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Crónica da Madeira: “Ilha da Cerca”: Um verdadeiro santuário de amizade

Cheguei numa manhã primaveril a São Domingos Carmões. O sol entendia-se sobre o vinhedo à espera que a noite chegasse para que se adivinhassem as histórias desta pequena terra do Oeste. À noite as pessoas estão muito mais recetivas, debruçam-se sobre a verdade e confidenciam-se aos amigos íntimos. Quando ali cheguei, não conhecia absolutamente nada sobre aquela Região. Atravessei os campos com cheiros característicos dos verdes que enfeitam as terras e espalham-se no ar para que o vento os leve, sem direção, sob um céu imensamente azul. Voltei depois, muitas vezes, a este lugar para abraçar os meus amigos, são como meus irmãos, na força de uma solidariedade irrompível. São muitos os interesses que nos unem, mas sobretudo a razão mais forte é sermos quem somos na verdade de nós mesmos. Isso é um dom que nem todos têm porque se escondem por detrás do drapeado das cortinas da cobardia que mancha a sociedade.
São Domingos de Carmões, por estranho que possa parecer, tem uma ilha mergulhada no mais profundo dos silêncios, só corruptível pelo zombar das abelhas.
É uma ilha sem mar, mas é uma grande porção de terra, rodeada de mil árvores onde os olhares estranhos não rompem a solidão dos campos e a alma festeja-se na poética da vida.
Nesta “Ilha da Cerca” vivi momentos de convívio inesquecíveis. Nesta Ilha estive durante um mês, depois de o AVC que, inesperadamente, me atacou. Senão fora estes meus dois irmãos Vítor e José Reis e, ainda os meus grandes do Algarve, Ricardo e José Barata, talvez eu não estaria agora a escrever esta crónica.
Por muito que me esforçasse a descrever esta Ilha, onde, a semana passada, estive cinco dias a respirar o ar puro dos campos, não vos daria a imagem correspondente à enormidade dos campos frutíferos e aos jardins floridos. Um espaço criado com tanta poesia e beleza, subjacente está o amor de estes dois sereshumanos maravilhosos que há quarenta e cinco anos, realizaram este sonho.
Uma piscina enorme (como se fosse um oceano) com pequenos barcos de borracha, onde navegam as crianças e convidam os amigos a se refrescarem e asaborearem uma bebida tropical. Uma porção de água tranquila onde nos refletimos, sob um céu teimosamente iluminante. O azul-pálido idêntico ao dos oceanos.
Porque tão inteligentemente o Vítor Nobre e José Reis colocaram a casa fora de todos os ruídos, construíram-na sob égide do silêncio com o requintado gosto, encalhando-a no meio do arvoredo. Não vou descrever a sumptuosidade das salas, o conforto, a arte, a beleza e as cores. É uma espécie de peregrinação que reúne tudo quanto já referi para maravilhosamente encher os nossos olhos. De vez em quando ouve-se o som do piano que se repercute por toda a casa transformando-a numa sinfonia que nos envolve, tal é a força da música que nos alegra o pensamento. O pianista empenha todo o sentimento escapado da sensibilidade que o carateriza e desata nas variantes músicas conhecidas, faz-nos empaticamente vivê-las. É como se as notas corressem nos dedos do Zé Reis e saltassem para dentro de nós.
O jardim na sua variedade de árvores e plantas tem um recanto para os catos, uma coleção do Vítor Nobre. Orgulhoso, às vezes, por ali passeia acompanhado pela sua inigualável cadela, a Karen, que só não fala por um triz, mas responde às nossas perguntas com uivos prolongados, com aquele olhar que advinha o que dela pretendemos.
Vim desta vez à Ilha da Cerca, verdadeiro Santuário de amizade, para consultar dois médicos. Como sempre, o meu irmão Vítor acompanha-me não deixando escapar um único pormenor do que os médicos recomendam. Ele sabe que eu sou um pouco avesso às recomendações dos médicos.
Na penúltima noite da minha curta estadia rompi o silêncio com os meus passos, desenhando-os no longo corredor. Fui para o jardim de inverno. Ali debruçado sobre a piscina, viajei no tempo, ao passado, e experimentei a sensação de que os acordes do piano me perseguiam. Ali escrevi alguns dos meus poemas que só serão publicados após a minha morte. Ali encontrei em almoços e jantares os convidados do Vítor e do Zé Reis. Ali vivi momentos de alegria e de uma solidão por mim procurada. Ali restabeleci-me, sob o olhar atento dos meus dois irmãos.
No último sábado tive o grato prazer de almoçar com os irmãos do Zé Reis, o Carlos e a mulher que não os via há anos, o Rui e a mulher e o Pedro, filho do Carlos, com as suas duas maravilhosas crianças. Eles vivem nos Estados Unidos da América. Estava também a encantadora Leonor, filha do Ricardo, que sendo cineasta, acaba de se doutorar em filosofia numa universidade italiana. No dia seguinte tive a oportunidade de encontrar, num almoço, oferecido pelos meus amigos Vítor e Zé, aos primos do primeiro: avó, pais e dois filhos respetivamente, D. Maria da Conceição de Medeiros do Vale, Maria João de Medeiros CâmaraPinto, seu marido Gonçalo Almeida Pinto e os filhos Mafalda e Henrique, ambos engenheiros.
Os pais, estão em Tasquente, capital dos Uzbequistão, onde ele é professor de matemática. Nunca encontrei uma família tão unida como esta. Fiquei verdadeiramente impressionado: um sentido de valores que nos inspiram. Em todos os elementos das famílias Medeiros e Câmara, que se juntaram e construíram um verdadeiro Universo de amor, há uma simpatia que ultrapassa as palavras; uma generosidade que nos arrasta e contagia.
Deixo este refúgio sempre com imensa saudade. Aqui vim para me divertir. Aqui vim para me curar. Aqui vim para fortalecer os laços de amizade que são amor.
Antes de partir fui ao longo balcão e olhei a pequena montanha verde, em frente, coberta por um imenso céu azul. Fiquei em êxtase: tal como naquele primeiro dia que aqui cheguei estava o sol a iluminar-me. Senti o rumor do pesado portão de ferro, que se fechou atrás de mim, separando-me da minha Ilha da Cerca. Olhei aos meus irmãos e disse-lhes quais quer que forem as circunstâncias (tenho já 89 anos) e aconteça o que acontecer, amei-vos e amo-vos como verdadeiros irmãos.

Quando
a noite
embebedada
de tanta poesia
deixa que a madrugada
ressuscite
espreita o roseiral
do jardim
cada pétala
tem uma história
para contar
tal como as pedras
estão cheias de palavras
e sonhos
e
à medida
que a madrugada
se suicidar na claridade
de um novo dia
descobrirás
que os passos tatuados
no chão
têm dois nomes gravados
são esses que testemunham
a
grandeza
deste verdadeiro
Santuário da Amizade

João Carlos Abreu

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