Gena Pinheiro, da Califórnia, e João Mendonça, de São Miguel, conheceram-se há 25 anos na ilha Terceira: ela visitava a terra-natal do pai, e ele estava a terminar o serviço militar. Após 11 anos de uma vida acelerada na Califórnia, o casal decidiu regressar aos Açores em 2011, ainda sem um plano definido. Entretanto, surgiu a oportunidade de João continuar a lavoura da família, que inicialmente funcionava como uma exploração leiteira convencional. Aos poucos, a junção da paixão de João pela agricultura com o compromisso de Gena com a sustentabilidade e uma abordagem holística à saúde deu origem à Âmago Wellness Farm, uma quinta que adopta práticas de agricultura regenerativa. Além disso, oferecem visitas onde se pode experienciar a vida de um produtor de leite, promovem o turismo de voluntariado e realizam sessões de coaching de saúde holística e intimidade, numa abordagem que, segundo Gena, é uma “alternativa ao turismo de massas, protegendo os nossos recursos naturais e o modo de vida local, além de proporcionar aos visitantes um verdadeiro sentimento de pertença”.
Correio dos Açores – O João é nascido e criado em São Miguel e a Gena tem pais açorianos, mas nasceu na Califórnia. Como se conheceram?
Gena Pinheiro (fundadora da Âmago Wellness Farm) – Conhecemo-nos na Terceira durante as Sanjoaninas. Na altura, eu estava de visita com o meu pai, como fazia muitas vezes durante as férias de Verão, e o João estava a concluir parte do serviço militar obrigatório. O João gosta de dizer que me viu três vezes num só dia e que isso foi um sinal de que estávamos destinados a conhecer-nos. Quando me viu pela primeira vez, eu estava a descer a Rua da Sé a caminho do Jardim Duque da Terceira. Depois, viu-me no caminho de volta. Em ambos os momentos, lembro-me de reparar num grupo animado de jovens do outro lado da rua; era o grupo dele. Mais tarde, naquela noite, eu estava sentada num muro com o meu pai no Cerrado do Bailão, e foi então que o João me viu pela terceira vez. Não querendo faltar ao respeito, ele não se aproximou directamente, mas passou por nós várias vezes até que eu não pude deixar de reparar nele. Depois de um piscar de olhos brincalhão, os nossos olhares cruzaram-se e, quando fui buscar uma bebida para mim e para o meu pai, o João aproveitou para se apresentar. Foi há 24 anos e, desde então, a nossa viagem juntos tem sido preenchida por muitas voltas e reviravoltas que nos levaram precisamente ao nosso destino.
Como era a vossa vida antes de se mudarem definitivamente para a Região?
Quando conheci o João, ele estava a meio do serviço militar obrigatório e a família dele estava a preparava-se para emigrar para Massachusetts. Mudaram-se seis meses depois de nos conhecermos, e eu fui à Costa Leste para passarmos o nosso primeiro Natal juntos e conhecer a família dele. O plano do João era ajudá-los a instalarem-se durante um ano e depois juntar-se a mim na Califórnia, por isso andámos a viajar de costa a costa, sempre que possível, para estarmos juntos. Antes de conhecer o João, o meu objectivo era acabar o curso na Universidade da Califórnia, Berkeley, trabalhar em Gestão Ambiental na América do Sul e, a dada altura, viver e fazer um trabalho semelhante nos Açores, o lugar onde senti uma ligação profunda às minhas raízes ancestrais e onde fui mais feliz. Em vez disso, estudei durante um semestre no Chile, e depois voltei para começar uma vida com o João na Califórnia, onde trabalhei em departamentos ambientais de agências governamentais e, juntos, começámos uma empresa de paisagismo ecológico. Passados 11 anos de uma vida acelerada e orientada para questões materiais, não nos sentíamos realizados e decidimos vender tudo para criar, nos Açores, uma vida que valesse a pena ser vivida. Mal sabia eu que essa vida incluiria uma lavoura.
O que a motivou a regressar às origens e estabelecer-se em São Miguel?
A nossa decisão de nos mudarmos para os Açores em 2011 foi rápida. Em apenas seis meses, vendemos tudo e entrámos num avião. Sem sabermos qual seria o nosso trabalho nessa vida que, com certeza, valeria a pena ser vivida, começámos por ajudar o meu pai a concretizar o seu sonho de reforma: gerir um bed & breakfast na Terceira. Ao mesmo tempo, começámos a fazer exercícios de introspecção. Comecei a fazer listas separadas para mim e para o João, explicitando as nossas paixões e ideias de trabalhos que girassem em torno dessas paixões. Mas, de repente, o João recebeu um telefonema do pai que mudou as nossas vidas para sempre. Ele estava pronto para se reformar e perguntou se o João queria comprar a lavoura da família.
O João veio ter comigo e disse-me que a produção de leite era o trabalho que o movia. Eu olhei para ele com um olhar de menina da cidade e disse: “João, mas não está na lista.” Mas não importava; a sua clareza era inegável, ele nasceu para este trabalho. Assim, vim com ele para São Miguel, ainda sem saber como conjugar o seu amor pela produção de leite com a minha lista de paixões.
Como surgiu a oportunidade de montar a Âmago Wellness Farm? Como é que o projecto evoluiu ao longo do tempo e quais são os seus planos futuros?
A Âmago Wellness Farm não surgiu propriamente num único momento de inspiração, mas é o resultado de 12 anos de evolução. À medida que nos mantivemos fiéis aos nossos valores fundamentais, o nosso caminho foi se revelando gradualmente. Uma das principais razões que nos fez deixar o nosso estilo de vida californiano foi alcançar uma saúde holística — mente, corpo e espírito — sobretudo depois de os meus problemas de saúde física se terem agravado e de o bem-estar mental do João ter colapsado. Inspirados pela minha lista de paixões, tirei o certificado em coaching de saúde holística, e juntos concluímos cursos de gestão holística da terra. Quando assumimos a lavoura, esta funcionava como uma produção de lacticínios convencional. No entanto, para eu me poder envolver, era necessário que reflectisse os meus valores de sustentabilidade e de produção de alimentos nutritivos. Só assim poderia dedicar-me de corpo e alma a este projecto. Assim, tornámo-nos a primeira exploração leiteira em São Miguel, e provavelmente nos Açores, a adoptar um modelo de agricultura regenerativa focado em deixar o nosso ecossistema mais saudável a cada ano que passa.
Mais tarde introduzimos o turismo regenerativo, oferecendo visitas à quinta, e o turismo de voluntariado, que combina viagens com serviço comunitário. Estas actividades ligam os visitantes à vida de um produtor de leite açoriano, mostram-lhes como é que a comida chega ao prato e os incentiva a dar mais do que aquilo que recebem à nossa comunidade. Assim, da mesma forma que a agricultura regenerativa procura melhorar o meio ambiente ao longo do tempo, também o turismo regenerativo visa fortalecer a comunidade local com o passar dos anos. Esta é a nossa resposta à natureza extractora do turismo de massas.
Neste momento, estamos a recuperar a nossa arribana de pedra, com quase 90 anos, que servirá como um centro para programas de saúde holística focados no bem-estar físico, mental, emocional, social e espiritual. A arribana também acolherá experiências centradas nas tradições açorianas e em alimentos ancestrais e terá acomodações disponíveis para os hóspedes interessados numa experiência mais imersiva. Uma vez concluída esta parte, a nossa quinta será a integração completa dos três pilares sobre os quais a construímos: agricultura regenerativa, turismo regenerativo e bem-estar regenerativo.
Qual o conceito por trás da Âmago?
A beleza da palavra “âmago” reside na forma como encapsula o objectivo da nossa quinta — ligar as pessoas à parte mais profunda e essencial de si mesmas, que é o seu âmago. Na Califórnia, sentíamo-nos distantes desta parte central em nós mesmos, mas quando começamos a reservar algum tempo para nos reconectarmos com o nosso âmago, a vida começou a desenrolar-se de uma forma mais mágica, mas também mais desafiante, levando-nos a criar a nossa quinta de bem-estar. Ajudamos os outros a encontrar ou aprofundar a ligação com o seu âmago, guiando-os através de experiências que forjam ligações com aquilo que comem, com a terra, com a nossa comunidade e com o seu próprio corpo. O nosso âmago, ou essência, tem origem no coração e na alma. Esta ligação centrada no coração e na alma é vital, pois tem o poder de curar a nossa relação com a terra, os nossos entes queridos, o nosso corpo, as nossas comunidades e o mundo à nossa volta.
Como é um dia normal na vossa vida?
Varia consoante o dia. Embora a agro-pecuária seja um trabalho de sete dias por semana e cheio de desafios inesperados, fazemos um esforço consciente para estruturar a nossa semana de forma holística. Concentramo-nos em cinco áreas-chave: tempo para a nossa relação, diversão, tarefas domésticas, centralização pessoal, ou seja, alinhamento interno através da dedicação à estabilidade e à conexão com o próprio, e actividades de negócios. Num dia, posso estar a guiar um cliente através de uma sessão de conexão ao corpo, e no dia seguinte, posso estar a ajudar o João a tirar uma gueixa da ribeira. Da mesma forma, o João pode estar a ordenhar vacas, a ensinar um hóspede a ordenhar ou a estender uma manta debaixo das árvores, para que possamos reconectar-nos e lembrar-nos de que, se não estivermos bem juntos, tudo o resto desmorona.
Que tipo de serviços e tratamentos oferece na sua quinta?
Temos novas experiências muito interessantes relacionadas com comida verdadeira, a ligação mente-corpo e a sabedoria ancestral que serão lançadas assim que a nossa arribana estiver finalizada. Por isso, fiquem atentos! Por enquanto, as nossas principais ofertas incluem visitas à quinta, turismo de voluntariado e coaching de saúde holística & intimidade. As visitas permitem que as pessoas experimentem a vida agrícola em primeira mão, desde o pastoreio à ordenha, e depois desfrutem de um piquenique de leite cru e queijo artesanal. O turismo de voluntariado envolve projectos de serviço comunitário com impacto, como limpeza costeira ou assistência a um membro da comunidade local que esteja a enfrentar um determinado desafio. As sessões de coaching, presenciais ou online, ajudam as pessoas a aprofundar a sua ligação com o corpo e a trazer essa sensação de conexão para as suas relações e para o dia-a-dia.
Como tem sido o feedback dos clientes?
O feedback que recebemos dá-nos força para continuarmos com a nossa visão, apesar dos obstáculos. Muitas vezes, os clientes descrevem as suas experiências na nossa quinta como ‘transformadoras’, ‘o ponto alto da nossa viagem aos Açores’ ou ‘aquilo que viajar deve ser’. Outros surpreendem-se com a cura e a transformação que alcançaram com o coaching. É por isso que fazemos o que fazemos. O nosso trabalho lembra as pessoas de que a obsessão com o estatuto e a riqueza material é muitas vezes uma distracção da verdadeira magia da vida — ligações autênticas e relações profundas com nós próprios, com os nossos entes queridos e com o mundo que nos rodeia.
Qual o impacto de iniciativas como esta na economia e no turismo local?
A nossa abordagem dá prioridade à qualidade das visitas em detrimento da quantidade de visitantes, oferecendo benefícios profundos. Ajuda a preservar o carácter único dos Açores, mantendo as tradições, a cultura e os modos de vida locais. Cria postos de trabalho nas comunidades rurais, incentivando os jovens a permanecerem perto das suas famílias. Também promove ligações significativas entre culturas e uma compreensão mais profunda de diferentes formas de viver. Modelos como o turismo regenerativo, o turismo criativo e o turismo de base comunitária oferecem uma alternativa ao turismo de massas, protegendo os nossos recursos naturais e o modo de vida local, além de proporcionar aos visitantes um verdadeiro sentimento de pertença
Todo o trabalho que desenvolve diariamente está assente numa base de sustentabilidade? De que forma?
Acreditamos que tudo — quer seja uma empresa, a nossa saúde, ou uma quinta — deve ser considerado como um todo para ser verdadeiramente sustentável. Uma empresa concentrada unicamente no lucro não pode ser sustentável porque sacrifica as pessoas e o planeta. Da mesma forma, uma empresa que dá prioridade ao ambiente, mas ignora a estabilidade financeira, não é viável a longo prazo. É por esta razão que praticamos o triplo resultado final, considerando cuidadosamente o impacto das nossas acções na comunidade, no ambiente e na nossa estabilidade financeira. Implementamos esta mesma abordagem holística na saúde que, para nós, é mais do que apenas comida e exercício. Inclui sol, relações significativas, água de qualidade, descanso, um sentido de propósito e muito mais. Ao entendermos a sustentabilidade através desta perspectiva holística, adoptamos práticas regenerativas em todos os três componentes da nossa quinta de bem-estar, com o objectivo de melhorarmos as condições da nossa terra, da nossa comunidade e dos nossos clientes todos os anos.
O que mais gostaria de destacar?
Quero expressar uma profunda gratidão aos meus falecidos avós, que me mostraram o que significa movermo-nos pelo mundo como uma pessoa centrada no coração e na alma. Tendo crescido numa grande cidade americana, perdi-me muitas vezes no impulso do hiperindividualismo e do sucesso material. Mas, os meus avós incutiram em mim valores fundamentais, como a honestidade, a família, a empatia, a lealdade e a responsabilidade. Estes valores guiam-me continuamente de volta ao meu âmago, à minha essência, onde sou capaz de me reconectar com os meus avós e encontro as respostas que me permitem viver o meu propósito mais profundo: partilhá-lo com o mundo através da Âmago Wellness Farm.
Daniela Canha
