Com pouco mais de duzentos metros, a praia/calhau da baía de Santa Cruz (na cidade de Lagoa) vive (há muito) uma (arreliante) crise identitária: quer ser praia mas é (quase sempre) calhau. E enfrenta um dilema: para ser praia precisa de ter areia e para ter areia precisa de intervir na orla marítima. Se intervir (sem critério) pode ganhar uma praia mas perder uma onda. E para ser praia de pleno direito, tem de resolver outro dilema: sem controlar a qualidade das águas que chegam à baía, no que toca a elementos patogénicos, não haverá bandeira azul (galardão de praia de excelência). Não sendo (ainda) o caso, é (só) uma zona balnear com nadador salvador (durante a época balnear). E ainda há o paradoxo de (por um lado) não lhe ter sido atribuída corredores para a prática e treino de surfing, certamente por ser de difícil acesso, e no entanto, é um dos locais sugeridos num mapa editado (e distribuído) pela Ribeira Grande Capital do Surf. Não há (além do mais) na Lagoa uma comunidade de surf (tal como a dos Mosteiros ou a de Vila Franca) que dê a cara ‘pela sua onda.’ Poucos ou muitos, não faço ideia, os seus surfistas (naturais ou residentes) diluem-se na ‘Tribo da Ilha’ que surfa as ondas de Santa Bárbara, Monte Verde e Milícias.1
A pequena baía nasce na Pontinha e acaba no biscoito da poça da Ralhoa. Fica dentro da grande baía que tem o seu começo na ponta da Galera (a nascente) e termina (a poente) na ponta Delgada. Marca o início Sul/Nascente litoral da zona (geologicamente falando) dos Piquinhos.2 Encosta à escarpa rochosa (que integra o complexo vulcânico da Lagoa do Fogo) onde se ergue a igreja de Santa Cruz.3 O que foi a baía no ‘antigamente’ de Gaspar Frutuoso (segundo o próprio)? ‘(…) A vila da Alagoa, chamada assim por uma que teve de água nadível, defronte da porta da igreja principal [Santa Cruz] acima de um recife e porto onde podiam entrar batéis; na qual antigamente se tomou já muito pescado, por entrar às vezes o mar nela, e bebia o gado e nadavam por passatempo algumas pessoas (…).’4 E em que se transformou o local no presente de Frutuoso e porquê? ‘Agora, com terra e polme (que no tempo das enchentes tem corrido) está entupida [a lagoa] e é terra que dá pastel e outras novidades e rende para o concelho (…).’ A baía ganhou um novo espaço de cultivo, que se manteve até há dois, três anos, mas o porto: ‘(o) porto da Alagoa (que está defronte da porta da igreja Matriz [Santa Cruz] e de que já se não serve a vila) [foi mudado para os Carneiros].’5
Os anos de 1522 e de 1523 marcaram (fundo) a História da Lagoa. Em 1522, a 11 do mês de Abril, o Lugar sai de Vila Franca e passa a Vila. A 22 de Outubro Vila Franca é arrasada. O núcleo principal da nova Vila estendia-se pelo alto da falésia sobranceira à baía. A vila estabeleceu aí a câmara e a cadeia. A curta distância, já se encontrava a igreja de Santa Cruz.6 Próximo da Câmara, da igreja e da fonte de água ‘o Capitão Rui Gonçalves, segundo do nome, ali edificou depois do Dilúvio de Vila Franca,’ o seu paço (principal).7 Em 1523, a 15 de Abril, Domingo de Páscoa, a baía serviu de palco a um jogo de canas que envolveu a Ilha (Nordeste ficou de fora). A nova Vila completara há dias um ano de vida. A destruição de Vila Franca dera-se (uns) seis meses antes. Rui Gonçalves da Câmara, o capitão do Donatário, ‘para ‘consolar seu povo,’ mandou (então) ‘fazer uma grande festa de jogo de canas (…) armando o desafio entre as duas vilas, da Ponta Delgada e da Lagoa, contra os da Ribeira Grande e Vila Franca e Água do Pau.’ Repare-se no local: ‘(…) ao longo do mar, em um campo que fica em baixo na praia, e a gente de toda a ilha, com o dito Capitão, estavam em cima, vendo este notável folgar (…).’8
Um salto no tempo. Como recordam hoje a baía da sua adolescência e infância? Perguntei-o a dois lagoenses.9 Do alto do adro da igreja, o primeiro identifica-me ‘a Poça da Ralhoa – ao fundo – do lado da Relvinha e as duas Poças aqui. Aqui em baixo encostado à muralha do adro da igreja. A grande, para quem já soubesse nadar e a pequena para quem ainda não soubesse.’ E precisou: ‘os do lado da Relvinha iam à poça da Ralhoa e os do lado da igreja de Santa Cruz iam às duas poças daqui.’10 Voltando a olhar para baixo. Havia (continua) ‘os quintais das casas da rua da Cadeia. Pequenos. De 1/4 a 2/4 de terra divididos por canas. Davam de tudo. Davam boa batata. Protegidos do mar pelas canas.’ ‘Só há dois a três anos acabaram com eles.’ E Areia na Praia? ‘Quando o tempo está Norte. Onda leve. Rebenta na zona da areia. Antes da laje de pedra do fundo. Traz areia. Conheci muitos anos isso cheio de areia de uma ponta à outra. Joguei muito futebol no areal.’ E Surf (vês por aqui)? ‘Em finais de Agosto e princípios de Setembro. Com as marés de Agosto. Vêm aqui alguns. Poucos. Gente de fora.’11 Quanto ao segundo (testemunho). Como era isto aqui em baixo (estávamos na Relvinha, junto à sua casa)? ‘Um curral de porcos e de vacas. Vês onde está aquela parte de cimento? Onde está a casa amarela, enterravam as porcarias. E naquelas rochas [situadas a uns 50 metros a Nascente da Casa Amarela] matavam os animais.’ E areia na praia: ‘Há 65 anos a praia ia de um lado ao outro. Não tem areia desde que vieram aqui barcos tirar areia.’12
Viro-me (agora) para os surfistas. Paulo [Ramos Melo], como é (para ti) a onda de Santa Cruz? ‘Onda de fundo de pedra (calhau rolado) Mesmo em frente à igreja (…). Ondulação do Sul. Com algum swell. Para poder rebentar. Mas – não sei porquê – quando lá ia – e já não lá vou há algum tempo – notei que a onda foi perdendo consistência. Porquê? Não sei. Talvez por mudança dos fundos.’ O que te levava a ir lá? ‘Quando havia crowd nas Milícias. Ali ficava à vontade. Quando o Sul estava maior, sabia que estava bom em Santa Cruz.’13 Luís Melo: ‘Onda de Santa Cruz? Alternativa às Milícias. Com swell Sul grande. No Verão, às vezes funciona. Não é um sítio de afluência. Aquela onda sempre foi (mais ao menos) aquilo que se vê. Não vejo que houvesse a interferência de obras. Em tempos, pensou-se em construir uma marina. Mas desistiu-se. É uma onda engraçada. Mas não passa disso.’14 Um homem da Lagoa, Manuel Varão: ‘Tem uma (onda) direita e uma esquerda. A melhor é a esquerda. Isso quando entrava areia. Às vezes aguentava um, dois anos. Mas depois que houve uma tempestade, nunca mais houve areia. Falando com um físico quântico a propósito da areia que aparecia e desaparecia, disse que como Ponta Delgada está mais fora, como fica mais a Sul, o depósito de areia é feito mais no Livramento, Milícias. Para reter a areia, chegou-se a falar com a Câmara para construir um pontão, como os que se constroem em alguns pontos da costa portuguesa. Ou fazer recifes artificiais.’15 António Benjamim (residente na Lagoa, vai lá de vez quando surfar com os filho e amigos): ‘Não é muito consistente. Mas quando funciona é muito boa. De difícil acesso. É calhau. O pessoal mais antigo não se queixa. Os mais novos, receiam. É preciso experiência para entrar [e sair]. Tem de se esperar pela altura certa para entrar. Funciona com ondulação do Sul. Oeste. Ondulação Grande. De certa forma pode ser considerada parecida às Milícias. Porém, por causa da arriba, é mais protegida. Quando o vento está Norte, por isso, a onda não fica tão partida. Fica mais lisa. Considero, no geral, com as condições ideias, pode ser uma onda muito boa.’ 16
Em 2009, Manuel Varão fundou o núcleo de Surf do Clube Náutico da Lagoa.17 Varão é um dos incontornáveis do surf da Lagoa. Em 2003, com vinte e três anos de idade, aprendeu a surfar com José Seabra: ‘Foi tardio por motivos de acessibilidade e estudos. No meu núcleo de amigos não tinha pessoal que gostasse do surf. Era tudo futebol. Mas o surf foi sempre uma paixão. Primeiro via revistas de surf, depois filmes.’18 Foi presidente do Clube Náutico da Lagoa, colaborou em actividades da ASSM, fez parte da USBA, e foi (em 2014) membro fundador da AASB. Integrou por diversas vezes a sua direcção. Tirou o curso de Juiz. Fizeram parte do núcleo de surf da Lagoa, ‘o Weverton Nunes, o Triki (João Alves) e o Luís Ferreira (dos Mosteiros).’ Em 2012, o ‘Weverton Nunes (BRASA) foi campeão do circuito, tendo no mesmo ano entrado para a Liga Meo Pro.’ Voltando a 2009, ano da abertura do núcleo, ‘no tempo do João Brilhante e do Paulo Melo, da ASSM, entrámos no Circuito de São Miguel.’ No ano seguinte, a ‘29 e 30 de Maio de 2010, o Clube Náutico, em parceria com o CNPDL, na altura lá estava o Xolim,’ organizou ‘a 1ª prova do circuito de surf de São Miguel. Prova inicialmente programada para a baía de Santa Cruz, mas devido ao estado do mar, foi transferida para a praia do Monte Verde. Contou com um prize money de 750€, disputada nas modalidades de surf e de bodyboard.’19 De 2011 a 2013, durante o mandato de Presidente do Clube Náutico, Varão cria uma ‘escolinha de surf.’ Em 2014, é contratado ‘David Prescott como treinador (bodyboard ou surf).’ A ligação (no entanto) foi fugaz: Prescott saiu em 2015. Procurando apoios, ‘o clube celebrou contrato programa de competição em 2015’20 Foi em vão o esforço: ‘conseguimos angariar muito poucos alunos. A volta só se dá com o Mundial que decorreu no Monte Verde. Só então entrou em franca expansão.’21 Em 2017, o Núcleo ainda participa (com um ou dois atletas) nas provas organizadas pela AASB.22 Porém, nesse mesmo ano fecha portas. Por que razão? ‘Porque eu [Varão] sendo o elemento mais diferenciado e com experiencia no surf por motivos pessoais não pude dar continuidade ao meu apoio ao Clube.’ 23
Entretanto, a (nova) Cidade pretende virar-se para o mar. E nisto, volta a olhar para Santa Cruz. Um primeiro passo fora dado (ainda Vila) em Março de 2002.24 É (então) inaugurada a Avenida do Mar. Via litoral que liga o lado nascente ao poente da baía. 25 A viragem (decisiva) dar-se-ia (já) após a elevação a cidade em 2012. Em concreto, a partir de 2015.26 Penso que imitando (no bom sentido) o exemplo (de sucesso) do que se fazia (ou pretendia fazer) na Cidade da Ribeira Grande.27 O litoral estava (e está) na moda. O fluxo turístico subira em flecha graças às companhias aéreas de baixo custo e à divulgação da Ilha (esforço do Governo, das autarquias e de competições desportivas). O nó da Manguinha torna central a Lagoa. Sobretudo em relação a Ponta Delgada e à Ribeira Grande. Não nos deve espantar que, nesse contexto, a Câmara da Lagoa quisesse proteger e valorizar o seu litoral. Começa a avançar da Atalhada (no extremo poente do Concelho) em direcção à baía de Santa Cruz. Em Agosto de 2021, é ‘inaugurada a primeira fase da requalificação da Baía de Santa Cruz.’ Cria ‘um circuito de lazer e balnear.’ Isso, do lado da Relvinha (zona poente da baía). É ‘a primeira de três fases da renovação da baía.’ 28 Erradicara-se as barracas (algumas clandestinas) e pôs-se fim às derradeiras ‘hortas.’ Em Abril de 2024, é assinado um ‘contrato (…) de arquitectura e especialidades’ para realizar a segunda fase.29 Enquanto isso decorre, como forma de atrair frequentadores à baía, tal como em Santa Bárbara ou nas Milícias, só para referir estes, além do recinto de futebol de praia, a autarquia irá lançar (dizem-me que em breve) um concurso de exploração de um espaço destinado a bar.30
Como chega Rodrigo Herédia ao Sul Villas & Spa? Herédia e João Reis, ambos surfistas, inauguraram em 2015 o Santa Bárbara Eco-Beach Resort (na Ribeira Grande).31 Foi um êxito. Herédia, poucas dúvidas tenho disso, foi o principal responsável pela abertura da ilha ao surf Mundial (e à mais valia que traz à economia). Quando Herédia quis investir na baía de Santa Cruz, a fama precedia-o (pois). Além disso, vinha ao encontro do que a autarquia pretendia para a baía. A 7 de Julho de 2019, é inaugurado o Sul Villas & Spa (de quatro estrelas).32 Aliás, entre a Câmara e o SPA, existem (construídos antes ou depois do SPA) três alojamentos locais dois dos quais voltados para a baía. Enquanto (no Norte) o Resort vive (em estreita simbiose) com a praia, os do Sul, por ora (?), vivem (apenas) da vista (do mar). A meu ver, o investimento na baía, valerá de pouco, se não se conciliar (de forma sensata) os interesses dos banhistas e dos surfistas.33 O objectivo será facilitar o acesso ao mar sem destruir a onda. Mas não só isso. Não esquecer que à baía chegam duas ribeiras e um esgoto de águas pluviais (a nascente), e uma grota (a poente).34 De que valerá uma praia com areia e onda, se as suas águas estiverem contaminadas? Flagelo das praias da Ilha. Quase sem excepção.
Por: Mário Moura
Santa Cruz (Baía) – Cidade da Lagoa