente proveitosos como este que os Seniores de São Miguel puseram no terreno, são exemplo a seguir e a multiplicar.
Vasco Garcia