Correio dos Açores – Como surgiu o projecto de transformação da conteira em cabedal sustentável (Projecto Exploratório DSLAHR)?
Telmo Eleutério (Co-investigador responsável do projecto) – O meu doutoramento consistiu no estudo da transformação e análise das fibras de conteira, ou seja, estudei as fibras de conteira presentes no caule e nas folhas e procurei saber qual seriam as suas características e em que materiais ou produtos poderíamos incorporar as mesmas. A partir deste projecto de doutoramento, desenvolveu-se dois novos projectos, um Europeu, em que foram criadas embalagens de bioplástico confeccionadas com essas mesmas fibras e, um outro, em que se desenvolveu um material compósito parecido aos contraplacados, que consistiu na aglomeração das fibras com colas e resinas naturais. Neste sentido, reparei que não tínhamos trabalhado com o rizoma, e analisado o seu potencial para o desenvolvimento de novos materiais. Assim, eu e a equipa, decidimos avançar para o estudo do rizoma, procurando as várias possibilidades em que podia ser utilizado. Descobrimos, deste modo, que apresentava características interessantes para o desenvolvimento de couros vegetais e, assim, decidimos analisar várias metodologias para saber se, de facto, era viável ou não. Com a investigação sobre o desenvolvimento desse material, acabamos por ganhar o financiamento para o Projecto Exploratório DSLAHR.
Pode esta investigação ser considerada inovadora nos Açores?
Acredito que sim. Apesar dos métodos que utilizamos, para esta tecnologia, já existirem no mundo, não sendo assim uma tecnologia totalmente nova; no que toca à transformação do couro a partir da conteira, e dado que foi necessário fazer adaptações às tecnologias que já existem, pode-se dizer que é uma investigação inovadora nos Açores. Pelo mundo, existem vários exemplos de couros vegetais concebidos a partir de frutas, ou seja, cascas ou fruta podre, de resíduos agrícolas e de resíduos florestais. Existem já empresas a comercializar este tipo de produtos como é o caso da PiñatexTM, FruitLeatherTM e da VegaTexTM, isso demonstra que esses produtos têm viabilidade económica.
Em suma, no que respeita a esta tecnologia da conteira, pode e deve ser considerada inovadora na Região Autónoma dos Açores.
Será a transformação e/ou substituição de materiais de origem vegetal pelos de origem animal o futuro de uma nova indústria mais adaptada e atenta ao impacto ambiental nos Açores?
Sem dúvida alguma que é o futuro. A produção e transformação de peles de animais em couro é uma indústria muito poluente, enquanto a produção de couro vegetal é, mesmo à escala industrial, um processo mais amigo do ambiente. Sendo, também, um processo relativamente simples para passar de uma escala laboratorial para um nível industrial, ou seja, é totalmente viável elevar estes processos para uma unidade-piloto ou, até mesmo, para um nível mais elevado. Não obstante, existem vários desafios e obstáculos que é necessário ultrapassar para que este material consiga substituir o couro animal ou sintético. Apesar de o couro vegetal apresentar características muito semelhantes ao animal, este ainda peca na sua versatilidade e durabilidade. Todavia, têm a capacidade e potencial para ser uma alternativa ao couro animal em várias áreas, significando isto, que podem ajudar a reduzir a pressão que existe sobre essa indústria. De facto, sabemos que o cabedal animal é muito utilizado, logo, há determinados sectores que nunca irão deixar de o usar. Por outras palavras, o que fizemos com este Projecto Exploratório, não é uma substituição completa, mas sim, apresentar uma alternativa ao couro animal e sintético, reduzindo-se a pressão sobre o sector, resultando numa produção mais sustentável, por comparação àquela que temos hoje em dia.
Que produtos poderão resultar desta nova forma de se produzir “cabedal”? Poderão as indústrias têxtil, mobiliária e automóvel beneficiar deste tipo de técnica?
Neste momento, estamos a desenvolver o que são pequenas placas ou folhas de couro, com diversos tipos de espessura, extremamente flexíveis, que podem ser utilizadas em diversas áreas, como a indústria têxtil, talvez até alguma da mobiliária, ou até mesmo a automóvel, uma vez que nesta indústria se pode utilizar esse tipo de cabedais nos acabamentos das viaturas. Obviamente, que esse tipo de cabedais vegetais, pode degradar-se com maior rapidez, mas nada que alguns tratamentos superficiais não possam ajudar a retardar o tempo de vida expectante.
Que sectores económicos poderão beneficiar com esta descoberta? Poderá surgir no futuro o que se poderia designar como a economia da conteira?
Diria que este tipo de material, neste preciso momento, daria um bom contributo positivo para a Estratégia de Investigação e Inovação dos Açores, a RIS3, como é do conhecimento público, este programa define as áreas prioritárias de acção para a Região, sendo a Agricultura, o Mar e o Turismo três dos principais pilares desta estratégia. Neste sentido, o nosso projecto teria um impacto positivo na Agricultura e no Turismo. Na vertente turística, diria que funcionaria de forma indirecta, uma vez que teríamos que ir à fonte, isto é, às conteiras e, neste sentido, ao retirar estas espécies invasoras, estaríamos a preservar o nosso ambiente e as nossas paisagens. No que respeita à Agricultura, obviamente que é muito importante, uma vez que os agricultores, daquilo que tenho conhecimento, sempre consideraram a conteira um problema, uma vez que ocupa várias áreas dos seus terrenos.
No que concerne a algo mais directo, o que este material poderia garantir seria o desenvolvimento de uma fábrica para materiais de transformação da conteira. Assim, a partir desses couros vegetais, produziríamos produtos mais simples para o turismo, bem como criar novos produtos em colaboração com os ‘designers’ e artesãos regionais. Em última medida, podemos exportar este material, no entanto vivemos numa ilha, e teríamos, devido ao transporte destes produtos para fora da região, a pegada de carbono do material a aumentar, o que reduziria a “sustentabilidade” do material.
Em suma, posso dizer que este projecto pode ter um impacto positivo na Região, contribuindo para a estratégia de economia circular, bem como na criação de novos postos de trabalho e a fixação nos Açores de mais mão-de-obra qualificada.
Que benefícios ou vantagens advém ou poderão advir desta nova técnica?
A vantagem consistiria na criação de uma solução directa para o problema que é esta espécie invasora (as conteiras), encontrando uma aplicação para os rizomas. Em outros projectos já tínhamos encontrado aplicações para as fibras dos caules e das folhas, sendo que apenas faltava uma aplicação para os rizomas. Desta forma, a conteira ao ser controlada e removida das nossas florestas, em vez de ser apenas degradado e desenvolvido um composto orgânico, podemos encontrar uma forma de valorizar este resíduo, neste caso concreto, desenvolvendo couros vegetais de rizoma de conteira.
Outra vantagem, é a facilidade com que esta pode escalar de uma fase laboratorial a uma etapa industrial, muito facilmente.
Em que consistem as etapas de transformação dos rizomas da conteira em cabedal sustentável?
De uma forma geral, começamos com o tratamento do rizoma da conteira.
Assim, na primeira etapa dá-se o corte e limpeza do rizoma (raiz) da conteira, sendo que há que cortar o rizoma, proceder à sua limpeza, cortá-lo em pedaços de cerca de três a cinco centímetros e deixá-lo secar. O segundo passo, consiste na pulverização do rizoma, avançando-se para a atomização até que esta atinja uma granulometria de menos de 2mm de diâmetro, para assim ser mais fácil assimilar com os polímeros e criar o couro. Na terceira etapa, dá-se a preparação do rizoma com polímeros biológicos, procedendo-se à mistura com vários polímeros naturais, deixando essa mescla atingir os 150 a 180 graus celcius. Por sua vez, a quarta, passa pela preparação nos moldes de silicone, colocando-se a preparação nos moldes e, de seguida o material, deixando-se secar por geralmente 48 horas. A última etapa diz respeito ao desmolde e secagem, na qual se procede ao desmoldar do protótipo, sendo que, posteriormente, se procede à secagem, à temperatura ambiente, até que o material fique completamente enxuto.
O resultado é o protótipo final poder apresentar diferentes texturas e espessuras.
Que desafios, especialmente técnicos, encontrou na transformação dos rizomas em cabedal vegetal?
O projecto tem apenas 18 meses, por isso é designado de projecto exploratório, onde testámos uma ideia inovadora e que ainda não foi analisada. Obtivemos, neste sentido, protótipos que se revelaram, depois dos 18 meses, muito bons. No entanto, ainda existem alguns obstáculos que é necessário ultrapassar. Neste momento, precisamos de encontrar algum tipo de tratamento que garanta que o material não ganhe tanta humidade. Esse material, principalmente numa região como os Açores, ganha humidade muito depressa, sem dificuldade nenhuma.
Por exemplo, quando estive em Março em Rhode Island reparei que os materiais nunca apresentaram problemas com humidade, possivelmente, porque é um sítio mais seco. Enquanto que em São Miguel, principalmente em dias muito húmidos, o material absorve muito facilmente essa humidade. Por isso, temos de garantir que o material esteja sempre num ambiente mais desumidificado para garantir que não perde as suas propriedades. O próximo passo é conseguir um bom tratamento, que não seja poluente, algo que é possível e que, numa próxima fase, iremos analisar.
Está a desenvolver outros projectos no domínio da conteira e/ou de outros produtos que queira revelar?
Nós temos diversos tipos de materiais e protótipos que estamos a trabalhar neste momento. Desde o meu doutoramento até agora, nós desenvolvemos vários tipos de materiais. Desde materiais compósitos, onde usamos as fibras do caule e das folhas da conteira, que podem ser utilizados como utensílios descartáveis ou para a construção, até bioplásticos feitos de fibras de conteira para criar embalagens, e neste momento, desenvolvemos os couros vegetais a partir dos rizomas. Conseguimos, também, dentro desses materiais, fazer copos para iogurtes, marmitas ou lancheiras, entre outros.
Assim, existem várias possibilidades nestes materiais. De facto, ainda estamos a desenvolver outras, agora entrando mais na área da nanotecnologia, com a conteira, pois precisamos de encontrar mais produtos e materiais com um valor acrescentado, ou seja, em vez de um 1 quilo valer 10 euros, valha 100 euros. É algo que estamos a ver agora, neste novo ramo nanotecnologia, em que vamos usar a conteira neste sentido.
De resto, podemos desenvolver muitas coisas. Os nossos protótipos vão desde o sector alimentar até à construção civil.
Trabalhamos, também, ouvindo as ideias das pessoas que encontramos em feiras e apresentações, porque são “fora da caixa”, e considerando que muitas vezes a nossa ideia já está tão formatada para um pensamento ou forma de fazer as coisas, muitas das vezes, são essas conversas que nos ajudam a ver as coisas de uma forma diferente. Adoro ouvir as opiniões das pessoas, porque aprendo muito com elas, e às vezes encontro soluções muito interessantes devido a isso. Por isso, se alguém tiver mais alguma ideia ou ‘feedback’, estamos aqui para ouvir.
Acima referiu que tem vários projectos em carteira. Quer falar-nos um pouco mais deles?
Agora também trabalhamos com outros resíduos como os de café, beterraba, algas e crustáceos, conchas, entre outros. Já trabalhamos com imensos resíduos orgânicos e temos protótipos de materiais feitos com os mesmos. Relativamente à conteira, no primeiro projecto que conseguimos, depois do meu doutoramento, estamos a desenvolver um projecto piloto nas Flores, mas ainda estamos à espera de alguns financiamentos da parte do Governo para avançar.
A ilha das Flores tem muita conteira, e com este projecto pretendemos criar postos de trabalho, sendo uns de mão-de-obra qualificada, o que seria muito importante para a afixação de jovens qualificados da ilha. Veremos o que o futuro nos reserva em relação a esse projecto-piloto, no entanto, a ambição é continuar em frente para toda a região, mas por agora, vamos manter-nos à espera.
A área da ciência dos materiais, neste caso, materiais sustentáveis, é uma área que está a crescer na Universidade dos Açores. Por agora, somos uma equipa pequena, mas a equipa será para expandir dentro em breve. Se tudo correr bem, para o ano haverá mais novidades.
Neuza Almeida
