Edit Template

Corrector lusodescendente comprou o antigo Solar da Glória, no Livramento, para criar um condomínio privado de apartamentos

Filho de pais açorianos, Ernesto Furtado nasceu no Brasil, mas viveu a maior parte da sua vida no Canadá, onde, ao longo de 41 anos, construiu uma carreira na área de construção e imobiliária. Em 2020 viu uma oportunidade no mercado português e actualmente está a recuperar um solar com mais 200 anos, a antiga propriedade de Thomas Hickling, no Livramento. O projecto “Vida Nova” prevê a criação de um condomínio privado com apartamentos, casas independentes e cerca 10 mil metros de jardins. Nesta entrevista, o luso-descendente discute formas mais rápidas e sustentáveis para a construção de imóveis, aborda a crise da habitação e a falta de mão-de-obra qualificada nos Açores, afirmando que é urgente formar profissionais na área da construção.

Correio dos Açores- Qual o seu percurso de vida, na família, na escola e nos negócios?
Ernesto Furtado (corrector de imóveis, CEO da Smart Developments e ATREGG – All Things Real Estate Global Group) – Nasci em São Paulo, mas os meus pais são açorianos. O meu pai foi para o Brasil com 21 anos, mas cerca de 10 anos depois voltou a São Miguel para visitar o meu avô, que na altura estava doente. Nessa visita, conheceu a minha mãe numa festa e disse logo a um primo: ‘aquela vem comigo para o Brasil’. E assim foi. Começaram a namorar, embarcaram, casaram e tiveram um filho, tudo isto em 1961. Quando eu tinha 10 anos, fomos para o Canadá. A minha mãe era asmática e como naquela altura havia muita poluição em São Paulo, o médico disse que se ela ficasse lá talvez não escapasse. Então, ‘fugimos’ para Toronto, onde também tínhamos família.
Os desenhos sempre foram a minha paixão e eu queria estudar para ser arquitecto, mas a verdade é que não era bom aluno. Então, desde os meus 15 anos que enveredei pela área da construção, inicialmente como servente. Passava muitas vezes por uma imobiliária e ficava a olhar para as fotografias das casas, pois sempre foi algo que me interessou. E um dia vi um anúncio de trabalho na vitrine, entrei e perguntei o que era necessário para ser um corrector. O senhor que lá estava perguntou-me o que queria fazer quando crescesse, uma pergunta que aos 18 anos ouvimos muitas vezes. Expliquei que queria ser construtor, ao que ele respondeu: ‘boa ideia, vai tirar a tua licença de corrector’. Insisti que queria ser construtor e não corrector. Ele primeiro perguntou se eu era burro e depois disse: ‘como corrector vais comprar, construir e vender. Em vez de ganhar numa coisa, ganhas em três’. Lembro-me desta conversa como se fosse ontem pois foi a partir daqui que tudo começou. Aos 21 anos iniciei a minha carreira na imobiliária e já conto com 41 anos completos nesta área.

Como surgiu a oportunidade de vir para os Açores?
Ao longo dos anos, trabalhei com várias empresas, mas foi em 2017 que encontrei a eXp Realty, a primeira empresa deste tipo 100% virtual. Inicialmente, só operávamos na América e no Canadá, mas em 2017 expandimos para Inglaterra e Austrália. Em 2019 começamos a falar na oportunidade de abrir para o resto da Europa e para América Central. Então, comecei a pensar no Brasil pois é o meu país natal, mas acabei por perceber que o mercado brasileiro era muito difícil.
Infelizmente, em 2018 a minha mãe faleceu e foi a primeira vez que eu vim a São Miguel, pois a minha esposa insistiu que eu tinha de ver as minhas raízes, o lugar onde começou a nossa família. Então, comecei a estudar o mercado português e vi uma oportunidade, pois a verdade é que sempre que vou para um sítio novo, seja Portugal ou na China, a minha vida envolve sempre os imóveis. Em Janeiro de 2020 iniciamos o processo para montar a empresa, mas quando voltei um mês depois a pandemia já estava a escalar.

Como é que chegou à casa de Thomas Hickling?
Estive dois anos no continente a conhecer e a estudar o mercado. Há cerca de dois anos, decidi vir a São Miguel visitar um tio, o irmão mais novo da minha mãe. Nessa altura, já tínhamos um agente da eXp Realty nos Açores, o João Soares. Pedi-lhe para me mostrar o que tinha de melhor para investir na ilha e primeiro fomos ver um terreno que era uma antiga fábrica de cimento, mas logo mais abaixo estava este prédio que pertencia ao Thomas Hickling. Inicialmente pensei que seria uma grande dor de cabeça, mas acabei por gostar e, entretanto, já passou um ano e meio desde que começamos a projectar esta compra.

O que tem projectado para esta propriedade?
O projecto vai chamar-se ‘Quinta Vida Nova’, pois vai dar vida nova a esta propriedade. Algo que também vai de encontro aos valores da nossa empresa, pois o nosso mercado é muito diferente do tradicional e é destinado a pessoas que querem ter uma vida diferente ou uma vida nova.
Neste momento, a única coisa que consigo dizer é que vai ser um condomínio fechado, com vários apartamentos, vários prédios, e também casas independentes. Mas, quanto a esta última parte, ainda não tenho certeza, pois as tipologias ainda não estão bem definidas. Tivemos um atraso de quase um ano, porque me disseram que o PDM ia mudar no ano passado. Como não tenho muito conhecimento acerca destas questões nos Açores, quando falava com as pessoas, elas começavam-se a rir, porque ‘este PDM já era para ser mudado há 10 anos’. Foi uma situação que me deixou deveras perplexo.
Entretanto, prometeram-me que ficava pronto no Verão de 2023; depois, a data passou para o final do ano. E, no final do ano passado, disseram que talvez este Verão ficaria pronto. Estamos em Agosto, e não há sinal do dito PDM. Posto isto, decidi esquecer a espera e avançar com a primeira fase do projecto e construir onde posso. Se no futuro o PDM mudar e me deixarem construir mais qualquer coisa, então esta será a segunda fase. Neste momento, o PDM deixa-me construir até 9 mil metros quadrados de implantação. Poderão ser entre 50 a 80 apartamentos, dependendo da tipologia. A nossa ideia é ter apenas duas saídas, uma na parte de cima (entrada da Travessa do Mestre Henrique) e uma na parte de baixo (entrada da Rua da Glória ao Carmo).

Vai manter a traça original da fachada principal?
Sim, vou manter o exterior da casa e tentar recuperá-la o melhor possível, porque a verdade é que está em muito mau estado. Confesso que esta foi a parte que me deu mais dores de cabeça, pois quando lá cheguei ainda caíam pedaços do tecto e voavam telhas para a rua – foi uma sorte ninguém se ter magoado. O nosso próximo passo é começar a segurar a casa mas, infelizmente, temos de esperar pelas licenças e pelos engenheiros. Ou seja, para fazer as coisas com segurança, temos de esperar durante meses…

Tencionam assinalar a vertente história deste edifício?
O nosso intuito é dar uma “Vida Nova” a esta propriedade, mas a vertente histórica estará sempre lá. No entanto, mais interessante do que a casa, é o próprio jardim onde existem dois grandes miradouros que já têm mais de 250 anos. Ou seja, já estavam lá antes do Thomas Hickling construir a sua casa – disse-me um professor de História de São Miguel. Um dos miradouros deve ter cerca de 20 metros de altura e tem forma de caracol – ainda levamos cerca de cinco minutos para chegar lá acima e a vista é muito bonita, conseguimos ver a Lagoa e Ponta Delgada. Um pouco mais abaixo, há um miradouro que nós chamamos Mayan Pyramid (pirâmide mesoamericanas), pois tem uma construção parecida às pirâmides do México.

Que projecto tem para o jardim da propriedade?
Neste espaço, não menos de 10 mil metros de jardins. Já entrei em contacto com várias pessoas com experiência na área e fizemos um estudo, porque é uma zona muito interessante. Na mesma propriedade temos dois climas: lá em baixo, perto do solar (entrada da Rua da Glória ao Carmo), temos um microclima e posso plantar praticamente tudo durante o ano inteiro; e na parte de cima (entrada da Travessa do Mestre Henrique) faz mais vento e frio. Para dar uma pequena ideia, em Fevereiro/Março já temos morangos na parte de baixo e, por vezes, há uma diferença de 2 e 3 graus entre as duas zonas.

Que tipo de construção terá o condomínio “Vida Nova”?
O nosso tipo de construção é completamente fora da caixa. Estamos a falar de casas isoladas; à prova de som; com ar condicionado central; e com ar filtrado, pois um dos maiores problemas dos Açores é a humidade. Ou seja, trata-se de um tipo de construção assente no conforto e na sustentabilidade.
Neste sentido, também vamos utilizar painéis solares e estamos a estudar a possibilidade de utilizar turbinas para usar o vento para gerar energia. E como vamos ter um jardim muito grande, queremos criar um lago natural para preservar a água.
Para além disso, temos um sistema de construção ICF, que usa formas de isopor preenchidas com betão. Ou seja, são casas feitas em betão armado e não apenas com pilares de cimento. Aqui estamos a falar de casas à prova de fogo e com um maior controle sísmico – podem vir ventos de 250/300 kms que a casa fica no seu lugar.
Ou seja, é outro tipo de construção que traz mais conforto com praticamente o mesmo custo. E é um processo muito mais rápido. Mas porque é que as pessoas não o fazem? Porque mudar um costume é difícil. Estamos a estudar o mercado local e reparamos que até as grandes empresas da Região estão tão habituadas a trabalhar sempre da mesma forma e não aceitam novas e melhores opções de construção.
Para além disso, no futuro as casas vão ser fabricadas, não construídas no lugar. Também temos um outro produto, que provavelmente será o que vamos usar no nosso outro projecto ‘Vila Pelo Verde’, que fica perto do Campo da Batalha. É um projecto para 55 apartamentos e estamos a estudar se vai ser tudo pré-fabricado e apenas montado no local.
O problema é que tem de vir tudo de barco e isso dificulta muito a questão da logística. Apesar de sair mais barato comprar o nosso produto na Itália, o custo do transporte é tão elevado que fica ao mesmo preço que comprar no continente.

Qual é a sua projecção para o futuro da construção nos Açores?
Criamos uma empresa com o nome SmartDevelopments, e aqui smart significa construir de forma mais inteligente. Construir de forma diferente, melhor e, no futuro, mais barata. O primeiro carro foi feito por um milhão de dólares e agora vende-se por 50; e com isto quero dizer que tudo tem a sua fase experimental e para o futuro projectamos construções de alta qualidade com um menor custo. O nosso produto já está mais que provado – já uso ICF no Canadá há 30 anos – , mas nas ilhas apenas tenho conhecimento de uma casa que foi construída com um produto parecido e só há muito pouco tempo é que começou a surgir no continente. Mas, também, é um produto em bloco de isopor, que é feito com betão, e ainda requer muita mão-de -obra. O nosso produto (os painéis), que é feito em Portugal, é muito mais leve. Não preciso de três ou quatro homens em esforço e posso ter apenas uma pessoa a fazer um trabalho mais leve e muito mais rápido. Não temos de colocar cimento e, consequentemente, esperar meses para secar, etc. Ou seja, actualmente, já não faz sentido manter estes métodos em todos os projectos.
A qualidade da alternativa é superior e é um processo mais rápido. Tenho a certeza de que no nosso terceiro ou quatro projecto já vamos conseguir baixar o custo. Portanto, estamos a falar de algo mais rápido, mais barato e mais confortável, pelo mesmo preço, ou menos.
Estamos perante um grave problema de falta de habitação. E qual é o maior problema da habitação? O custo. Só em mão-de-obra é um absurdo. Imagine-se que tenho quatro pessoas a construir uma casa e estou a pagar um salário de um ano, mas se eu conseguir fazer o mesmo trabalho em seis meses, consigo, inclusive, pagar mais aos trabalhadores. Porque, honestamente, não sei como é que as pessoas vivem com o ordenado mínimo português. É um assunto que me entristece. Para além disso, um homem na construção está o dia inteiro a carregar blocos e cimento para ganhar o mesmo que uma pessoa que está sentada num café a servir de hora em hora. Não faz sentido e não há justiça nisso. Quem é que vai querer trabalhar na construção se não há nenhuma vantagem?

Que retrato faz da construção civil nos Açores comparada com a realidade do Canadá?
O salário mínimo no Canadá está a rondar os 15 dólares à hora, mas um servente na construção não ganha menos de 30 ou 40 dólares à hora. No entanto, se me dizem que querem ir para o Canadá trabalhar, a minha resposta é a seguinte: ‘vais ganhar as 50 horas, mas tens 60 para viver’. Em Portugal ganhas 800, 900 ou mil por mês, mas vives mil. Ou seja, as pessoas muitas vezes têm a ilusão de que ao ir para o Canadá vão ter uma vida melhor, mas a verdade é que depois têm de trabalhar Sábados e Domingos para poder comer. É possível ganhar muito dinheiro, mas os impostos também são muito altos.
No entanto, no Canadá, as pessoas são mais profissionais e têm mais experiência. Estive a estudar mais de duas dúzias de empresas de construção nos Açores, vi como é que eles trabalham e confesso que não quero nenhuma delas a construir nada para mim. Por isso é que estou a fazer as coisas com mais calma e com mais tempo, mas quando arrancarmos vai ser muito mais rápido.

Portanto, tem sentido dificuldades em encontrar mão-de-obra qualificada nos Açores…
É quase impossível arranjar trabalhadores. Mas, para dizer a verdade, não falta mão-de-obra, o que falta são pessoas com alguma experiência ou com vontade de fazer as coisas de forma diferente. Já tive várias situações em que os trabalhadores começam num dia bom e no outro não aparecem, ou então vão e fazem tudo torto. O que vejo é que, infelizmente, as pessoas já não têm orgulho no trabalho e querem ganhar oito horas para trabalhar duas. Para além disso, muitos trabalham com uma mão e têm o telemóvel na outra, depois não aparecem e dão várias desculpas. Não quero generalizar porque nem todos os trabalhadores são assim, mas a verdade é que já apanhei muitas situações complicadas.
No entanto, este não é um problema exclusivo dos Açores. A falta de mão-de-obra é um problema mundial porque, actualmente, ninguém quer fazer este tipo de trabalho. Felizmente, temos a possibilidade de mandar os nossos filhos para a Universidade para que tenham uma vida melhor, mas depois toda a gente quer ficar em frente a um computador. Quem está a ganhar uma boa vida no Canadá, por exemplo, são as pessoas que estão a aprender, canalizadores, electricistas, carpinteiros, etc. São profissionais na área da construção. Temos muitos doutores – muitos advogados, contabilistas e engenheiros-, mas não temos mão-de-obra qualificada e o que falta nos Açores é precisamente uma escola para criar estes profissionais.
E o que vamos fazer em relação à falta de mão-de-obra qualificada? As grandes empresas já começam a recrutar trabalhadores estrangeiros, porque a verdade é que se os de cá não fazem o trabalho, temos de ir buscar as pessoas fora.

Daniela Canha

Edit Template
Notícias Recentes
Melhor aluno do conjunto das licenciaturas de Economia e Gestão da Universidade dos Açores premiado pelo novobanco dos Açores
PS/Açores pede audição sobre demissões na EMA-Espaço e PPM acusa o Partido Socialista de difundir notícias falsas
Governo Regional quer fim da exclusão das Regiões Autónomas quanto ao Programa Regressar
Programa de Estratégias Marinhas destaca que estudo“científico sólido” das águas profundas dos Açores pode orientar políticas de conservação e ordenamento marítimo
Bloco de Esquerda queria uma comissão de inquérito sobre a eventual privatização do serviço de hemodiálise do HDES e o Governo garantiu que não está tomada qualquer decisão
Notícia Anterior
Proxima Notícia
Copyright 2023 Correio dos Açores