A psicóloga aborda a questão da saúde mental no período pandémico, o estigma inerente aos homens em relação ao apoio psicológico, como também promove a necessidade de literacia em saúde mental.
“As condições mais recorrentes entre os açorianos incluem depressão, perturbações de ansiedade e dependências. O isolamento social e geográfico são fatores que precipitam e agravam estas condições”- afirma
Correio dos Açores – A temática da sensibilização para a saúde mental foi bastante abordada durante o período da pandemia. Que análise faz deste período e que repercussões se verificaram no pós-pandemia?
Inês Martins (psicóloga) – Durante a pandemia, observou-se um aumento significativo da procura por serviços de saúde mental, resultado directo do medo do isolamento, da incerteza e da proximidade constante com a doença. O período de confinamento trouxe à tona questões de ansiedade, depressão e stress, com as pessoas a enfrentarem, muitas vezes pela primeira vez, a necessidade de dialogar sobre o seu bem-estar mental.
No pós-pandemia, o impacto continua a ser evidente: embora o diálogo sobre saúde mental tenha aumentado e muitos tenham reconhecido a importância do auto-cuidado, continuam a verificar-se dificuldades, especialmente relacionadas com o isolamento prolongado.
Este impacto é ainda mais visível em áreas geograficamente isoladas, como os Açores, onde o isolamento social e geográfico tornaram-se factores de manutenção de condições como a depressão.
Considera que ainda existe algum estigma por parte da sociedade (principalmente de faixas etárias mais envelhecidas) em relação à saúde mental e ao uso de apoio psicológico?
Na minha experiência, o estigma em relação à saúde mental está presente em todas as faixas etárias, não se limitando apenas às gerações mais velhas. O que varia é o contexto: indivíduos em funções de maior responsabilidade, ou inseridos em ambientes familiares mais conservadores, tendem a demonstrar maior resistência a procurar apoio psicológico.
É importante destacar que, em muitos casos, os homens continuam a ser um grupo mais vulnerável ao estigma, muitas vezes por não reconhecerem ou por sentirem que não podem expressar vulnerabilidade emocional. Este fenómeno é culturalmente enraizado e afecta todas as gerações, tornando fundamental a sensibilização contínua. O papel da família e do contexto social é essencial para ultrapassar esta barreira.
Como é que os açorianos lidam com a sua saúde mental?
O contexto açoriano apresenta desafios únicos, principalmente devido ao isolamento geográfico e à acessibilidade limitada aos serviços especializados, que muitas vezes requerem deslocações entre ilhas. No entanto, tem havido uma crescente consciencialização da importância da saúde mental, especialmente desde a pandemia.
Estudos anteriores e relatos de profissionais de saúde têm destacado que os açorianos ainda enfrentam barreiras culturais e sociais no que diz respeito à procura de ajuda psicológica. Na minha visão, o estigma e a falta de literacia em saúde mental podem ser factores de resistência, embora, em termos gerais, as pessoas estejam a procurar mais frequentemente o apoio psicológico comparativamente a anos anteriores.
Quais são as doenças/condições, na vertente da saúde mental, que estão mais presentes entre os açorianos?
As condições mais recorrentes entre os açorianos incluem depressão, perturbações de ansiedade e dependências. O isolamento social e geográfico, características marcantes da região, são fatores que precipitam e agravam estas condições.
Dados mostram que os Açores têm uma das maiores taxas de depressão em Portugal, sendo o suicídio uma preocupação constante. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), as taxas de suicídio na Região Autónoma dos Açores são frequentemente superiores à média nacional, uma realidade associada ao isolamento, dificuldades socioeconómicas e falta de acesso a serviços de saúde mental, especialmente em ilhas mais pequenas.
Além disso, as dependências, nomeadamente o abuso de álcool e drogas, são também condições com elevada prevalência nos Açores. Estas dependências estão frequentemente associadas a problemas de saúde mental, sendo que o consumo abusivo de álcool é culturalmente tolerado em algumas regiões, o que agrava a situação. A dependência acaba por ser, em muitos casos, uma forma de “auto-medicação” para lidar com a depressão, a ansiedade e o isolamento, por exemplo.
A conjugação destas condições cria um cenário desafiador para a saúde mental na região, reforçando a necessidade de intervenções eficazes e acessíveis em todas as ilhas.
Abordando a realidade da Região, de que forma as condições socio-económicas e de dependência podem afectar psicologicamente as pessoas?
As condições socioeconómicas nos Açores desempenham um papel significativo no impacto psicológico da população. A taxa de desemprego, a precariedade laboral e a dependência de subsídios podem gerar uma sensação de impotência e baixa auto-estima, que contribuem para o surgimento ou agravamento de perturbações de ansiedade e depressão.
Além disso, o isolamento geográfico e social das ilhas mais pequenas limita o acesso a redes de suporte social e aos cuidados de saúde mental, agravando o risco de deterioração da saúde mental. A falta de literacia em saúde dentro do próprio sistema de saúde, com a insuficiência de programas de prevenção e promoção de saúde mental, também contribui para essa vulnerabilidade, apesar de ser notório o esforço contínuo de colegas para a promoção de saúde.
De que forma será possível alcançar um maior número de pessoas para a necessidade da valorização da saúde mental no seu dia-a-dia?
A promoção de literacia em saúde mental é fundamental. É necessário educar a população sobre a importância de cuidar da sua saúde mental, tal como cuida da sua saúde física. Isto pode ser feito através de campanhas educativas nas escolas, centros de saúde e nos media, promovendo o diálogo aberto e sem preconceitos sobre saúde mental.
Nos Açores, em particular, a descentra-lização dos serviços de saúde mental, com maior presença de psicólogos nas unidades de saúde das várias ilhas, pode ser uma estratégia eficaz para aproximar os cuidados de saúde mental das populações mais isoladas. Além disso, o uso de tecnologias, como consultas online, que já se mostraram úteis durante a pandemia, deve continuar a ser incentivado como uma forma de facilitar o acesso.
Algo que queira acrescentar ou transmitir aos leitores?
Gostaria de reforçar que a saúde mental é uma parte fundamental da nossa saúde geral e deve ser tratada com a mesma seriedade e respeito. Todos temos momentos difíceis na vida, e não há vergonha em pedir ajuda. O apoio psicológico está ao alcance de todos, e cada vez mais é importante que todos, independentemente da sua idade ou condição, saibam que existem ferramentas e profissionais prontos a ajudar. Vamos continuar a trabalhar para construir uma sociedade onde cuidar da nossa mente seja uma prioridade.
José Henrique Andrade