O Dia Mundial da Alimentação foi instituído em 1979 na 20.ª Conferência da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, com o objectivo de alertar para a necessidade da produção alimentar e reforçar a necessidade de parcerias a vários níveis e alertar para a problemática da fome, pobreza e desnutrição no mundo. Para assinalar este dia, falamos com Duarte Vidinha, membro da Comissão de Jovens Nutricionistas da Ordem dos Nutricionistas, natural da Água d’Alto, do concelho da Vila Franca do Campo, que nos fala da importância de pensar na alimentação nos 365 dias do ano, a necessidade de alimentação de forma integrada, faseada e adaptada a cada faixa etária no plano curricular e pede uma reflexão acerca da importância dos Nutricionistas nos Cuidados de Saúde Primários e nas Autarquias para melhorar “ainda mais” o panorama acerca da alimentação e nutrição a nível regional.
Correio dos Açores – Qual é a importância do Dia Mundial da Alimentação?
Duarte Vidinha (Nutricionista C.P. 4452N) – Esta é a pergunta cliché. A alimentação é um dos principais determinantes da saúde das populações, constituindo um direito fundamental de todos os indivíduos. No entanto, é apenas comemorada no dia 16 de Outubro. Nos restantes 364 dias do ano a maioria da população tenta não pensar muito no assunto. Efectivamente, a adopção de hábitos alimentares saudáveis, aliada a outros estilos de vida saudável, é essencial para a saúde e bem-estar a curto e longo prazo, prevenindo o aparecimento de doenças crónicas na vida adulta.
Os açorianos fazem escolhas saudáveis ao nível da alimentação?
Segundo os dados do Inquérito Alimentar Nacional e de Actividade Física 2015-2016, cerca de 70% dos açorianos não consumia o valor mínimo de hortofrutícolas recomendado pela Organização Mundial da Saúde (400g/dia). Adicionalmente, 10% da população consumia mais de 50g de carne vermelha e charcutaria, estando este consumo acrescido associado ao aumento de risco de cancro do cólon. Em relação às bebidas, os Açores foram a região nacional com maior consumo de refrigerantes (131g/dia) e menor ingestão de água (0,6L/dia). Saliento, em particular, a utilização de temperos regionais, como a pimenta da terra, extremamente rica em sal e utilizada amplamente na alimentação diária.
Sabendo que a Dieta Mediterrânica, um dos padrões alimentares mais saudáveis e sustentáveis, privilegiando o consumo de alimentos de origem vegetal (fruta, hortícolas, cereais integrais, leguminosas, azeite, oleaginosas e sementes), o consumo frequente de pescado e o consumo moderado de lacticínios, de carnes magras e de ovos; e o consumo baixo e pouco frequente de carnes vermelhas e carnes processadas; os Açores têm um nível de adesão muito fraco. Considero que, embora muito esteja a ser feito, ainda temos um longo caminho pela frente em matéria de alimentação regional.
Como podemos garantir uma alimentação sustentável no nosso dia-a-dia?
Actualmente, não nos devemos concentrar apenas no crescimento da produção de alimentos, sendo fulcral a produção de alimentos saudáveis que preserve o meio ambiente. Para garantir esta salvaguarda, podem ser adoptadas medidas em três lugares basilares: casa, escola e assembleia regional.
Estima-se que os portugueses, no seu domicílio, consomem mais alimentos de origem animal do que de origem vegetal. Desta forma, este é o local onde se deve iniciar um aumento do consumo de alimentos de origem vegetal, como a fruta e hortícolas e redução de consumo de alimentos de origem animal (principalmente, carnes vermelhas).
A escola por sua vez constitui-se como um ambiente fundamental para o desenvolvimento e implementação de medidas que visem a redução do desperdício alimentar. Estima-se que até um terço dos alimentos são desperdiçados em meio escolar, sobretudo aqueles que são essenciais a um crescimento saudável como os hortícolas, pescado e fruta. Portanto, as refeições escolares representam uma oportunidade para combater o desperdício alimentar e um desafio para promover a sustentabilidade do meio ambiente. São necessários mais recursos humanos, como Nutricionistas e assistentes operacionais nos refeitórios, que possibilitem uma redução efectiva do desperdício alimentar.
A Assembleia Regional dos Açores é, de todos os locais citados, o mais decisivo, pois é este órgão que tem a capacidade de decidir e efectivar medidas que incluam o reforço de recursos materiais e humanos nos serviços públicos como as escolas, as autarquias e os estabelecimentos de saúde. Igualmente, os decisores políticos devem considerar os desafios que os produtores enfrentam, incluindo o aquecimento global, padrões climáticos erráticos, aumento da desertificação e escassez de água, que precisam ser urgentemente abordados.
Quantas pessoas sofrem de doenças cardiovasculares nos Açores?
Os dados de que dispomos indicam-nos que o risco cardiovascular nos Açores é de 14,4%, o mais elevado a nível nacional. Embora não possamos mudar factores de risco como o sexo e a idade, temos um conjunto de factores que podem e devem ser modificados com o propósito de reduzir este risco. Entre eles encontra-se a alimentação, obesidade (sobretudo abdominal), sedentarismo, tabagismo, consumo de álcool, hipertensão arterial, diabetes mellitus e dislipidemia.
Qual é a relação entre a alimentação e a prevenção de doenças crónicas, como a diabetes e as doenças cardiovasculares?
A importância da alimentação e nutrição na prevenção e tratamento das doenças crónicas não transmissíveis como são a diabetes mellitus e a hipertensão arterial tem vindo a ser crescente e constitui um dos grandes desafios deste século. Em 2019, os hábitos alimentares inadequados dos portugueses foram um dos cinco factores de risco que mais contribuíram para a perda de anos de vida saudável e mortalidade. Nos Açores, de forma generalista, cerca de 17% da população tem diabetes e 36% apresenta hipertensão arterial.
A adopção de hábitos alimentares saudáveis permite a prevenção destas patologias, garantindo uma melhor qualidade de vida, com menor probabilidade de internamentos e gastos em saúde, o que em última instância, permite uma redução dos gastos em saúde.
Como é que a educação sobre a alimentação pode impactar a saúde pública nos Açores?
A escola tem sido considerada um local privilegiado para a aquisição de hábitos alimentares saudáveis, onde as crianças passam parte significativa do seu dia e consomem pelo menos uma refeição diária.
A educação alimentar é um dos principais eixos que podem levar ao desenvolvimento de hábitos alimentares saudáveis e de conhecimentos relacionados com a alimentação e nutrição através da capacitação das crianças e de toda a comunidade escolar (pais, professores, funcionários). Pode ser implementado em qualquer período do dia escolar e em diversos locais da escola (sala de aula, refeitório, “catering”, horta escolar). A evidência sustenta que a implementação de programas de educação alimentar é efectiva e, quanto mais jovens são os alunos, maior é a influência a curto e longo prazo no conhecimento adquirido e nas suas atitudes, o que pode levar a mudanças de comportamento.
Se hoje tivermos uma equipa multidisciplinar de profissionais de saúde e educação que permita capacitar a população estudantil a adoptar uma alimentação saudável, tenho a certeza que serão estes indivíduos a pagar este investimento através da redução de patologias como são a obesidade, diabetes mellitus, dislipidemia e hipertensão arterial no futuro.
Qual a importância de incluir a educação alimentar no currículo escolar?
Se hoje perguntar aos leitores que nos digam o que se lembram quando relacionamos alimentação e escola na mesma frase, grande parte vai responder que se lembra de sessões pontuais de educação alimentar ou da comemoração de dias alusivos como o Dia Mundial da Alimentação. E em que é que a ciência nos mostra que estas acções mudam comportamentos e promovem o bem-estar geral? Em nada.
É urgente a necessidade de inclusão da alimentação de forma integrada, faseada e adaptada a cada faixa etária no plano curricular. É claro que sabemos que não irá ser criada uma disciplina sobre a temática, mas na impossibilidade, é fulcral que algumas medidas sejam adoptadas. Assim, a integração de aulas teóricas e práticas em diversas disciplinas obrigatórias, com periodicidade mínima, aliada a outras intervenções escolares nas cafetarias e refeitórios, podem ser o início deste caminho que é a melhoria de conhecimentos e alteração de comportamentos alimentares.
Como é que a desigualdade económica afecta o acesso a alimentos saudáveis e nutritivos?
A prevalência da insegurança alimentar atinge mais famílias na Região Autónoma dos Açores do que nas outras regiões (13,4%). A resposta à célebre frase “os alimentos menos saudáveis são mais acessíveis economicamente que os saudáveis” é “depende”, como quase tudo em alimentação. Portanto, creio que as formas de reduzir as desigualdades no acesso a alimentos saudáveis e nutritivos está na capacitação individual para hábitos alimentares saudáveis e baratos; capacitação de instituições que fornecem alimentos e/ou refeições através dos seus colaboradores e famílias receptoras para a disponibilização de uma oferta nutricionalmente mais adequada; criar grupos de trabalho que possam monitorizar os níveis de insegurança alimentar na região e criação de medidas locais para mitigar esta problemática.
Qual o impacto das cadeias “fast food” na cultura alimentar nos Açores?
É inevitável a existência destas cadeias. Por isso temos de aprender a viver com elas. Estamos muito longe de mudar a localização e o número de cadeias “fast food” ou mesmo negócios locais de comida rápida. Só vamos erradicar o problema da “fast food” e do desenvolvimento de hábitos alimentares inadequados, obesidade e outras doenças crónicas não transmissíveis, quando consciencializarmos a população para uma alimentação saudável. Ou seja, ser em casa e na escola que se aprende a comer bem, com a existência pontual de “fast food” ou alimentos nutricionalmente inadequados, sem que isso seja um problema de falta de controlo alimentar.
Pretende acrescentar alguma informação no âmbito da entrevista?
Neste dia temático, reitero a importância extrema da actuação dos Nutricionistas, enquanto elementos-chave no acesso da população a cuidados especializados de alimentação. E nesse sentido deixo a reflexão sobre duas temáticas particularmente importantes que podem melhorar, ainda mais, o panorama acerca da alimentação e nutrição a nível regional:
Nutricionistas nos Cuidados de Saúde Primários: De facto, os Açores são a região do país que detém mais Nutricionistas possibilitando o acesso a cuidados especializados de nutrição clínica em ambulatório nos Cuidados de Saúde Primários. Contudo, ainda existe margem para reforço destes profissionais, por forma a aumentar o tempo disponibilizado à nutrição comunitária e saúde pública. Deve assim ser garantido o cumprimento do rácio de um nutricionista por cada 12.000 utentes, sem claro, nunca esquecer a garantia de recursos materiais que permitem a melhor prática destes profissionais.
Nutricionistas nas Autarquias: As autarquias também devem ser dotadas de Nutricionistas para que, num futuro próximo, estes possam trabalhar em sinergia com os colegas dos estabelecimentos de saúde, principalmente a nível escolar. Só desta forma é que podemos aumentar as probabilidades de consciencializar e promover a alteração de hábitos alimentares saudáveis ao longo do ciclo de vida, dos mais novos aos mais velhos. Actualmente, são escassas as autarquias que na Região Autónoma dos Açores têm um Nutricionista nos seus quadros.
Nas últimas décadas os Açores têm dado passos deveras importantes e pioneiros na área das Ciências da Nutrição. Contudo, este conjunto de medidas tem se mostrado ainda insuficiente no combate aos hábitos alimentares inadequados que contribuem para elevadas taxas de desinformação alimentar, obesidade, diabetes mellitus e hipertensão arterial na região. Acredito que este combate tem de ser analisado, revisto e reorganizado entre parceiros que envolvam a saúde, educação, economia e solidariedade e segurança social.
Filipe Torres
