O Dia Internacional da Não-Violência celebra-se anualmente a 2 de Outubro, data que assinala o aniversário de Mahatma Gandhi, uma das maiores vozes da resistência contra a violência. Para assinalar este dia, falamos com o sociólogo Paulo Fontes que nos fala sobre o estado actual da sociedade açoriana, onde a violência doméstica continua a mostrar números alarmantes. Para além disso, fala sobre as novas formas de violência que surgem no mundo digital; como afirma: “não ver a face da outra pessoa no diálogo, permite maiores atrocidades e maiores abusos da linguagem. Assim, temos um mundo despersonalizado onde é mais fácil maltratar o outro”.
Correio dos Açores – Qual a importância de assinalar o Dia Internacional da Não-Violência?
Paulo Fontes (sociólogo/ docente UAC) É sempre importante assinalar estes dias, sobretudo quando as suas causas ainda não estão resolvidas. Neste caso em específico, a violência é um problema tão complexo que acompanha o ser humano desde sempre. Mas, à medida que sociedade se torna mais evoluída, as civilizações vão lutando cada vez mais contra a violência. Precisamente por isso, este dia serve para aumentar a consciência sobre um problema que ainda está por resolver.
Que dados mais recentes existem sobre a violência nos Açores? Que tipos de violência são mais comuns?
Segundo aquilo que pude verificar, em 2022 foram reportados 834 casos de violência, o que significou uma subida em relação a 2021. No entanto, os dados de 2023 mostram uma diminuição. Há, de facto, uma oscilação, mas estes números continuam a ser muito significativos para a nossa Região. Eu diria que a ponta do iceberg, a parte mais preocupante da violência em Portugal, é o feminicídio – quando se assassinam mulheres por questões de violência doméstica. Ou seja, o assassinato de mulheres continua a existir e está na casa de mais de uma dezena por ano. E no caso específico dos Açores, os números de casos de violência doméstica continuam muito significativos.
Para além da violência doméstica, que outro tipo de violência considera mais preocupante ou mais grave nos Açores?
De modo geral, a violência é sempre grave e implica sempre uma consciencialização para que as pessoas possam lutar e impor-se contra actos violentos. No entanto, a violência doméstica é aquela que tem uma componente afectiva entre pessoas que vivem dentro do mesmo agregado ou que têm relações de afectividade mesmo não vivendo no mesmo agregado. Ou seja, é uma violência que tradicionalmente se passava no ambiente doméstico, dentro do agregado, e que ao longo da história foi ignorada pelos poderes públicos. E, inclusive, até tínhamos aquele ditado que dizia que ‘entre marido e mulher não se deve meter a colher’. Ora, actualmente esse ditado está completamente desactualizado e ainda bem!
No ano de 2000 a violência doméstica passou a ser considerada um crime público, o que quer dizer que deixa de ser um crime só contra aquela pessoa e passa a ser contra todos nós. Sendo um crime público, são mobilizados todos os meios do Estado para punir a violência doméstica. Ou seja, o Ministério Público tem que fazer uma investigação e abre-se um inquérito mesmo contra ou independentemente da vontade da pessoa; e há recursos do Estado empenhados nessa restauração da justiça.
É muito importante que a violência doméstica seja considerada crime público, porque deste modo o direito tenta regular as relações familiares e afectivas de forma a introduzir mais justiça e igualdade nessas relações.
Qual o motivo que explica a violência?
No que toca ao motivo que leva à violência, existem muitas áreas de estudo. E a psicanálise é provavelmente a área que oferece a melhor explicação. Eu partilho da posição psicanalítica que diz que a violência surge da nossa vontade de dominar o mundo. Ou seja, quando um recém-nascido faz a primeira birra porque a mãe o deixou – para o deixar no colo de outra pessoa, por exemplo –, o que acontece quando a criança começa a gritar é que já está a tentar exercer algum domínio sobre a mãe. Segundo a psicanálise, aqui já pode haver o rasgo de alguma violência – este querer dominar os outros. Este é um impulso que já nasce connosco. Ou seja, nós temos um impulso inato para a violência, um impulso inato para tentar dominar os outros e as outras coisas de uma forma unilateral e violenta.
Apesar disso, nós também temos uma outra parte, que é a parte de cooperação e de civilização. Ou seja, temos um percurso paralelo de violência, mas também temos um percurso paralelo de cooperação e respeito. E acredito que é ao criar uma reflexão cada vez maior sobre a importância de respeitar o outro como a nós mesmos e não como sendo inferior, que nos fará avançar.
Temos de perceber que o outro tem o mesmo valor que nós! Quando os homens perceberem isso, provavelmente vão deixar de ser violentos com as mulheres e vão deixar de haver assassinatos de mulheres. O objectivo é tratar o outro como e igual e não como uma posse minha, administrativa ou compulsiva.
Apesar de termos, de facto, uma propensão inata para a violência, com isto não quero desculpar de maneira nenhuma o ser humano. A nossa natureza é muito mais que isto e aquilo que nos permitiu estar aqui hoje como civilização não foi o nosso lado violento, mas sim a parte da cooperação e do respeito. Então, é por aqui que temos de continuar a trabalhar. As mulheres, por exemplo, têm feito a sua luta e todos nós temos de nos associar a esta luta por igualdade e respeito.
Como encara os novos tipos de violência, como a violência digital?
Os novos tipo de violência têm muito a ver com as redes sociais e com o mundo digital. Isto é, estamos na era digitalização da sociedade e a violência também se propaga no mundo digital. Por um lado, temos novas formas de violência que surgem no mundo digital, mas, por outro, muitas dessas formas de violência já existiam. Por exemplo, o
Bullying já existia e existe na sociedade e nos ambientes reais, mas também existe nos ambientes digitais.
Tudo o que envolve o ódio que se propaga nas redes sociais é uma questão que nos deveria fazer pensar, pois é mais fácil as pessoas verbalizarem os sentimentos negativos que têm no mundo digital do que ao vivo. Com as redes sociais cada um pode ser um potencial autoritário – um potencial ditador violento – que pode expressar as suas opiniões quase livremente.
Na minha opinião, o não ver o outro, o não ver a face da outra pessoa no diálogo, permite maiores atrocidades e maiores abusos da linguagem. Assim, temos um mundo despersonalizado onde é mais fácil maltratar o outro.
Para além disso, há ainda mais uma questão com muito impacto nos discursos de ódio e na agressividade que se vê nas redes sociais; uma questão que tem a ver com o facto de alguns líderes populistas terem iniciado esse tipo de discurso. Estou a falar directamente de Trump e de Bolsonaro. Mas principalmente de Trump, o líder da nação mais poderosa do mundo, que introduziu esse discurso de ódio e de agressividade ao mais alto nível. Ou seja, se o Presidente dos Estados Unidos, o pode fazer, muitas pessoas pensam que também o podem fazer. E se em Portugal o André Ventura também o pode fazer, eu também penso que poderei fazê-lo. E isto é uma bola de neve porque o desrespeito, a despersonalização e a instrumentalização do outro ganharam formas nunca antes vistas na história. E o mundo digital é o púlpito para todas estas novas formas de agressividade e de frustração que as pessoas carregam.
Qual o impacto da mediatização da violência na sociedade e no comportamento das pessoas?
Esta é uma questão muito interessante e tem que ver com a banalização da violência, ou com o perigo da banalização da violência. Ou seja, o próprio acto de falar em violência pode ser violento. Portanto, acredito que devemos medir bem a necessidade que temos de falar das coisas para não correr o risco de as banalizar.
Temos que tratar as coisas pelos seus nomes, temos que tratar as vítimas e ouvir as suas vozes, restaurar as suas frustrações e as suas mágoas. No entanto, não devemos mexer demasiado para além disso. Isto é, não banalizar a violência nem a vender gratuitamente, porque actualmente o mundo está constantemente bombardear-nos com violência gratuita. Desde os filmes às notícias, a violência é o prato mais forte, é o prato mais servido de todas as redes e televisões.
Quando começou a guerra na Ucrânia, por exemplo, as pessoas ficam chocadas, contagiadas. Mas com tantos meses a assistir a tantas imagens de bombardeamentos, a tendência do ser humano, por mais bem-intencionado que seja, é banalizar a questão – é ‘não ligar’. Ou seja, o efeito mediático acaba por ter um efeito contrário, pois em vez de deixar as pessoas sensibilizadas, acaba por levá-las a banalizar a situação. E isto é muito mau quando se trata de violência pois assistimos a massacres e discursos de ódio na televisão e a tendência é ‘não ligar’. Esta é uma questão que deveria, inclusive, preocupar jornalistas e todos aqueles que têm algum tipo de responsabilidade nesta área.
Que quadro faz da luta contra a violência nos Açores?
De modo geral, os Açores até têm uma história pioneira na abordagem do fenómeno da violência; isto na medida em que temos a primeira casa-abrigo do país para mulheres vítimas de violência. Para além disso, e segundo os manuais, deve-se actuar na violência, principalmente na violência doméstica, em três níveis: a prevenção, a protecção e restauração das vítimas, e o tratamento e acompanhamento dos agressores. Nós fazemos isso tudo na Região Autónoma dos Açores. No entanto, penso que o investimento não pode ser descuidado e, se possível, aumentado – principalmente no acompanhamento dos agressores.
Precisamos de reforçar as sessões da saúde mental, pois muitos agressores têm problemas de saúde mental e da adição a substâncias psicoactivas ou de álcool. Esta situação faz com que as abordagens de tratamentos e de acompanhamento sejam bastante mais complexas e acredito que o investimento público é escasso nesta área.
Todos sabemos que a coisa pública tem muitas demandas e muitas procuras para gastar o orçamento regional, mas também acredito que para quebrar os ciclos de violência é muito importante continuar a investir na reabilitação e no acompanhamento dos agressores para além também de nunca esquecer o apoio às vítimas, como é óbvio.
Por um lado, acredito que os Açores têm uma história pioneira no apoio às vítimas – para além de que foi na nossa Região que surgiu o primeiro programa de reabilitação de agressores do país – e como técnicos na área podemos nos orgulhar do nosso trabalho, mas ainda temos muito que fazer e não podemos descansar porque os números não nos deixam descansar.
E reitero que no que toca a quebrar ciclos de violência, a parte que permanece mais sensível ainda é a do acompanhamento e reabilitação dos agressores. E digo ‘agressores’ porque a maior parte dos agressores é do sexo masculino. Embora existam ‘agressoras’, a questão da violência doméstica ainda é, maioritariamente, uma questão de género. Porque na sua grande maioria, são os homens os agressores e as mulheres as vítimas. Esta configuração ainda não mudou e é por isso que falo muito desta polarização que tem de ser trabalhada. Pois, para que as questões de desigualdade de género possam ser combatidas, tem de haver uma sensibilização contínua na sociedade.
Daniela Canha