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“Natália era uma libertária no sentido de entender que o Estado não pode interferir na vida pessoal dos cidadãos”

Correio dos Açores – Do que se trata esta obra “O Essencial sobre Natália Correia” e qual é o seu propósito?
Luiz Fagundes Duarte (linguista, professor e escritor) – Este livro faz parte de uma colecção da Imprensa Nacional, que tem uma vasta colecção sobre o essencial de uma personalidade ou de uma instituição. É uma colecção para o grande público, de pequena dimensão, tem um número de páginas limitado. Tem por objectivo levar para o grande público o conhecimento sobre personalidades e instituições que se consideram relevantes para a vida nacional e internacional.
Porque é que este livro aparece agora? Aparece na sequência e no contexto do centenário de Natália Correia, em 2023. No final do ano passado, a Imprensa Nacional convidou-me para escrever o volume dedicado a Natália Correia e assim o fiz. Portanto, não foi iniciativa minha, foi iniciativa da Imprensa Nacional, esta obra foi elaborada com muito gosto e, sobretudo, procurei passar às pessoas uma imagem daquilo que realmente ocorreu e o que considero pessoalmente como matéria essencial da vida e obra de Natália de Correia.
Não se trata somente da escritora, da “diferenciadora” a nível político e social, da jornalista, mas sim tudo isso, ou seja, a personalidade que ela criou, que se manifestava quando estava em perigo a liberdade de expressão e a liberdade individual dos cidadãos, como também sempre que se deparava com situações de injustiça. Perante a situação da mulher, no que diz respeito aos direitos e ao papel da mesma na sociedade, há mais de 80 anos que Natália Correia levantava questões em relação à mulher ser digna e apelava para a emancipação da mulher, por exemplo, através da mulher garantir a sua própria fonte de rendimento para não estar sujeita à dependência do seu cônjuge.
Defendeu várias causas que ainda hoje são objecto de discussão, mas sempre com o objectivo de levantar a voz a aqueles que não tinham voz, de manifestar-se sempre que existiam ameaças sobre liberdade dos cidadãos, e, portanto, uma mulher que utilizava a poesia, a ficção, o teatro para manifestar as suas ideias. É preciso ter em conta o impacto na vida do país que, durante o Estado Novo, a PIDE e a censura proibiram sete livros dela, chegando ir a tribunal como ré e até a ser condenada, exactamente por definir a liberdade de expressão. Todavia, também foi censurada a seguir ao 25 de Abril, no período revolucionário, quando ela achou que a democracia pela qual tinha lutado estava em risco de ser dominada pelos soviéticos. Já em plena democracia, também teve uma obra censurada, mais propriamente uma peça de teatro que tinha sido encomendada para comemorar o quarto centenário da morte de Camões, acabando por não ser representada.
É uma mulher que está presente em todo o lado, que ainda tem voz, lutou e arriscou pelos seus ideais, e, para além disto tudo, foi uma escritora de alta qualidade, sobretudo em poesia.

A sinopse da sua obra revela que Natália Correia morreu “triste e desiludida”.
Consegue fundamentar um pouco sobre essa tristeza e desilusão nos seus últimos anos de vida?
Essa desilusão tinha várias origens. Em primeiro lugar, as grandes batalhas pelo qual tinha lutado, pela definição e defesa da identidade nacional portuguesa no contexto das nações, o que a fez ser uma grande crítica da integração de Portugal na CEE – actual União Europeia. Na integração do país no Espaço Schengen, era da opinião que Portugal ia-se transformar num país subalterno e irrelevante, pois passaria a ficar dependente daquilo que fosse decidido no contexto internacional. Nesse aspecto, ela estava contra-corrente relativamente ao que se passava.
Ela viu que por razões económicas, da força do capitalismo, os escritores e aqueles que levantavam a voz não tinham espaço para se manifestarem. Considerava que existiam ataques à liberdade de expressão e à liberdade do indivíduo em variadas situações que iam contra os valores daqueles que tinham arriscado tudo pela luta da democracia. Ela entendia que o caminho que Portugal tinha levado depois do 25 de Abril e em plena democracia não estava a produzir os efeitos que seriam de esperar.
Esta personalidade sempre foi muito conhecida, basta dizer este nome “Natália” e toda a gente sabe quem é ela, porém os seus livros eram pouco vendidos, podemos dizer que não era propriamente uma escritora de grande público. Esse facto também a desiludiu um pouco, conduzindo-a a um ponto fundamental que era a educação: um país em que grande parte da população não é educada na perspectiva escolarizada, não lê, não pensa, não escuta as coisas, é um país que não tem futuro. Com tudo isso ela sentiu-se desiludida e se nós virmos ainda hoje em dia – então nos Açores é terrível – a taxa de abandono escolar e a taxa de iliteracia continuam a ser enormes. Estas condições sociais estão distantes do que se passa nos países da Europa em geral, sobretudo da Europa Central e do Norte da Europa. A população portuguesa nunca conseguiu sair daquele estado que foi deixado pelo Estado Novo e pela ditadura, em que as pessoas são pouco educadas, pouco escolarizadas, não pensam nas coisas, não discutem, não levantam a voz, e é isso que interessa ao poder.
Natália era uma libertária no sentido de entender que o Estado não pode interferir na vida pessoal dos cidadãos. Tudo isso faz dela uma mulher amarga e extremamente consciente que tudo aquilo foi feito se calhar não valera a pena.

Ao elaborar este estudo e investigação sobre a personalidade de Natália Correia, que destaques é que faz?
Bom, no caso da Natália Correia saiu muito recentemente uma excelente biografia, escrita pela Filipa Martins, que contém muita informação bem documentada sobre incidentes da vida dela, de situações mais ou menos complicadas. Quem quiser saber muito da sua vida pessoal enquanto mulher de intervenção, enquanto escritora, recomendo esta obra.
Não era este o meu objectivo. Eu quis captar aquilo que eu acho que é o potencial da Natália, e, hoje em dia, quando se fala em Natália Correia normalmente pensa-se na escritora, mas ela foi muito mais do que isso. A dimensão dela enquanto escritora é de qualidade, contudo a sua grande dimensão foi sempre de carácter social. Mesmo a poesia dela não era aquele tipo de poesia lírica convencional: ela levanta sempre questões relacionadas com os direitos, com as liberdades e com os combates a ditaduras.
Eu conheci-a pessoalmente, tive a oportunidade de estar com elas várias vezes e, de facto, aquilo que salta mais à vista é aquela sua capacidade de manifestar-se através da palavra escrita. Podia-se discordar muitas vezes com o seu pensamento, todavia era aquilo que ela pensava. Essa força e essa coragem de uma pessoa praticamente sozinha que desafiou directamente Salazar, Marcelo Caetano, como também desafiou o general Costa Gomes, o Conselho da Revolução e até o próprio PSD – partido do qual ela participava e que esteve na base da censura a uma peça de teatro sua. Essa dimensão de intervenção social, de uma personalidade que se impõe contra o sistema, foi este pormenor que me saltou à vista de uma maneira muito evidente para a escrita desta obra.
José Henrique Andrade

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