A falta de mão-de-obra qualificada nos Açores tem levado as empresas, especialmente nos sectores do turismo e da construção civil, a contratar cada vez mais trabalhadores estrangeiros. Leoter Viegas, Presidente da Associação de Imigrantes nos Açores (AIPA), alerta que, apesar de os Açores terem todas as condições para se tornarem “um exemplo” no acolhimento e integração dos imigrantes, estes ainda enfrentam muitos constrangimentos no acesso aos serviços regionais devido à falta de compreensão em relação ao fenómeno da imigração e ao desconhecimento da Lei dos Estrangeiros. Além disso, alerta para a importância de criar políticas preventivas e condições adequadas para a crescente vaga de imigrantes, pois a Região corre o risco de chegar às situações de sobrelotação habitacional que se têm verificado no continente.
Correio dos Açores – Que balanço faz do trabalho da AIPA este ano? Quais foram os principais desafios e conquistas?
Leoter Viegas (Presidente da Direcção da Associação de Imigrantes nos Açores – AIPA) O balanço que fazemos da nossa actuação enquanto estrutura representativa dos imigrantes nos Açores é altamente positivo, desde logo porque estamos a dar cumprimento à nossa missão de contribuir para o processo de acolhimento e integração. Esta missão tem, em primeiro lugar, a ver com a disponibilização de serviços de apoio e encaminhamento aos cidadãos imigrantes, função que desempenhamos através dos nossos gabinetes nas ilhas de São Miguel, Terceira e Pico. No ano passado instaurámos o atendimento itinerante nas restantes ilhas, uma iniciativa que tem tido muito sucesso. Posso dizer que em 2023, por exemplo, os nossos gabinetes realizaram 5.337 atendimentos e só nos primeiros sete meses deste ano contamos com 4.836, o que representa 90% do total do ano passado e mais 59% em relação ao mesmo período de 2023.
Também temos desenvolvido várias actividades no âmbito da promoção da interculturalidade onde, por exemplo, organizamos eventos gastronómicos relacionados com os países de origem dos imigrantes. Para além disso, este ano também realizámos sessões de esclarecimento e sensibilização da opinião pública para as questões das migrações. O nosso intuito é o de chamar a atenção da sociedade para a importância de um bom acolhimento e integração dos imigrantes; chamar, por exemplo, a atenção dos jovens nas escolas para a necessidade de valorizar a diversidade cultural e também chamar a atenção do poder político e das entidades empresariais da nossa Região para a necessidade de desenhar políticas públicas de acolhimento e integração dos imigrantes.
Quantos imigrantes chegaram entre Janeiro e Julho deste ano?
Ainda não existem estatísticas públicas oficiais sobre os números reais dos imigrantes residentes em Portugal e nos Açores. Os dados disponíveis dizem respeito a 2022 e indicam que temos cerca de 5.200 cidadãos estrangeiros na Região, mas esse número está completamente desactualizado. No último ano registámos um fluxo muito considerável de cidadãos imigrantes que vêm viver para os Açores e eu diria que vamos ultrapassar largamente os dados relativos a 2022.
Quais são as nacionalidades dos imigrantes que têm chegado à Região?
Naturalmente, e reporto-me também aos dados de 2022, temos na nossa Região pessoas vindas de 97 países diferentes. Na sua maioria, cidadãos brasileiros que representam 20% da população de imigrantes residente nos Açores. Depois, também temos alemães, chineses, franceses, espanhóis, cabo-verdianos. Desde o segundo semestre de 2023 até à actualidade, temos registado um dado novo que tem a ver com a entrada de imigrantes vindos dos países asiáticos, particularmente cidadãos do Nepal, os quais já representam um número considerável. Também temos registado, por exemplo, um número significativo de cidadãos vindos da Colômbia. Portanto, podemos dizer que a dinâmica da população estrangeira residente nos Açores está a mudar.
A Região tem sentido uma falta significativa de mão-de-obra qualificada em vários sectores. De que forma esta situação tem influenciado a chegada de imigrantes aos Açores? Podemos falar numa vaga de imigração?
Se olharmos para a estatística da imigração desde 2000 até 2022, verificamos que houve um aumento de quase 100% da população estrangeira residente nos Açores. Obviamente que no último ano e meio o aumento tem sido acelerado, um facto que se explica essencialmente por questões económicas. Os imigrantes vêm para os Açores e vão continuar a vir para os Açores enquanto houver procura de mão-de-obra e oferta de emprego. Portanto, não tenhamos dúvidas sobre isso: enquanto houver procura, os imigrantes vão continuar a entrar. E o que nós temos de fazer é criar as condições necessárias para que as pessoas possam ser bem acolhidas e bem integradas na nossa Região, em especial nas questões da habitação e acesso à saúde. Para além disso, é importante que a sociedade açoriana compreenda melhor o fenómeno migratório.
Algumas empresas têm optado por recrutar directamente mão-de-obra estrangeira, como é o caso do sector da construção civil. Que outros sectores têm seguido esta prática e com que resultados?
Para além da área da construção civil, há empresas ligadas ao turismo, como a restauração e a hotelaria, que têm efectivamente sentido a necessidade de recrutar mão-de-obra estrangeira, porque localmente não há pessoas disponíveis para ocupar essas vagas, e então optam por recrutar pessoas nos seus países de origem. Nós chamamos a atenção dessas entidades para o facto de que não basta ir buscar as pessoas para trabalhar na Região; é preciso seguir os canais legais para contratar esses trabalhadores.
Os imigrantes entram em Portugal com visto de trabalho ou visto de procura de trabalho e é necessário que as entidades patronais percebam que, uma vez que chegam aos Açores, essas pessoas têm de obter uma autorização de residência. Para obter esta autorização, é necessário um contrato de trabalho, um número de contribuinte e inscrição na segurança social. Além disso, as entidades patronais devem cumprir todas as normas estabelecidas no código do trabalho e na lei da imigração.
Por outro lado, também é preciso perceber que não basta ir buscar imigrantes para ocupar as vagas e vê-los apenas como mão-de-obra. Muitas empresas cometem o erro de ver os imigrantes como mão-de-obra barata, mas os imigrantes não são só mão-de-obra, são pessoas que têm objectivos, sonhos e perspectivas de futuro. Na maior parte dos casos, têm famílias que ficaram nos seus países de origem e têm o sonho de reagrupá-las um dia. Portanto, nós devemos ver a questão da imigração numa perspectiva de integração e não como ‘mão-de-obra fácil e barata’. Ainda há muito trabalho a fazer neste campo, mas acredito que estaremos no caminho certo quando mudarmos a forma como olhamos para este fenómeno.
A procura por trabalhadores estrangeiros no turismo é um fenómeno sazonal?
Como é sabido, a questão do turismo nos Açores tem um nível de sazonalidade muito grande. Neste sentido, se uma empresa for buscar um trabalhador estrangeiro e fizer um contrato de três, quatro ou seis meses, e depois despedi-lo, teremos um problema, pois essas pessoas precisam provar que estão integradas no mercado de trabalho para obter ou renovar a sua autorização de residência. Apelamos novamente ao sentido de responsabilidade das empresas para verem os imigrantes não apenas como mão-de-obra, mas como pessoas que precisam de manter os seus empregos.
Como avalia as condições de trabalho e de vida que estão a ser oferecidas aos imigrantes nos Açores?
Na nossa Região, e esta é uma questão transversal a toda a sociedade, temos um grave problema de habitação. No continente, por exemplo, temos assistido a situações muito precárias, com relatos de pessoas a partilhar quartos sobrelotados. Esperamos que essa realidade não chegue à nossa Região, pois com a entrada massiva de imigrantes sem oferta de habitação adequada, o risco de enfrentarmos os mesmos problemas é real.
O poder político – incluindo o Governo Regional, as Câmaras Municipais, as Juntas de Freguesia e até mesmo as empresas – deve ter esta questão em conta e apostar na prevenção. Pois, se chegarmos a casos de sobrelotação da habitação por parte da população imigrante, vamos enfrentar um grave problema social.
Outro ponto que devemos ter em conta é o acesso aos cuidados de saúde. Actualmente, o fenómeno da imigração em Portugal não é fácil de gerir, e também não é de fácil compreensão. Ao longo dos anos, a Lei dos Estrangeiros em Portugal tem sido alvo de muita instabilidade, e muitas vezes as pessoas e as próprias entidades regionais não sabem como lidar com essa lei. Quando nós falamos em ‘manifestação de interesse’, por exemplo, as pessoas não sabem o que é. Quando falamos do decreto-lei que prorrogou a validade dos documentos dos imigrantes, as pessoas não sabem o que é. E disto resulta que, muitas vezes, os imigrantes se dirigem a uma instituição e são criadas dificuldades de acesso aos serviços por mera falta de compreensão.
Sobre esta questão, posso dar o exemplo concreto da ‘Autorização de Residência CPLP’, um documento criado em 2023 para os cidadãos da CPLP (Comunidade dos Países da Língua Portuguesa), que é válido por um ano – ou seja, foi emitido em Março de 2023 e expirou em Março deste ano. No entanto, o anterior Governo não foi capaz de criar um mecanismo de renovação desse documento. Para fazer face a este problema, o actual Governo criou um decreto-lei que diz que, mesmo estando caducados, esses documentos são válidos e devem ser aceites como tal. Mas aquilo que acontece na prática é que um imigrante vai às finanças ou aos serviços de saúde e muitas vezes enfrenta problemas porque os funcionários não estão a par desta alteração e recusam-se a aceitar o documento. E mesmo apresentando o decreto-lei que diz que o mesmo é válido, o problema persiste. Ainda na semana passada, esta situação aconteceu a um cidadão imigrante numa escola de condução da Região e, se não fosse a intervenção da AIPA, ele não teria conseguido matricular-se. Existe muita falta de compreensão por parte de muitos serviços públicos relativamente ao fenómeno da imigração e, em específico, em relação à Lei dos Estrangeiros, e é precisamente para isso que nós chamamos a atenção.
De que maneira a AIPA tem actuado para apoiar os imigrantes que chegam à Região?
O apoio e encaminhamento aos cidadãos imigrantes é fundamental e talvez a actividade mais importante que realizamos. Nos nossos gabinetes em Ponta Delgada, Angra do Heroísmo e Madalena do Pico, oferecemos serviços de Segunda a Sexta, das 9h00 às 17h00, onde os imigrantes recebem toda a informação necessária para resolver os seus problemas em Portugal e nos Açores. Isso inclui o processo de regularização, acesso a cuidados de saúde, inscrição na segurança social, abertura de conta bancária, obtenção de número de contribuinte, pedido de nacionalidade portuguesa e inscrição dos filhos na escola, entre outras questões. Nas ilhas onde não existem gabinetes, realizamos atendimento itinerante, com técnicos que se deslocam mensalmente a todas as ilhas.
Outra questão muito importante no processo de integração dos imigrantes é a compreensão da língua portuguesa. Neste sentido, organizamos cursos e aulas. Com o apoio do Governo dos Açores, já realizámos a 14.ª edição de cursos de português na ilha Terceira, os quais conferem um certificado. Em Ponta Delgada, damos aulas de língua portuguesa e cultura açoriana. Este ponto é crucial, pois, compreendendo a língua do país de acolhimento, os imigrantes estão em melhores condições de trabalhar, estudar e, ao fim ao cabo, contribuir para a criação de riqueza nos Açores.
Para além disso, produzimos vários materiais de informação e sensibilização, não apenas para os imigrantes, mas também para a sociedade de acolhimento, para que tenham uma visão mais positiva sobre a imigração e fomentem a valorização da diversidade cultural.
Quais são as expectativas da AIPA para o próximo ano em termos de políticas de imigração e apoio aos imigrantes?
Em primeiro lugar, a Região está a crescer e precisa de investir em obras públicas e outros sectores. Não havendo disponibilidade de mão-de-obra local, a expectativa é que a imigração continue a aumentar. Relativamente às políticas de imigração, é importante referir que neste momento Portugal tem mais de 400 mil processos pendentes. O actual Governo criou uma estrutura para resolver esses processos e esperamos que sejam concluídos dentro de um ano.
É essencial termos políticas de imigração que não deixem as pessoas no limbo da ilegalidade, como temos assistido. Até ao início de Junho deste ano, existia um mecanismo chamado ‘manifestação de interesse’ que permitia às pessoas que chegavam a Portugal manifestarem o seu interesse em obter uma autorização de residência. Para tal, necessitavam de estar integradas no mercado de trabalho, ter um número de contribuinte e um número de segurança social. Assim, poderiam obter uma autorização de residência enquanto estivessem em Portugal. No entanto, o Governo actual aboliu este processo, o que resultou em casos de milhares de pessoas que já se encontravam em Portugal e não conseguiram manifestar o seu interesse a tempo, ficando sem a possibilidade de o fazer.
Nos nossos gabinetes, temos recebido muitas das pessoas que não conseguiram submeter a ‘manifestação de interesse’ a tempo. É urgente que o governo português encontre uma solução para que aqueles que já se encontram em Portugal possam obter uma autorização de residência. Caso contrário, estamos a criar situações de ilegalidade e, para além disso, deixamos que estas pessoas se tornem alvos fáceis à exploração laboral, a grupos de máfias e ao tráfico humano
Há algum aspecto específico da imigração e da integração dos imigrantes nos Açores que gostaria de destacar?
Nos Açores, temos todas as condições para sermos um exemplo no processo de acolhimento e integração dos imigrantes, mas isso só será possível mediante parcerias entre o poder político, a sociedade civil e as entidades patronais. Ou seja, é necessário um trabalho conjunto entre o governo dos Açores, as câmaras municipais, as juntas de freguesia e as associações de imigrantes. Muitas vezes, as entidades patronais não têm as informações necessárias sobre como seguir os canais legais para o acolhimento e integração dos imigrantes, tornando esta questão prioritária neste momento. Portanto, creio que, tendo todos esses actores em sintonia e a trabalhar em parceria, podemos criar nos Açores um bom exemplo de acolhimento e integração dos imigrantes. Mas ainda há um longo caminho a percorrer. Estamos a falar de uma região onde mais de um milhão e meio de açorianos vivem fora dos Açores. Somos uma região com uma grande experiência de Emigração e é preciso que comecemos a aprender mais sobre Imigração.
Daniela Canha