A falta de trabalho levou-o para outras paragens. Depois de licenciado e pouco mais feito, as colocações estavam difíceis para alguém a quem diziam que «o mais certo é ficares desempregado», ainda “o curso” decorria naquela cidade nortenha. Estava habituado a tarefas próprias de uma vida vivida dentro de uma família humilde, mas a possibilidade de prosseguir estudos, fazia-o querer acreditar que outros mundos estavam por explorar. E havia vitórias ao seu dispor que outros não tinham nunca, dentro da sua família grande, conseguido alcançar. Uma licenciatura levava-o a sonhar ter aquilo que todos diziam ser possível. Ser reconhecido enquanto bom aluno, empenhado e ligeiramente intelectual, ter uma carreira “para lá da média” e ganhar um salário decente. Destacar-se dos outros pelo que fez e pelo que os outros não fizeram porque não conseguiram ou não quiseram.
Não era um aluno brilhante no que dizia respeito às notas que tinha. Estava longe da mesa da mãe pela primeira vez, e isso levou-o a perceber que a independência tem muitas perspetivas e várias facetas. Ser autónomo era duro, quase como se não houvesse mais ninguém para lhe pôr a mão. O tempo passou e com ele o tempo dos estudos. A meta era ficar poucochinho desempregado já que as histórias que lhe contavam eram terríveis para quem queria ser alvo do reconhecimento dos seus pares.
O primeiro passo foi a precariedade, depois o desemprego. Passou a ser presença assídua em todas as oportunidades de trabalho. Da fábrica à serração. Ainda tentou a pesca, as descargas de navios, a restauração e a apanha de caracóis. Apesar da incerteza, vivia tempos felizes entre os amigos e a cama da casa da mãe. Mas a ambição de valer por si, a vontade de constituir família e viver realmente a sua vida, levaram-no a aceitar o fado que se abria à frente dos seus olhos. Estava na hora de emigrar, deixando para trás os sonhos, as certezas e a vida que construiu em cima daquilo que sozinho idealizou. Procurar fora do seu país aquilo que achava poder encontrar por aqui, e que lhe foi negado. Estudar, trabalhar e viver uma vida de recato, independente e própria de quem estudou para lá chegar.
Descobriu duramente que a vida nem sempre é assim. A primeira paragem foram as esplanadas da vila de Vannes, na Bretanha francesa. Um amigo ganhava por lá a vida, e apesar de nunca se ter imaginado, com trinta anos, a servir à mesa licenciado, as gorjetas falaram mais alto. Foi sol de pouca dura. Um desaguisado com o então amigo, a juntar às gorjetas que afinal não eram assim tão numerosas, levaram-no mais para dentro do espaço europeu, para território ainda mais frio e anónimo. Um conhecido de longa data, que encontrou a divagar nas redes sociais, contou-lhe a história de que os alemães pagavam muito bem a quem trabalhava em energias renováveis, depois de terem feito enormes investimentos na área.
Depois de umas férias na terra que o viu nascer, lá foi de boleia para Colónia. O trabalho era árduo e o salário acompanhava. As pás eólicas pareciam mais pequenas vistas do chão, mas lá de cima a vista era aterradora. Afinal, trabalhar em energias renováveis envolvia subir pelo interior da estrutura e trabalhar colado às pás, enquanto as arranjava com fibra, um produto de difícil manuseio, viscoso e de cheiro intenso.
E as pás precisavam de ser arranjadas onde estivessem, pois não podiam simplesmente descer. O jovem sonhador licenciado correu o país, a Europa central e ocidental enquanto o sonho se desvanecia. A vida que não teve ainda lhe fazia falta, mas já não valia a pena. Era apenas uma miragem de um futuro que nunca chegou a ter.
Cada dia fazia com que a azia que sentia, a revolta que lhe custava ter deixado a sua terra, a aplicação que deu ao seu esforço para estudar um pouco mais, fosse esmorecendo até chegar à conclusão de que, afinal, aquela vida ia ser a sua. O vil metal, com tantas viagens a fazer e tantas pás a precisar de arranjo, valia agora muito mais do que aquele que pensou ganhar, no tal sonho que para si idealizou quando tinha ainda dezoito anos. Mas ainda assim, era mais feliz uma vez por ano, por esta altura.
Era quando regressava à sua terra, e o reconhecimento que recebia não era bem aquele que idealizou, mas a saudade era ainda mais forte.
Dos seus, amigos e familiares, e agora destes para a sua esposa e para os dois netos e sobrinhos que traz à terra uma vez por ano, para recordarem o sítio de onde o pai abalou, conhecerem os tios e tias e brincarem com os primos. Durante um mês, fazerem as delícias dos avós, que um dia viram o pai partir com os olhos carregados de lágrimas, sem saberem muito bem para quê e como. Um mês por ano volta a ser sonhador, e encontrar aquilo que deixou para trás. Encontrou o reconhecimento que queria nos olhos do pai e da mãe, por terem visto que aquele rapaz, agora homem, marido e pai, cresceu e se fez alguém. Noutra terra, na outra terra que também é sua.
Fernando Marta