A ThothX Meridian, uma startup açoriana especializada em tecnologia espacial, foi a única empresa portuguesa selecionada para o programa DIANA da NATO, destinado ao desenvolvimento de soluções inovadoras para questões de segurança e defesa dos países-membros. A ThothX apresentou a tecnologia Earthfence, um sistema de radar que monitora satélites e detritos espaciais 24 horas por dia, 7 dias por semana, independentemente das condições meteorológicas. Esta tecnologia será instalada em São Miguel, em parceria com a Altice Portugal (MEO), que utiliza a antiga antena da Marconi na Fajã de Cima. Como explicou Francisco Wallenstein, Diretor-Geral da ThothX Meridian, “os Açores foram escolhidos por serem a localização ideal, no meio do Atlântico, para preencher a lacuna de cobertura entre as antenas do Canadá e da Austrália. Além disso, há uma infra-estrutura disponível, em condições aceitáveis para recuperação e adaptação para implementar a tecnologia Earthfence.”
Correio dos Açores – Como surgiu a ThothX Meridian e a tecnologia Earthfence? Apresente-nos a equipa responsável por este projecto.
Francisco Wallenstein (Diretor-Geral da ThothX Meridian) – A tecnologia Earthfence foi desenvolvida no Canadá por Ben Quine, CEO/CTO e um dos fundadores da ThothX Meridian, na empresa Thoth Technology Inc. a partir do Algonquin Radio Observatory, recuperando e adaptando uma antena de 46m de diâmetro para esse efeito. Visto que essa antena tem capacidade de observar o espaço apenas sobre o continente americano e parte do Atlântico, havia a necessidade de encontrar outras antenas de grandes dimensões espalhadas pelo Mundo, onde a tecnologia pudesse ser instalada, de forma a permitir a cobertura global da cintura de satélites geoestacionários e geossíncronos (habitualmente referida como cintura GEO) com esta tecnologia.
O Ben já tinha uma antena em mira na Austrália para cobertura de GEO sobre o Médio Oriente e Ásia, e era preciso arranjar uma a meio caminho para cobrir o Atlântico e a Europa.
Fruto do acaso e das funções que desempenhava na altura – concretamente na gestão de um projecto de geodesia espacial em Santa Maria – atravessei-me no caminho do Ben nesta sua senda de encontrar uma antena, dei-lhe conhecimento de uma possibilidade em São Miguel – a antiga antena da Marconi na Fajã de Cima – e estabeleci a ligação com os actuais proprietários – a Altice Portugal (MEO). Foi assim que nasceu o projecto ThothX Meridian, que só se veio a concretizar uns dois anos mais tarde, no final de 2023. Eu costumo chamar a isto alinhamento cósmico.
A equipa, até à data, tem sido constituída pelo Ben Quine e por mim, com uma grande ajuda do João Salmim Ferreira, também co-fundador.
Pode explicar aos nossos leitores o que distingue a Earthfence de outras tecnologias de monitorização espacial?
De uma forma muito ligeira, há essencialmente 3 tecnologias de monitorização espacial – recepção passiva de radiofrequências, óptica e radar.
A primeira, como o próprio nome indica, é uma tecnologia passiva que depende da capacidade dos sensores registarem radiofrequências nas bandas emitidas pelos objectos observados, ou por estes reflectidos quando emitidas por fontes de radiação externas, consequentemente com sérias limitações de capacidade de reconhecimento de objectos com interesse de monitorização, nomeadamente satélites furtivos.
A segunda – óptica – apresenta uma capacidade de obtenção de imagens de alta resolução e em vários comprimentos de onda, o que é vantajoso para a caracterização de diferentes tipos de objectos espaciais e de reduzidas dimensões. É uma tecnologia não intrusiva, o que minimiza o risco de interferência com outros activos espaciais e garante uma observação furtiva. No entanto, encontra-se limitada à observação durante o período nocturno, quando os objectos estão iluminados num céu escuro, e apenas com condições atmosféricas favoráveis.
A terceira – radar – é uma tecnologia em que há emissão activa de radiofrequências num cumprimento de onda conhecido e registo do retorno das radiações reflectidas nos objectos observados. Dada a natureza das radiofrequências usadas em radar, é possível observar 24h por dia e sem qualquer interferência das condições atmosféricas.
A tecnologia Earthfence cai nesta última categoria e distingue-se das restantes, não só pelas características genéricas de radar, mas também por algumas das características técnicas próprias, que colmatam alguns dos aspectos menos positivos face às restantes tecnologias, em especial a óptica.
Quais são as principais aplicações da Earthfence, tanto a nível comercial como militar?
A aplicação da tecnologia é apenas uma – a monitorização de satélites, ou outros objectos, em órbitas geoestacionárias e/ou geossíncronas (GEO). É neste regime orbital que se encontram os satélites maiores, mais caros e estrategicamente mais relevantes – para comunicações seguras, previsão meteorológica, difusão de sinal de televisão, etc.
O interesse comercial ou militar da aplicação da tecnologia advém da propriedade destes satélites – no caso das órbitas GEO, habitualmente são grandes operadores comerciais de satélites, ou entidades militares ou governamentais relacionadas com a Defesa.
Como foi o processo de selecção para o Programa de Aceleração DIANA da NATO e o que significa para a ThothX Meridian fazer parte deste grupo?
O processo começou com a convocatória DIANA Challenge 2024 onde foram apresentados cinco desafios e três temas transversais considerados estratégicos pela NATO.
Para nós foi claro o enquadramento do nosso projecto no cruzamento do desafio Sensing and Surveillance com a área transversal Space.
O processo de selecção que se seguiu passou pela avaliação de um primeiro formulário de apenas uma página com o sumário da solução apresentada, seguindo-se a avaliação de um segundo formulário mais desenvolvido, de 4 páginas. A terceira e última fase de selecção consistiu numa apresentação e discussão da solução perante um painel de peritos.
Tendo noção de que foram avaliadas mais de 2600 candidaturas e de que fazemos parte do lote de 75 empresas (<3%) seleccionadas para integrar o programa, ainda por cima a única empresa portuguesa, é motivo de grande orgulho – não só pelo reconhecimento do interesse e importância da tecnologia por parte de uma entidade como a NATO, mas também pelo sucesso da forma como apresentámos o nosso projecto.
De que forma a participação no programa da NATO vai beneficiar o desenvolvimento da Earthfence?
A participação neste programa permitir-nos-á levar avante algum desenvolvimento da tecnologia Earthfence e outras relacionadas, com a ajuda de especialistas e mentores e com recurso a infra-estruturas e equipamentos que de outra forma não nos estariam acessíveis. Para além disto, estaremos em contacto com muitas outras empresas com quem poderemos discutir os desafios e as formas de os abordar e, quem sabe, estabelecer parcerias mutuamente benéficas. Sou de opinião de que a colaboração é essencial para alcançar o extraordinário.
Por fim, e não menos importante, teremos acesso a mentoria para desenvolvimento do negócio, assim como a potenciais investidores e clientes, que poderão revelar-se críticos para o sucesso deste projecto em Portugal.
Tencionamos tirar o máximo partido desta oportunidade.
Por que razão os Açores foram escolhidos para implementar a tecnologia Earthfence e como será concretizada a parceria com a MEO?
Os Açores foram escolhidos por serem a localização ideal, no meio do Atlântico, para a cobertura em falta entre as antenas do Canadá e da Austrália e pelo facto de cá haver uma infra-estrutura disponível, em condições aceitáveis para recuperação e passível de conversão para implementação da tecnologia Earthfence.
A Altice Portugal (MEO) acolheu de imediato o projecto com entusiasmo, dada a perspectiva de reabilitar uma infra-estrutura, icónica na ilha de São Miguel, para a qual já não tinha perspectivas de utilização. Foi na altura assinado um memorando de entendimento entre ambas as partes com o compromisso de juntos recuperarem aquela estação, actualmente em vias de contratualização formal.
Quais são os planos futuros da ThothX Meridian, em especial no que toca a a expandir a utilização da Earthfence e alcançar uma cobertura global nas órbitas GEO?
A ThothX Meridian, juntamente com outras empresas do grupo, faz parte de um projecto de cobertura global das órbitas GEO e tem o seu papel na cobertura sobre o Atlântico e a Europa. Não prevemos expandir para além disto.
No entanto, pelo facto da nossa cobertura se sobrepor às das antenas do Canadá e da Austrália, pensamos ser possível assumir o desenvolvimento de tecnologias, com base no Earthfence, relevantes para serviços que requeiram maior detalhe dos activos observados, como por exemplo as actividades de serviços em órbita.
Como avalia o papel dos Açores no desenvolvimento da exploração espacial?
Os Açores, pela sua localização e características geopolíticas, são muito atractivos para muitos projectos no sector espacial, que está em franco desenvolvimento em diversas vertentes.
Esta foi a base do nosso projecto, como de alguns outros em curso, por exemplo em Santa Maria.
No entanto, as características da RAA, por si só, não fazem as coisas acontecerem. A concretização de projectos e o desenvolvimento da actividade neste sector – seja no acesso ao espaço e/ou retorno, seja nas aplicações da observação do espaço, seja nas aplicações de observação da Terra a partir do espaço – como em qualquer outro sector, depende das condições que a Região oferece para atrair e reter pessoas com talentos diversos e promover a capacidade empreendedora.
Importa que estes projectos, sejam em que área for, estejam alinhados com os interesses estratégicos da Região e que se traduzam em benefícios concretos para a economia regional.
Daniela Canha
