Correio dos Açores – Qual a importância do Dia Internacional para as Pessoas Afrodescendentes nos Açores?
Leoter Viegas (Presidente da Associação de Imigrantes nos Açores) – Esta data foi instituída pelas Nações Unidas na resolução 68/237 no âmbito da Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024).
Assinalar o Dia Internacional para as Pessoas Afrodescendentes é dar visibilidade aos filhos dos africanos nascidos fora do Continente Africano, através do desenvolvimento de acções que visam o combate ao racismo, à xenofobia e à discriminação racial.
Nos Açores, infelizmente, não temos dado destaque a esta temática e não temos assinalado esta data como deveria ser. No entanto, a celebração deste Dia é muito importante porque temos nos Açores já muitos afrodescendentes que merecem ter visibilidade.
Considera que foram alcançados os três objectivos da Década: reconhecimento, justiça e desenvolvimento?
Na verdade, não foi dada, na Região, a visibilidade merecida à Década e, consequentemente, à celebração do Dia Internacional para as Pessoas Afrodescendentes. Nesse sentido, A AIPA faz essa mea culpa. Não obstante, não deixamos de assinalar e desenvolver algumas iniciativas que vão de encontro aos objectivos da Década. Com efeito, a AIPA tem como objectivo fundamental do combate a todo o tipo de racismo, discriminação, xenofobia e promover igualdade entre povos e culturas. E ao longo de vários anos, temos chamado a atenção da sociedade açoriana para a necessidade da promoção e da valorização da diversidade cultural.
A mão-de-obra provinda dos vários cantos do Mundo é cada vez mais uma realidade. Quantos afrodescendentes trabalham no arquipélago? Em que sectores?
Na verdade, a AIPA não consegue, e ninguém consegue dar um valor exacto do número de afrodescendentes que residem nos Açores. No entanto, sabemos que a estrutura da população estrangeira residente nos Açores tem vindo a alterar-se periodicamente. Inicialmente, quando começou a registar-se um maior fluxo de imigrantes para a Região, tínhamos uma estrutura da população imigrante dentro das duas mil pessoas que era composta, essencialmente, por população estrangeira vinda do Brasil, dos países do Leste Europeu, particularmente, da Ucrânia e Rússia. E tínhamos também uma população africana maioritariamente composta por pessoas dos países africanos de língua portuguesa. Depois, com o andar do tempo, vimos a entrada de um número considerável de cidadãos da União Europeia. Mas, nos últimos dois anos, voltamos a registar a entrada de um número significativo de cidadãos imigrantes vindos dos países africanos, nomeadamente, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Basicamente porque os Açores estão a atrair cada vez mais cidadãos estrangeiros, fruto da procura da mão-de-obra. Há criação de emprego, há criação de vagas para as pessoas virem exercer a sua actividade.
E, por outro lado, temos atraído cidadãos imigrantes, primeiramente africanos, para a Universidade dos Açores e para as escolas profissionais da Região.
Os africanos estão inseridos, basicamente, na construção civil, nos serviços ligados ao Turismo (restauração, hotelaria) e também temos registado, já este ano, a entrada de cidadãos de Cabo Verde para trabalhar como motoristas em transporte público. É uma realidade que já existe em Portugal Continental, mas nos Açores também estamos a registar esta tendência.
A comunidade de afrodescendentes encontra-se bem integrada nos Açores?
Ainda temos um longo caminho a percorrer para uma plena integração, nomeadamente, a questão que tem a ver com alguma diferença cultural que leva muitas vezes à xenofobia, discriminação racial e também de racismo. Estas são questões sobre as quais não devemos ter medo de falar, de abordar e de colocar no debate público no sentido de encontrar uma forma de as combater. O racismo e a discriminação racial são um crime em Portugal e a sociedade deve ser consciencializada de que, efectivamente, estes fenómenos são crimes e o país deve ter condições para punir estes crimes quando são praticados, denunciados e detectados. Nesta vertente, ainda temos algum trabalho a fazer e a AIPA enquanto associação de imigrantes vai continuar a chamar a atenção do poder político para criar mecanismos e combater racismo e xenofobia e também sensibilizar a sociedade para a tolerância e para uma melhor compreensão da presença dos imigrantes, particularmente, dos imigrantes africanos residentes nos Açores.
O que os açorianos podem aprender com a comunidade afrodescendente?
Podemos aprender muita coisa. A comunidade imigrante pode aprender muito com a sociedade onde está inserida. Deve estar aberta para participar no convívio em termos culturais e em termos sociais; devem ‘beber’ daquilo que é cultura no país de acolhimento. Mas, também, a sociedade de acolhimento deve estar aberta para aprender e ‘beber’ aquilo que é a cultura que os imigrantes trazem para o país de acolhimento, para a região de acolhimento, particularmente, os Açores. A cultura que os imigrantes trazem consigo é muito rica, essa diversidade, esses costumes diferentes, a forma de ser, também ajuda-nos enriquecer a cultura e a sociedade açoriana.
Fazemos um apelo para que a sociedade de acolhimento esteja disponível para receber e entender melhor aquilo que é a cultura dos países dos imigrantes que nos procuram e aprender com eles a forma de fazer as coisas, porque, assim, estamos a enriquecer, cada vez mais, a nossa Região.
Com que apoios podem contar essas pessoas por parte da AIPA?
Os imigrantes podem contar com a nossa total disponibilidade, colaboração e apoio naquilo que é o seu acolhimento e integração. Temos em funcionamento três centros locais de apoio à integração dos imigrantes. São gabinetes que funcionam de segunda a sexta-feira das 9 as 17 horas. Estão disponíveis para dar todo o tipo de apoio, informação, encaminhamento, às pessoas imigrantes, sejam elas de que países forem, nacionalidade e religião no sentido de regularizar a sua situação, no acesso aos cuidados de saúde, de educação para os filhos e, se for o caso, para o pedido de nacionalidade portuguesa. Os nossos gabinetes estão devidamente preparados para dar todo o tipo de informação e apoio aos imigrantes que procuram os Açores para viver.
Paralelamente, desenvolvemos actividades que têm a ver com aulas e cursos de língua portuguesa para imigrantes que não tem o português como língua oficial, com centros em São Miguel, Pico, Terceira e Faial.
Também desenvolvemos iniciativas de promoção de interculturalidade para colocar a cultura dos imigrantes disponível para que todos possam aprender.
Numa entrevista recente afirmou que os Açores são uma Região com grande experiência de Emigração. No entanto, precisamos de começar a aprender mais sobre Imigração. Em que medida?
Os Açores são uma Região, tradicionalmente, da Emigração. Sabemos que segundo estudos e dados disponíveis, existem mais de um milhão e meio de açorianos e açor-descendentes. No entanto, nos últimos, 20 e 25 anos, passamos a ser também uma região da Imigração. Passaram também a colher cidadãos Imigrantes. E é preciso os Açores conhecerem mais e melhor as pessoas que nos procuram (…).
O nosso apelo é que, sendo os Açores uma região de acolhimento de imigrantes, é necessário que, pelo menos, os serviços públicos estejam devidamente capacitados para lidar com a questão da Imigração: capacidades ao nível de legislação sobre estrangeiros, sobre a forma adequada de responder aos desafios que são colocados perante o fenómeno da imigração. É esse apelo que fazemos à sociedade açoriana, porque a esmagadora maioria das pessoas reconhece que os imigrantes são importantes para a Região. Estão a disponibilizar mão-de-obra, estão a criar riqueza para a Região. Também é reconhecido que o imigrante, com a sua cultura, vem enriquecer a cultura portuguesa e a cultura açoriana. E também é reconhecido que os imigrantes poderão ser uma ajuda para mitigar o fenómeno da desertificação em algumas ilhas do arquipélago e contribuirem também para minimizar a questão da natalidade, pois nós temos um problema sério de natalidade em Portugal e nos Açores.
É nossa obrigação, o nosso dever estarmos devidamente preparados para acolher bem as pessoas que nos procuram. E o nosso apelo vai exactamente neste sentido.
Acha que os imigrantes não são bem acolhidos?
É difícil fazer uma generalização. Mas, de uma forma geral, o processo de acolhimento e integração dos imigrantes em Portugal tem sido um caminho e tem seguido uma trajectória positiva. Mas ainda há alguns aspectos em que temos que trabalhar, porque isso não é um processo estático, é processo evolutivo, é um processo dinâmico. E nós temos de trabalhar diariamente o processo de acolhimento e integração dos imigrantes. Porque nós sabemos, e isso não é segredo para ninguém, que um dos grandes debates hoje na Europa e também em Portugal tem a ver com a questão da imigração.
Temos um partido político que diz até que temos que fazer um referendo sobre a imigração. Qual é o objectivo? O objectivo é colocar a questão da imigração no debate no sentido de, muitas vezes, culpar os imigrantes por alguns problemas que existem no nosso país. É um debate perigoso. Portanto, nós devemos estar muito atentos a esses fenómenos e combater todas as formas e todas as estratégias e manobras que, no fundo, querem criar um debate na sociedade portuguesa em que os imigrantes vêm cá, por exemplo, para roubar emprego, outros vêm viver da segurança social, outros vêm praticar crimes. E, em bom rigor, isto não é verdade e os números que estão disponíveis mostram, efectivamente, que os imigrantes vêm cá criar riqueza.
Portanto, é preciso desmistificar esses discursos populistas, demagógicos, racistas contra pessoas imigrantes em Portugal.
A sociedade açoriana ainda tem um longo caminho a percorrer para compreender o fenómeno da imigração?
Os Açores já foram mais fechados em relação aos imigrantes. Eu vivo nos Açores há 25 anos – já vivi mais tempo nos Açores do que em São Tomé, o meu país de origem – e, portanto, conheço bem a forma como os Açores lidavam com a imigração há 25 anos e como lidam actualmente. Portanto, hoje, as pessoas estão mais abertas em relação à questão da emigração do que aquilo que estavam há 25 anos atrás. Mas, há muito caminho a ser feito, muita sensibilização a ser feita. Ainda existe alguma incompreensão relativamente ao fenómeno da imigração e nós temos que continuar a sensibilizar as pessoas para essa necessidade de valorização da diversidade cultural.
Não basta dizer ‘eu aceito bem os imigrantes, mas não aceito a convivência com emigrantes’. Este tipo de mentalidade não é saudável.
Não basta nós termos na nossa região, nas nossas ilhas, pessoas de vários países, de várias culturas diferentes – aquilo que nós chamamos de mosaico cultural – se não estivermos disponíveis para promover a interacção entre pessoas de diferentes culturas.
E essa promoção de interacção de pessoas de diferentes culturas é o que nós chamamos de interculturalidade e é isso que nós achamos que deve prevalecer para que tenhamos uma sociedade cada vez mais rica e tolerante.
É preciso explicar às pessoas que quando o imigrante sai do seu país para outro país, é atraído pela oferta de emprego. Os imigrantes que estão a entrar nos Açores, só vêm para os Açores porque há oferta de emprego, há falta de mão-de-obra. Não há nenhuma empresa açoriana que manda para o desemprego um açoriano para colocar um imigrante, isto é uma ilusão, não existe, é mentira. Portanto, dizer que as pessoas vêm cá roubar emprego aos outros é falso. É preciso desconstruir isso. E daí, existem estas vagas que são criadas e que os emigrantes vêm ocupar. E a esmagadora maioria dos imigrantes ocupam trabalhos de serviços mais duros, serviços sujos, e serviços que têm um desgaste muito rápido. Este é um fenómeno que acontece em vários outros países. Portanto, esta é a realidade. E é isso que nós temos que explicar às pessoas.
É preciso falar a verdade às pessoas e não entrarmos com um discurso populista, um discurso barato, um discurso que, nas redes sociais, passa muito rapidamente. E as pessoas, se não tiveram um juízo crítico sobre essas notícias, pensam que isso é verdade, mas no fundo, quando nós vamos esmiuçar e quando vamos analisar essas questões, vemos que não correspondem rigorosamente à verdade.
Não tenhamos dúvidas, há muitos sectores de actividade em Portugal, e também nos Açores, que se não fossem os imigrantes, tinham muita dificuldade em sobreviver. Isto é um facto. E são os próprios agentes económicos que dizem isso: ‘se não fossem os emigrantes neste sector de actividade, essa actividade fechava’. E os órgãos de comunicação social também são vínculos muito importantes para esclarecer a população e a opinião publica sobre estas questões. E a AIPA está totalmente disponível para esclarecer as pessoas.
Que mensagem quer deixar neste Dia Internacional para as pessoas afrodescendentes?
A nossa mensagem enquanto Associação dos Imigrantes, e eu particularmente, enquanto presidente da AIPA, é que os afrodescendentes, aqueles que vieram da África e aqueles que já nasceram cá, fazem parte integrante da sociedade portuguesa, da sociedade açoriana e devem sentir-se como tal. Portanto, todos juntos devemos combater qualquer forma de discriminação, de racismo e de xenofobia.
O apelo que fazemos à sociedade açoriana é que estejamos atentos a toda a manobra e todo discurso populista no sentido de colocar os imigrantes como um problema e não como pessoas que vieram cá contribuir para o desenvolvimento social, económico e cultural de Portugal e particularmente dos Açores.
O filho de um africano que nasce nos Açores é português e açoriano. Eu sou africano, nasci em São Tomé e Príncipe, vivo nos Açores há 25 anos, tenho cá três filhos que nasceram nos Açores que também são afrodescendentes. São açorianos, são portugueses como qualquer um português; e eles têm todo o direito de participar na vida política, social e económica em Portugal e nos Açores.
E mesmo que não tivessem nascido cá, mesmo se tivessem vindo da África e cá residirem há pelo menos cinco anos, já têm direito a solicitar a nacionalidade portuguesa.
Os Açores são uma região que está a sofrer com o fenómeno da emigração, pois nós sabemos que há muitos jovens açorianos que têm saído dos Açores; há uma busca de melhores condições de vida noutras paragens. Uma região com essas características deve estar disponível também para receber os imigrantes, assim como os açorianos gostam que os seus familiares e os seus filhos sejam bem acolhidos noutros países.
Portanto, toda a sociedade deve estar preparada e disponível para lidar bem com este fenómeno.
Neuza Almeida/D.C.