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“Faço questão de visitar as nove ilhas não apenas pela sua natureza, mas também pelas pessoas onde encontro uma autenticidade e profundidade humanas que me fascinam”

O jornalista Thomas Fischer está em Ponta Delgada para apresentar ‘Entre Cravos e Cardos’, na Livraria Letras Lavadas, um livro onde partilha as “ilusões e desilusões” de um estrangeiro que se tornou português. Tomado pela onda de curiosidade e entusiasmo que a “Revolução dos Cravos” despertou na Europa, o jovem alemão Thomas Fischer chegou pela primeira vez a Portugal no chamado “Verão Quente” de 1975, sem saber ainda que esta era uma viagem decisiva. Estabeleceu-se no continente em 1983, onde formou família, e trabalhou como correspondente para meios de comunicação alemães e suíços. Em 2020, obteve a nacionalidade portuguesa. Nesta entrevista, fala da sua visão de Portugal e dos Açores, naquilo que têm de bom e de mau. É apaixonado pelas ilhas, sobre as quais já escreveu vários artigos, e é sob este “olhar crítico”, mas sempre com “admiração e paixão”, que embarca no seu próximo projecto: um livro sobre os Açores.

Correio dos Açores – Após uma viagem de três dias ao volante de um carocha, chegou a Portugal pela primeira vez no Verão de 1975. O que motivou essa viagem e o que o fez decidir ficar? E como era a sua vida antes?
Thomas Fischer (jornalista/escritor) – O que despertou o meu interesse por Portugal foi o 25 de Abril de 1974, a Revolução dos Cravos. Eu tinha 19 anos e tinha começado a estudar em Colónia, na Alemanha Federal. Foi um tempo de abertura e muita contestação numa sociedade até então bastante rígida, mas também foi um tempo para sonhar.
Fazia parte de uma geração um pouco dividida entre sonhos e revolta. Os sonhos diziam respeito ao fim da Guerra Fria na Europa e também à vida pessoal, num tempo marcado por uma liberalização dos costumes e, claro, pela libertação sexual. Entre as razões da revolta estavam a Guerra do Vietname, o sangrento golpe militar no Chile em 11 de Setembro de 1973 e as três ditaduras no Sul da Europa – na Grécia, em Espanha e em Portugal. A primeira a cair foi a mais antiga, a portuguesa, e a forma como isso aconteceu – com música, flores, pessoas a festejar e quase sem sangue – foi, para nós, jovens, algo fascinante. Claro que havia também algo de romântico.
Já no chamado Verão Quente de 1975, fui um dos muitos jovens alemães que queriam saborear o ambiente festivo – e apanhar sol, claro! Quando parti para Portugal numa noite de Julho de 1975, com a minha então namorada, estava longe de imaginar que esta viagem iria mudar a minha vida, que me iria estabelecer como correspondente estrangeiro para meios de comunicação sobretudo de língua alemã. Não imaginava que me juntaria com uma portuguesa e que teríamos uma filha e um filho e que adquiriria a nacionalidade portuguesa, que tenho há quase quatro anos. Confesso que gosto muito mais de mostrar o passaporte português do que o alemão.

Como descreveria a sua adaptação à cultura portuguesa ao longo dos anos? Quais foram as maiores surpresas e desafios com que se deparou?
Curiosamente, o que muitas pessoas vindas de fora consideram o mais difícil – a língua – foi o mais fácil para mim. Nunca tive aulas de português, estudei em casa, e ter aprendido francês facilitou imenso. De resto, tive o convívio com pessoas de cá e li muito. Admito alguma dificuldade na percepção da língua falada e também senti algumas dificuldades com o modo de vida em Portugal, em particular com a forma de conduzir nas estradas, embora esta parte tenha melhorado muito.
Uma coisa que não foi fácil para uma pessoa como eu, que tinha fugido da sociedade consumista alemã, foi ver Portugal mergulhar precisamente no consumismo. Não posso condenar isso, claro, porque os próprios alemães deram o exemplo com a sua forma de vida. Mas, por vezes, era frustrante ser convidado para a casa de uma pessoa, supostamente para conversar e beber um copo – pois copos nunca faltaram, mas faltou muitas vezes a conversa – e ter toda a gente a olhar para a televisão que transmitia mais um episódio de telenovela. Alguma coisa humana perdeu-se nesta época.
Há mais um aspecto que gostava de destacar. Portugal tem uma sociedade civil que, infelizmente, mexe pouco, muito menos do que em Espanha, um país que também conheço muito bem. E o problema não está apenas naquilo que a classe política e empresarial faz de errado, mas também no que nós permitimos que façam.

Como descobre o nosso arquipélago e que motivações o fazem regressar de quando em vez?
Estive nos Açores pela primeira vez em 1983 e já perdi a conta das vezes que regressei desde então. Faço questão de visitar as nove ilhas de vez em quando, não apenas pela sua natureza, mas também pelas pessoas, onde encontro uma autenticidade, uma profundidade humana e uma criatividade que sempre me fascinaram.
Para dar um exemplo, fiquei fascinado ao ver, há umas semanas, o desfile das Sanjoaninas em Angra do Heroísmo, dedicado aos 50 anos do 25 de Abril, que teve a participação visível e invisível de centenas, ou até milhares, de pessoas
Não há nada mais falso do que a imagem de uma região culturalmente atrasada que algumas pessoas têm. Como é natural, vejo esta coisa chamada insularidade como um desafio para quem vive cá, e talvez uma moeda com duas faces. Ao que parece, a calma nestas ilhas, onde não se perdem horas no trânsito todos os dias, pode incentivar a criatividade. Mas é preciso saber resistir a muitos condicionalismos e défices, ao isolamento, à solidão e à falta de perspectivas que muitas pessoas sentem. Não é difícil imaginar que estes condicionalismos possam reflectir-se no recurso ao álcool e, por parte de alguns jovens, no uso de drogas e no abandono escolar, e até em situações de violência doméstica de que ouço falar, embora estes fenómenos existam em todo o lado.
Por outro lado, claro que também adoro este ambiente onde muitas pessoas ainda estacionam os seus carros sem trancar as portas. Acredito que, para escapar à rotina de pressa e confusão, muitos continentais e estrangeiros procuram adaptar-se a este ambiente, não apenas como turistas, mas para se sentirem açorianos por um dia. Há uns anos, aconteceu-me uma situação muito engraçada: durante quatro noites seguidas, tive de reclamar nos restaurantes devido às contas do jantar. Não tinham facturado nada indevidamente; pelo contrário, sempre faltou alguma coisa – a sopa, o queijo, a fruta, a segunda cerveja. E não quero tirar proveito dos erros.

Que impacto têm as ilhas na sua vida e o seu trabalho de jornalista e autor?
Há 30 e poucos anos, escrevi um roteiro turístico sobre os Açores, numa altura em que estas ilhas ainda eram um destino exótico e os seus poucos visitantes não queriam apenas comer bem e passear, mas também conhecer a realidade social, económica e cultural.
Ao longo dos anos, escrevi muitas reportagens, por exemplo, em 2000 publiquei uma sobre a Feira Tecnológica, que tinha um ferry boat carregado de computadores numa digressão pelo Arquipélago para familiarizar as pessoas com as novas tecnologias; escrevi sobre os “deportados” dos Estados Unidos; sobre os planos para transformar a Terceira numa Tech Island; e sobre os esforços na Ilha do Corvo para dar oportunidades às pessoas como alternativa à “fuga” para fora – as pessoas do Corvo podem ter a vida especialmente condicionada, mas têm melhores ligações à Internet do que algumas zonas da Alemanha. E também escrevi sobre os planos para criar uma base de lançamento de pequenos satélites para o espaço na Ilha de Santa Maria. Estes são apenas alguns exemplos.
Claro que subi ao Pico e desci para várias fajãs de São Jorge. Também escrevi sobre as minhas impressões dos Açores nos últimos 10 anos, período em que deixaram de ser um segredo bem guardado e passaram a receber mais turistas do que em certas ilhas, o que não parecer ser sustentável. Vejo que a chamada “monocultura da vaca” foi problemática, mas agora a ‘turistificão’ não deixa de me preocupar. Além disso, visitar os Açores torna-se cada vez mais uma aventura verde e azul, uma aventura organizada, e pergunto-me se a aventura humana de antigamente não se perdeu um pouco.
O meu próximo projecto é um livro sobre os Açores, sobre as minhas vivências ao longo dos últimos 40 anos, sobre o que descobri e o que mudou, com um olhar crítico, mas sempre com admiração e paixão.

O que o inspirou a escrever “Entre Cravos e Cardos”? Qual a razão do título?
Depois de estar tantos anos em Portugal a escrever para um público lá fora, senti a necessidade de partilhar algumas ideias e impressões com as pessoas de cá. É um livro pensado e escrito em português, que teve alguns toques linguísticas do editor, mas que não é nenhuma uma tradução. Quanto ao título, os cravos representam o fascínio pelo 25 de Abril e os cardos representam o que pica.

Dentro do tema da obra quais os subtemas que destacaria passando em revista Abril?
Todos os temas de que falo mexem comigo e é difícil destacar sub-temas. Mas, para dar alguns exemplos, vejo algumas coisas que não mudam no modo de vida, curiosamente é o caso do formalismo no tracto social com muito “Senhor Doutor” e “Senhora Engenheira”. Acho que, numa sociedade aberta, devemos valer pelo que fazemos e não por rótulos elitistas. Para além disso, estou preocupado com a ascensão da extrema direita em Portugal, no livro há um capítulo em que falo sobre imigração e sobre o racismo, que também existe, embora de forma diferente daquela que se vê noutros países.
Um tema que me é caro é a situação das mulheres em Portugal e as relações entre mulheres e homens. Há um capítulo sobre uma sociedade entre fado e felicidade. Pergunto-me porque há em Portugal um consumo tão alto de ansiolíticos e antidepressivos, e custa-me explicar isso só com as condições da vida, embora estas sejam muito duras. Será que um pouco mais de espírito “yes, we can” não alimentaria um pouco mais a auto-estima e a confiança naquilo que o colectivo é capaz de fazer em vez de esperarmos por sábios e milagreiros que “resolvam”?

Como festejou os 50 anos do 25 de Abril?
Festejei longe de Portugal. Faltei às cerimónias cá, o que me deu pena, mas acho que foi por uma boa causa. Como autor do livro “Entre Cravos e Cardos”, fui convidado pela Embaixada de Portugal no Chipre para falar sobre os 50 anos do 25 de Abril, junto com a própria Embaixadora, Vanda Sequeira, numa conferência da University of Cyprus em Nicósia sobre o tema “Guns and Carnations”, que contou com a presença de embaixadores, de estudantes e outras pessoas interessadas. E porquê o Chipre? Há uns dias, o Chipre também recordou um cinquentenário, infelizmente sem razões para festejar. Em 20 de Julho de 1974, o Norte da ilha foi ocupado pela Turquia, e até hoje o Chipre encontra-se dividido. A parte internacionalmente reconhecida e a parte ocupada são separadas pela chamada Linha Verde, controlada pelos Capacetes Azuis das Nações Unidas. Vê-se muito arame farpado, mas passa-se já facilmente para a outra parte, e tive a oportunidade de visitar várias vezes a parte ocupada. Falei com pessoas mais novas de ambos os lados da Linha Verde sobre Portugal e a sua ‘Red Carnation Revolution’ e gostei de ver o interesse que este acontecimento continua a despertar lá fora.

Cinquenta anos depois, como vê a evolução de Portugal até aos dias de hoje, do ponto social e económico?
Claro que eu próprio, como muitas pessoas de cá, tive ilusões e desilusões, por exemplo com as desigualdades sociais e com a pobreza, quando para algumas pessoas o dinheiro cai do céu. Vejo Portugal como um País com enormes capacidades, mas que infelizmente não aproveita devidamente o melhor que tem, que são as pessoas, lá fora são apreciadas como emigrantes. Estamos há 38 anos na União Europeia e continuamos com um salário mínimo de 820 euros no Continente e 861 euros nos Açores. Nunca percebi como se vive disso. E agora, com tantos estrangeiros a descobrir Portugal, muitos portugueses já não encontram o seu lugar. Isso é chocante e triste, em especial porque vivemos numa altura em que temos a geração mais qualificada de sempre, mas com médicos e enfermeiras, com arquitectos e engenheiras a emigrar.

Há algum ponto essencial que queira destacar?
Tornei-me cidadão português, mas claro que nunca deixei de ser visto um pouco como uma pessoa de fora, em parte por causa do sotaque que continuo a ter. E o que pessoas de fora escrevem sobre Portugal costuma ser visto com muita atenção. O meu objectivo é substituir o olhar “de cima” pelo olhar “de dentro”. Lá fora há, por vezes, um olhar quase zoológico sobre “os portugueses”, e nos anos de chumbo da “Troika” falava-se tantas vezes no país que vivia “acima das suas possibilidades”. A minha perspectiva, de dentro, é diferente. Não tenho de pintar nada cor de rosa, quero e devo ser crítico, mas quis ser justo, sem deixar de apontar para defeitos na Alemanha, e quis que os meus comentários, muitas vezes irónicos, fossem entendidos como construtivos. Uma revista apresentou-me como “O Alemão mais Português de Portugal”. Não sei se mereci o superlativo, mas se o título reflecte a impressão que o livro deixa, só posso ficar contente.
Daniela Canha

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