Correio dos Açores – Qual a importância de se celebrar o Dia Mundial do Coração?
Anabela Tavares Taveira ( Médica Cardiologista do Hospital do Divino Espírito Santo) – O Dia Mundial do Coração é uma data que foi emanada pela Federação Mundial de Cardiologia e é comemorada, desde o ano de 2000, no dia 29 de Setembro, uma vez que se constata que a doença cardiovascular é a principal causa de morte a nível mundial, sendo esta transversal a qualquer país, incluindo Portugal. Neste sentido, como há uma relação directa, entre desenvolvimento de doenças de coração e comportamentos de risco, esta Federação, através deste dia comemorativo, faz lembrar que é possível alterar estes dados, tentando, de alguma forma, controlar os factores de risco que estão associados à doença cardiovascular. Assim sendo, há a necessidade de se relembrar às pessoas que se pode prevenir esta doença, alertando-se para os sinais de perigo que, não só se limitam ao enfarte e à angina no coração, como também, a outro tipo de situações cardíacas que, de igual modo, têm uma preponderância com impacto no internamento hospitalar.
Qual é a incidência de doenças cardiovasculares nos Açores? E por comparação a Portugal continental?
A prevalência de incidência de doenças cardiovasculares é semelhante quer na Região Autónoma dos Açores quer no continente europeu. Isto tem a ver com os factores de risco das sociedades com estilos de vida menos saudáveis. Não obstante, temos a percepção que há um ligeiro aumento da doença cardiovascular e, estou-me a referir, em específico, à doença coronária, que engloba os enfartes e as anginas de peito, enquanto que as doenças cerebrovasculares incluem os AVC’s (Acidentes Vasculares Cerebrais) e outras doenças neurológicas.
Neste sentido, esse ligeiro aumento da doença cardiovascular acontece porque existem factores de risco mais preponderantes na população açoriana, nomeadamente, os valores de colesterol elevado, o tabagismo, o excesso de peso e a diabetes.
A maior parte de estudos sobre a incidência cardiovascular é feita a nível nacional. Não obstante, posso dizer que os registos anuais de internamento no Serviço de Cardiologia por doença cardiovascular no HDES (Hospital do Divino Espírito Santo) variam entre os 1100 e os 1200 pacientes, sendo que essas taxas têm se mantido mais ou menos estáveis. Já no panorama nacional, se recorrermos a estudos que foram feitos pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), no que respeita à incidência de doença cardiovascular comparativamernte a Portugal Continental e a Região Autonóma dos Açores em, que se analisou um número significativo de doentes, cerca de 500 mil, constatou-se que doentes com risco cardiovascular muito elevado, ou seja, que apresentam múltiplos factores de risco, tais como diabetes ou colesterol, são aqueles com uma maior probabilidade de virem a ter um evento cardiovascular nos próximos dez anos. E neste sentido, não há dúvidas de que a população açoriana está em piores condições, uma vez que esse risco cardiovascular calculado foi de 14,4%, enquanto que em Portugal Continental atingiu os 11,9%. No entanto, é preciso ter em conta que esses factores são modificáveis, porque se actuarmos precocemente e formos proactivos, poderemos atingir daqui a alguns anos números completamente diferentes.
Qual a percentagem dos enfartes miocárdios na mortalidade dos açorianos? Em que lugar se encontra entre as doenças que levam mais açorianos à morte?
A doença cardiovascular tem uma taxa de mortalidade de cerca de 30% abrangendo os AVC’s e o enfarte agudo do miocárdio. Em termos globais, essa taxa a nível nacional anda à volta dos 7,1%, 7,5%. No que respeita aos Açores, os dados que temos do HDES indicam que é relativamente mais pequena, sendo que há anos estamos a atingir os 6,1% e, houve um ano, em que alcançámos os 5,8%. Logo, a taxa de mortalidade açoriana não varia muito, porque a proximidade a nível de distâncias percorridas para se chegar a tempo aos meios de saúde são bem menores. De facto, o utente chega mais facilmente ao hospital, de forma a tratar o mais precocemente possível o seu enfarte e é reencaminhado para o internamento, onde é rapidamente acompanhado e tratado de acordo com as linhas de orientação nacional.
E, pelo contrário, qual o sucesso de um tratamento atempado de um doente com enfarte do miocárdio?
A taxa de sucesso do tratamento depende muito do ‘timing’ a que o doente chega ao hospital, uma vez que quanto mais rapidamente ele recorrer ao serviço hospitalar, maior é a probabilidade de a equipa médica abrir a artéria que é responsável pelo enfarte, sendo que há tempos que estão preconizados mundialmente para isso. Neste sentido, aconselhamos que é ao mínimo sinal de enfarte, o doente se dirija ao hospital e, chegado a este, deve fazer um electrocardiograma, no mínimo em 10 minutos, sendo seguidamente, transferido o mais depressa possível para a Sala de Hemodinâmica. Estou a referir-me, a São Miguel, visto termos uma Sala de Hemodinâmica disponível. Por outro lado, existe o tratamento alternativo de cetrinol que pode ser feito em outros hospitais que, não têm esta sala, ou em centros de saúde que possuam a capacidade para receber estes doentes. Assim sendo, os doentes diagnosticados, numa primeira abordagem, com angioplastia primária têm, também, a indicação de recorrer a este tratamento alternativo que consiste na destruição do coágulo.
O Serviço Regional de Saúde tem todas as condições necessárias, em termos de equipamentos e números de médicos, para reagir de forma rápida a pacientes com um enfarte miocárdio? O que falta?
Como é do conhecimento público o incêndio deflagrado, no Hospital de Ponta Delgada, no dia 4 de Maio, colocou muitos constrangimentos a nível do espaço físico, pois houve a necessidade de se deslocar vários médicos para vários postos de trabalho, entre outras reestruturações. No que respeita aos nossos doentes cardíacos, estes são avaliados no Serviço de Urgência do HDES e estão internados na CUF (Companhia Urbana de Fiabilidade). Mesmo com uma capacidade de internamento reduzida, a capacidade de prestação de cuidados, do ponto de vista clínico, continua igual. Temos, assim, uma Sala de Hemodinâmica que funciona 24h para os doentes urgentes; no que concerne aos casos mais ecléticos, readaptamo-nos às outras especialidades; estamos, também, em conversações com a Direcção Clínica para o mais breve possível voltarmos à nossa normalidade e internamento, de forma a retomarmos toda a produtividade que tínhamos até à altura prévia ao incêndio. As nossas expectativas são que os nossos doentes venham a ter uma cobertura a 100% dos cuidados de saúde a que têm direito.
Em termos de meios humanos, do ponto de vista da Cardiologia, as pessoas estão exaustas, devido ao trabalho acrescido e à multiplicação de postos de trabalho , mas até ao momento, não houve constrangimentos na formação das nossas escalas.
Qual é o primeiro conselho que dá a um paciente que sofreu um enfarte do miocárdio?
Eu seria um bocadinho mais precoce concentrando-me na fase pré-evento cardíaco. Neste sentido, diria que qualquer pessoa deve ter atenção aos factores de risco cardiovascular, tendo conhecimento prévio dos mesmos. Assim, se alguém for hipertenso, tem de ter a tensão controlada e se tiver colesterol elevado terá que ter em atenção a diminuição dos valores. Fecho aqui um parentisis, para dizer que a mentalidade associada à ideia que os medicamentos para o colesterol fazem mal trata-se de um mito que tem de ser abolido do nosso dia-a-dia. Continuando a minha linha de pensamento anterior, é preciso, também, combater o excesos de peso, termos uma dieta saudável do tipo mediterrânica, deixar de fumar e fazer actividade física.
Após um evento cardíaco, que é sempre um marco na vida de uma pessoa, passadas as primeiras fases do seu enfarte, o doente irá recuperar aos poucos, sendo que deverá tomar medicação para o resto da vida. É claro que há doentes que ficam com sequelas muito graves e, neste sentido, poderão ter um programa de recuperação muito mais lento, em que a reabilitação terá um papel muito importante. Aproveito para dizer que no que respeita a novidades dentro da Reabilitação Cardíaca, estamos a tentar implementar esta área no nosso hospital, o que vamos conseguir, muito provavelmente, no próximo ano.
Continuando a linha de racíocinio anterior, o doente não pode esquecer que a vida continua, que a medicação é para se tomar, que terá um tempo de descanso que tem de ser acordado com o seu médico assistente, sendo que a partir daí, a tentativa é a de voltar à normalidade, uma vez que este agora está curado e tratado, tendo maiores capacidades físicas para controlar os factores de risco.
Pode uma criança sofrer um ataque de coração? Em que circunstâncias?
A probabilidade de uma criança ter um enfarte do miocárdio, pelo processo de quadro-escolerótica, é muito baixa, diria até improvável. No entanto, pode haver enfarte infantil quando as crianças são portadoras de mal-formações coronárias, ou seja, doenças que são congénitas.
Quer aproveitar para esclarecer alguns mitos associados às doenças do coração?
Eu costumo dizer à população em geral que ninguém morre com o coração saudável. Portanto, a ideia de que ‘coitado, morreu subitamente, e estava tão bem’ é um mito. De facto, quando ocorre uma morte súbita, o que acontece em cerca de 18% dos casos, até indivíduos jovens, tem de haver uma patologia cardíaca subjacente; poderá não ser a doença coronária, poderá ser uma morte arrítmica.
Neste sentido, sabemos que a morte súbita acontece e que a doença existe, mas poderá não dar sinais, ou a pessoa, poderá não os saber identificar. De facto, a dor centralizada no peito, que é um dos mais típicos enfartes, é um dos sinais que o coração dá e que a pessoa poderá não percepcionar. Por outro lado, há outras manifestações e sintomas da doença coronária que poderão passar pela perda do reconhecimento e pela sensação de falta de ar acrescida. Há ainda, outras doenças, que não são consideradas um enfarte, mas que podem ser vistas como preocupantes, porque têm uma prevalência cada vez mais elevada na população portuguesa e europeia, designadamente, a fibrilação auricular ou, as mais comumente conhecidas, arritmias. Com efeito, há cerca de 150 mil portugueses que são afectados por esta entidade que, felizmente, tem forma de tratar, uma vez não tratada pode levar a uma situação limite de insuficiência cardíaca e de AVC’s. De salientar que essa outra situação, a de insuficiência cardíaca, é também muito importante, pois existem cerca de 400 mil portugueses e cerca de 150 milhões de europeus que sofrem desta, o que muitas vezes, é indicativo da manifestação final de várias doenças, nomeadamente, a doença coronária.
De salientar que todas essas situações vão progredindo, com o cansaço e com a falta de ar, logo é preciso a pessoa rastrear-se e conhecer o seu estado de saúde para tratá-lo atempadamente, uma vez que muitas vezes o doente já nos chega numa situação de doença estabelecida. No entanto, o que o coração tem de bom, é que está associado a factores de risco que podem ser controlados, pelo que se estes forem detectados a tempo, é possivel diminuir a incidência da doença coronária. Assim sendo, o mito de que doença de coração é igual a fatalidade, também tem de acabar, porque podemos preveni-la e tratá-la, uma vez que temos meios capazes, médicos e não médicos, para isso.
No passado mês de Julho, no Texas, foi implementado com sucesso um coração artificial construído em titânio num paciente humano com insuficiência cardíaca terminal. Quais são as inovações mais recentes nos tratamentos de doenças cardíacas e o que se perspectiva em termos tecnológicos e avanços cirúrgicos para o futuro?
A área da insuficiência cardíaca é muito vasta, à qual o nosso hospital já começa a dar relevância. Sabemos, por exemplo, que 400 mil portugueses são atingidos. De salientar que há vários formas de insuficiência cardíaca. Felizmente, ao longo dos anos, a tecnologia e a própria Farmacologia têm avançado, por forma a que possamos tratar melhor estas doenças. Quando existe insuficiência cardíaca, numa fase inicial, os doentes fazem medicação. Efectivamente, há cada vez mais medicamentos na área dos fármacos que surtem bons resultados, nomeadamente, nos tratamentos daqueles indivíduos que têm a fracção reduzida, ou seja, cujo coração trabalha com uma fracção de injecção acima dos 50% e abaixo dos 30% e 35%. Além da medicação, também numa fase primária, podemos fazer terapêuticas de ressincronização, colocando aparelhos específicos para melhorar a função cardíaca; há também os cardioversores desfibriladores e, ainda, os transplantes cardiacos, aos quais alguns doentes podem ser candidatos.
Infelizmente, a taxa de doentes transplantados é reduzida em Portugal. De ressalvar que não estou a falar dos Açores, visto não termos essa capacidade. Assim sendo, o número de transplantes é feito de forma limitada para aquilo que é necessário. É preciso, também ressalvar que nem todos os doentes que sofram de insuficiência cardíaca são candidatos a transplantes, pelo que, muitas vezes, há a necessidade de se colocar aparelhos de pontagem entre o tratamento médico até se aguardar a transplantação. De facto, existem Centros de Insuficiência Cardíaca Avançada que têm muitos aparelhos, os chamados corações artificiais, que são implantados nos doentes, numa fase de insuficiência cardíaca terminal e, que têm a função de serem substituíveis temporariamente, ou seja, esses pacientes poderão não chegar ao transplante final, no momento, pelo que colocam esses aparelhos até que se encontre um coração que seja compatível com o transplante deles. Nessa área, geralmente há muitas inovações e novos dados, o que contribui para fundamentar, o que já tenho vindo a referir sobre do facto de que nem tudo está acabado para um doente cardíaco: a investigação continua e os resultados têm sido bons nessa área, bem como no aperfeiçoamento de técnicas e aparelhos de pontagem até à transplantação. É uma questão de continuarmos a apostar e trabalhar nesses avanços.
Que mensagem gostaria de deixar neste Dia Mundial do Coração?
O que importa ressalvar no Dia Mundial do Coração, porque é essa a sua função, é a de sensibilizar e relembrar às pessoas para a importância da saúde dos nossos corações. Isto passa pela promoção de hábitos de saúde saudáveis que possam prevenir a existência das doenças cardiovasculares, por forma a se controlar os factores de risco.
Este ano, o tema do Dia Mundial do Coração é “Use o seu coração, Conheça o seu coração” e neste sentido, é crucial conhecer o nosso coração para melhor tratar dele. É este o conselho e a mensagem que gostaria de deixar.
Neuza Almeida