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“Natália Correia era mais do que uma mulher, o seu talento e inteligência roçam o mais próximo do absoluto que conheço”

João Albano Fernandes é o vencedor da IV edição do Prémio Literário Natália Correia com o romance ‘Caindo de Mais Alto’. Natural de Águeda, no distrito de Aveiro, e formado em Arquitectura pela Universidade de Coimbra, o autor confessa que só descobriu o gosto pela escrita um pouco mais tarde, inspirado pelo avô e pelo tio – “dois exímios contadores de histórias”. Actualmente, conta com vários prémios literários, incluindo o Prémio Nacional de Literatura Lions de Portugal, em 2023, com o romance ‘O Lixo dos Outros’. Sobre ‘Caindo de Mais Alto’, livro que o júri descreveu como detentor de uma “inequívoca maturidade literária”, o autor afirma: “tem um carácter bastante experimental e pouco usual nos meus textos. É um livro escrito a partir de um fluxo de consciência quase ininterrupto, com poucos sinais de pontuação.”

Correio dos Açores – Quando percebeu que queria ser escritor?
João Albano Fernandes (escritor) – Foi uma coisa relativamente tardia e que aconteceu sem que eu me apercebesse muito bem disso. Foi com a entrada na faculdade, tinha eu 17-18 anos. Comecei a escrever pequenas histórias, contos inspirados nas histórias do meu avô e do meu tio Fausto, dois exímios contadores de histórias. Talvez por invejar esse seu poder cativante da oralidade e por não possuir o mesmo talento, decidi começar a pôr essas histórias no papel, onde me sentia mais confortável, com tempo, silêncio e concentração para dizer exactamente aquilo que queria. Entretanto, as histórias começaram a crescer, a ganhar dimensão, densidade, novos personagens e contornos e, quando dei por ela, apercebi-me que estava a escrever romances.

O que representa para si ter ganho o prémio Natália Coreia?
Vencer o prémio Natália Correia é uma enorme honra, desde logo pela autora a quem o prémio é dedicado. Sinto-me muito lisonjeado e, ao mesmo tempo, sinto também uma certa inibição por ver o meu nome ao lado de Natália Correia, uma artista absolutamente brilhante e sem comparação em Portugal. A Natália Correia era mais do que uma mulher, o seu talento e inteligência roçam o mais próximo do absoluto que conheço. Ter este prémio associado ao meu percurso é um marco ímpar para mim e se me aproximar um bocadinho que seja dos calcanhares dessa artista genial, já ficarei muito feliz.

Qual foi a inspiração inicial para “Caindo de Mais Alto”? Quais são os temas centrais que quis explorar com este livro?
O livro tem um carácter bastante experimental e pouco usual nos meus textos. É um livro escrito a partir de um fluxo de consciência quase ininterrupto, com poucos sinais de pontuação. O autor sente uma vontade súbita de discorrer sobre as suas angústias existenciais, saltando entre presente e passado, indo à infância, adolescência, juventude, além do confronto permanente com a sua realidade presente em colapso. E é como se ele não pudesse parar de escrever, sob pena de não conseguir retomar e dizer aquilo que quer dizer. É como um enorme fôlego que ele toma, inspirando fundo como se preparasse para executar uma apneia. O tempo da escrita é o tempo dessa única respiração.

Arrecadou vários prémios ao longo da sua carreira, e mais recentemente os júris do Prémio Literário Natália Correia falaram de uma “inequívoca maturidade literária”. Como descreve a evolução da sua escrita?
Fico muito feliz com a crítica do júri e com essa menção em particular. Desde os meus 18 anos, quando comecei a escrever mais assiduamente, sinto que a minha escrita passou por um processo constante de transformação. Ao longo do tempo, sobretudo dos meus vintes, sempre que lia algo que tinha escrito anteriormente, sentia que não era aquilo, sentia que havia ainda longo caminho a trilhar para atingir a qualidade que desejava. Hoje já não sinto tanto isso, embora haja sempre, naturalmente, coisas a trabalhar, caminho para fazer, olhares que se transformam, evoluem, se modificam. Por isso, sinto-me contente por só ter editado os meus livros depois dos 30. Se o tivesse feito antes, talvez não me sentisse tão satisfeito com o resultado.

No próximo dia 10 de Outubro, a Câmara Municipal de Ponta Delgada procederá à entrega do prémio. É o seu primeiro prémio nos Açores? Qual a sua relação com a Região?
É o meu primeiro prémio nos Açores, sim. Infelizmente só conheço São Miguel, que já visitei por 3 ou 4 vezes e onde adoro ir, até porque tenho lá alguns amigos. Ando há vários anos a dizer que tenho de fazer um périplo pelas outras ilhas, mas ainda não aconteceu. Talvez este prémio seja o impulso que precisava para o fazer. São Miguel é um lugar maravilhoso e que tem qualquer coisa de onírico para mim. Claro que a sua beleza natural, as paisagens, as lagoas, as praias, a arquitectura muito particular, contribuem para isso. Mas é mais do que isso. É talvez o mar e a insularidade que me transportam para uma realidade paralela, como se me visse de repente no livro do Raul Brandão, como se fosse uma das suas personagens que existe apenas no tempo da leitura. É um tempo belo e poético, talvez porque o reconheça também como efémero.
Já existe uma previsão para o lançamento do livro?
Pelo que a Câmara Municipal de Ponta Delgada me informou, o livro estará pronto precisamente no dia 10 de Outubro, data da entrega do Prémio e de abertura dos Encontros Literários, onde espero poder já folheá-lo e oferecê-lo a algumas pessoas.

Quais são as suas expectativas em relação à recepção do público?
É talvez o livro em que estou mais curioso e receoso pela recepção das pessoas precisamente porque é o livro que tem uma carga mais pessoal e autobiográfica. Talvez por ter saído de um lugar de vulnerabilidade, sinta esse peso. Ainda que, ao mesmo tempo, seja um livro bastante cru e verdadeiro, e talvez essa verdade seja apreciada pelas pessoas, como foi pelo júri.

Que conselhos daria a escritores emergentes que, como o João, procuram um espaço no panorama literário português?
Para conselhos sobre espaço no panorama literário português, cobro 500€ por sessão. Não sou ninguém para dar conselhos, muito menos no nosso panorama tão circunscrito e difícil de entrar. Posso só falar da minha experiência, que tem sido precisamente a dos concursos e prémios. O que me permitiu editar os meus livros foi precisamente ter vencido alguns concursos e prémios literários para obras inéditas, que promoveram essa edição e me permitiram chegar a mais leitores. Mas claro que há muitas formas de conseguir publicar. Há quem mande as obras para as editoras, há quem se sirva do sucesso nas redes sociais, há quem auto publique, há quem conheça as pessoas certas. Tudo é válido, desde que os autores tenham essa tremenda vontade de editar e de que os seus livros possam ser lidos. Nunca foi tão fácil e tão difícil publicar em Portugal. Fácil porque qualquer pessoa pode publicar o seu livro, sem grande critério, em último caso pagando para isso. Difícil no sentido de chegar ao público, de se destacar no meio de tantos livros e tantos escritores. Acima de tudo, para mim, importante é escrever.

Daniela Canha

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