A Igreja celebra hoje São José, uma figura central para a fé cristã, reconhecida tanto como patrono universal da Igreja quanto como modelo de pai e protector da família. A paróquia de São José, em Ponta Delgada, marca a data com momentos de oração e reflexão sobre o legado do santo, que inspira os cristãos na vivência da fé, da responsabilidade e do compromisso familiar.
Correio dos Açores – Qual é o significado espiritual do Dia de São José para a Igreja e para as famílias cristãs?
Duarte Melo (Pároco da Igreja de São José) – O Dia de São José reveste-se de grande importância, em primeiro lugar, para a comunidade de São José de Ponta Delgada, para a freguesia e para a paróquia, pois é o dia do seu patrono. A celebração decorrerá no dia 19 de Março (hoje), com um conjunto de actividades que a Paróquia está a vivenciar, resultado de uma programação previamente estabelecida.
Assim, às 17h, haverá um momento de oração ao Santíssimo Sacramento, pedindo pela paz no mundo. Depois, às 20h30, no âmbito das celebrações dos 500 anos do Convento, realizar-se-á uma conferência sobre “Visão, ilusão e vidência: os tectos pintados da Igreja de São José”. A conferência será conduzida pelo professor Vítor dos Reis, da Universidade de Lisboa.
No dia 23, celebraremos a Missa Solene, assinalando o Dia da Comunidade e reunindo todos os movimentos e grupos da paróquia, contando também com a presença do Conselho Pastoral Paroquial. Queremos dar visibilidade a este dia tão especial – um dia efeméride –, assinalando-o de uma forma simples, mas significativa.
Durante estes dias, o terço será rezado em honra do Padroeiro São José. O Dia da Comunidade é uma ocasião para valorizar a comunidade como espaço de encontro e de humanização. O sentido de comunidade vem contrariar a cultura individualista, na medida em que fortalece as relações entre pessoas de diferentes idades e origens, todas unidas pelo espírito da sua paróquia. Assim, trata-se de viver a comunidade no contexto da cidade.
De que forma a figura de São José inspira a paternidade e a responsabilidade dentro das famílias nos dias de hoje?
Antes de chegar a esta parte, é importante perceber que São José foi proclamado patrono universal da Igreja no século XIX pelo Papa Pio IX. Desde sempre, a Igreja dedicou grande atenção a esta figura, pois São José coopera e colabora na própria história da salvação, através da sua simplicidade, do seu “sim” generoso, do seu despojamento e do silêncio. São José guardou o silêncio e, ao mesmo tempo, guardou a palavra de Deus.
Para as famílias cristãs, São José é um modelo de pai e protector. Soube cuidar da sua família desde o início e foi um homem de grande persistência e coragem. Logo desde a Anunciação, quando o anjo lhe revelou que Maria iria ser mãe, enfrentou um grande conflito interior, mas nunca recorreu à violência psicológica contra Maria. Pelo contrário, acolheu e aceitou aquilo que Deus lhe pedia, que lhe foi revelado em sonhos. Foi através dos sonhos que compreendeu a sua missão: ser o guardião e protector da sua família. E assim o fez, guardando os maiores tesouros da Igreja – Jesus e Maria. Os cristãos vivem intensamente esta devoção à Sagrada Família (Jesus, Maria e José), que é sagrada pelo seu modo de estar: uma família inteira, unida diante de Deus. Quem se coloca diante de Deus e de Jesus, também recebe a graça. Por isso, todas as famílias que se entregam a Deus são famílias abençoadas.
São José é também um modelo de paternidade, pois protege e está sempre presente. A família de Nazaré não esteve isenta de dificuldades, tendo vivido momentos de grande fragilidade. Por essa razão, São José é considerado protector dos frágeis, dos necessitados, dos refugiados, dos imigrantes e dos moribundos. Diante das adversidades, nunca hesitou: aceitou a missão de ser pai, acompanhou Maria, percorreu longas distâncias de Nazaré até Belém, onde viveu o drama de um parto sem abrigo. Depois, fugiu para o Egipto, tornando-se refugiado para proteger a sua família. Viveu numa terra estranha, sem conhecer a língua, os costumes ou a cultura. Ainda assim, trabalhou de uma forma simples o seu dia-a-dia como carpinteiro, uma profissão simples e modesta.
Curiosamente, a Bíblia não regista nenhuma palavra dita por São José. Não há um “pois” ou um “talvez” pronunciado por ele. No entanto, dois evangelistas, especialmente São Lucas, fazem referência à sua vivência e presença discreta. A vida quotidiana de São José era comum, o que nos ensina que a santificação acontece na normalidade do nosso dia-a-dia, nas pequenas acções. Não são os grandes feitos extraordinários que nos aproximam de Deus, mas a vivência simples e fiel de cada dia.
São José sempre teve um papel central na vida da Igreja. Como padroeiro e patrono universal da Igreja, é reconhecido como um homem justo, obediente, casto e protector da família – que é o maior tesouro que temos e que devemos proteger e respeitar. O Papa Francisco declarou 2020 e 2021 como o Ano de São José (8 de Dezembro de 2020 a 8 de Dezembro de 2021), reforçando a importância desta figura na história da Igreja. Pode-se dizer que São José é um santo estruturante na vida cristã, ao lado de Nossa Senhora, São João Batista, São Pedro e São Paulo. Estes santos são essenciais na construção da Igreja, que é uma vida de corpo. A Igreja é corpo. Assim, cuidar da Igreja significa também cuidar deste corpo, que é a comunidade cristã, a família.
Este entendimento reforça a importância da ética da responsabilidade, que nasce da relação entre as pessoas. São José foi um homem responsável, assumindo as suas funções de pai, esposo e trabalhador. Por isso, o dia 1 de Maio, Dia do Trabalhador, é também dedicado a ele como São José Operário. A Igreja sempre destacou o seu papel como patrono dos trabalhadores, que vêem nele um exemplo de dedicação e esforço.
Outro aspecto marcante é que São José é frequentemente recordado na hora da morte. Ele é considerado o protector dos moribundos, daqueles que partem deste mundo. No passado, nas freguesias, rezava-se a ladainha de São José junto aos que estavam a falecer, pedindo que ele os ajudasse na travessia para a eternidade. Antigamente, as pessoas morriam em casa, rodeadas pela família e pelos vizinhos, enquanto hoje, a morte ocorre frequentemente nos hospitais, muitas vezes em solidão.
Vivemos numa sociedade moderna, altamente higienizada e tecnologizada, onde a morte parece não ter lugar. No entanto, a realidade da morte está presente em vários aspectos do mundo actual: na destruição ambiental, nas guerras, nos acidentes, na pressa do quotidiano, no stress e na exaustão. Apesar disso, tentamos ignorá-la, relegando-a para o último plano.
São José recorda-nos que os moribundos não podem ser esquecidos ou abandonados. Assim como ele nunca abandonou a sua família, os cristãos também têm o dever ético de acompanhar os seus. Devemos estar presentes junto daqueles que estão a fazer a passagem para a eternidade, tal como São José acompanhou a sua família com amor e responsabilidade.
O que significa para si, como padre, celebrar o Dia do Pai e reflectir sobre o papel do pai tanto na Igreja quanto na sociedade?
É importante que, neste dia, também se faça esta reflexão, que pode acontecer de muitas formas, inclusive através de gestos de ternura.
As crianças, na escola, fazem desenhos, compram perfumes, chocolates e flores para oferecer aos seus pais. É muito bonito ver que as famílias e as escolas valorizam a paternidade, a figura do pai, porque todos nós temos pai – somos, de certa forma, o reflexo dos nossos pais.
Por vezes, os pais de hoje estão tão cansados e lamentam não poder estar mais presentes na educação e no acompanhamento dos seus filhos, pois os ritmos de vida são muito acelerados. As pessoas vivem sob grande stress desde cedo, entre levar as crianças à escola, buscá-las, cumprir horários e obrigações. O mundo moderno está organizado de tal maneira que parece querer roubar-nos o tempo para o essencial. E o essencial são as pessoas que amamos. É necessário criar prioridades e eleger a melhor parte. E a melhor parte é a família.
São José dá-nos esse exemplo: soube escolher a melhor parte. Não abandonou Maria, mas acolheu a sua missão e acompanhou o seu filho e a sua esposa. A importância dos pais está também nesse sentido: acompanhar as suas esposas e vice-versa, acompanhar os seus filhos e ter cautela com os ritmos de trabalho, que podem desumanizar.
Muitas vezes, perde-se demasiado tempo com aquilo que é acessório, quando o foco deveria estar no essencial. São José ensina-nos essa lição, convidando-nos a reflectir sobre como vivemos a família, como vivemos o trabalho e qual o impacto disso na nossa saúde.
A questão da saúde também se impõe, pois, nos dias de hoje, muitas pessoas sofrem de doenças cardíacas devido ao stress e ao ritmo acelerado da vida. Além disso, a saúde mental tem sido fortemente afectada, não tanto pela família em si, mas por factores externos a ela.
É fundamental olhar para o interior da família e compreender a sua verdade. E a verdade da família está no amor. Porque é o amor que salva uma família e que sustenta uma relação. Quando o amor desaparece, já não resta mais nada. São José lembra-nos, mais uma vez, da importância de focar no essencial, de não desperdiçar tempo com o que é secundário e de valorizar o que temos de mais precioso: a família.
Quais são os maiores desafios que os pais enfrentam hoje, e como a Igreja pode apoiá-los na missão de educar os filhos?
A Igreja disponibiliza vários serviços, desde as catequeses, as creches e os jardins de infância até espaços de reflexão e de diálogo. No entanto, muitas famílias estão cada vez mais afastadas desta dimensão religiosa e espiritual, infelizmente. Afinal, essa vivência poderia ser uma forma de descanso, de quebra com os ritmos acelerados do dia a dia, tanto no trabalho quanto nas tarefas domésticas. Poderia ser um momento para parar um pouco e, por exemplo, participar juntos numa missa ao Domingo, sair em família para a Igreja.
Para além disso, a Igreja é um espaço diferente, onde se valoriza o estar em comunidade e se redescobre a importância do silêncio. No mundo de hoje, muitas pessoas sentem um certo pavor ao silêncio, procurando sempre um ruído de fundo. Há uma dificuldade em perceber a força do silêncio, que pode resgatar almas tristes e cansadas. O silêncio tem essa capacidade de nos restaurar. E essa lição também aprendemos com São José, que foi um homem de poucos discursos, mas que guardou no coração a luz e o mistério da sua missão.
Diante do mistério, a única resposta é o silêncio e a contemplação. Por isso, São José é um modelo que nos conduz à contemplação do mistério de Deus. E o mistério de Deus manifesta-se de duas formas:
Primeiro, através da Encarnação – um Deus que se faz carne, que habita entre nós, que se torna igual a nós. Esta dimensão é visceral, intensa, desde o próprio nascimento de Jesus.
Depois, através da Redenção – um mistério igualmente profundo e sofrido, que passa pela paixão, morte e ressurreição de Cristo. A redenção nasce dos momentos de limite, e é precisamente nesses momentos que se revela a verdade mais profunda da vida humana.
A dinâmica familiar tem mudado nas últimas décadas. E o respeito pelos pais tem diminuído ao longo do tempo. Como a igreja pode ajudar a contornar esta realidade?
A Igreja pode, de facto, ajudar, transmitindo e apontando valores. Os valores são luz – uma luz que brilha e dissipa as ambiguidades das sociedades contemporâneas. Para nós, esses valores nascem do Evangelho, do modo de ser e agir de Jesus. Ele é o nosso mestre, e é com os mestres que devemos aprender.
Aprender com Jesus significa escutar o que Ele diz e seguir os seus ensinamentos. Essa é a missão da Igreja. E só o facto de aprendermos com Ele já nos protege a nós e às nossas famílias, pois isso transforma a nossa forma de estar e de viver. Faz-nos reflectir sobre o que realmente importa, pois, o acessório nunca será essencial.
A Igreja também proporciona às famílias um espaço de anúncio de boas notícias – e como precisamos de boas notícias! Essas mensagens são luz para nós. Para além disso, a Igreja dispõe de algumas estruturas que podem apoiar as famílias, mas a grande ajuda que oferece é esta: incentivar as famílias a encontrarem a verdade da sua própria existência a partir dos valores cristãos, que são os alicerces da nossa religião.
Quando esses valores se tornam difusos, tudo à nossa volta se torna mais ambíguo. Por isso, é essencial que as pessoas tenham a capacidade de tomar decisões conscientes. O grande desafio do cristianismo no mundo ocidental hoje é a perda do sentido de pertença. No entanto, é precisamente esse sentido de pertença que sustenta a vida em comunidade.
Se não me sentir parte de uma comunidade, de uma paróquia, de um corpo colectivo, corro o risco de me tornar cada vez mais individualista – e esse é um dos maiores problemas do nosso tempo. A comunidade contraria a cultura do individualismo, pois afirma outros valores, valores que colocam o bem comum acima do isolamento e da indiferença.
O individualismo afecta as famílias?
O individualismo afecta as famílias e mata, pois, gera indiferença, promove a lógica do “salve-se quem puder” e alimenta o narcisismo dos espelhos partidos. O individualismo conduz ao narcisismo e, a partir daí, à ambição pelo poder, sempre desconsiderando o outro. Quando não se olha o rosto do outro, perde-se a ética da responsabilidade, que nasce precisamente dessa relação de alteridade. Sem alteridade, há apenas fechamento e egoísmo.
Isso é contrário ao cristianismo. O cristianismo não é uma religião de egoístas; é uma religião de pessoas que se amam e que praticam a solidariedade. São dois paradigmas opostos.
Como é que as famílias açorianas têm lidado com os desafios e as mudanças sociais nas últimas décadas?
Claro que as pessoas vão se adaptando aos tempos, e as famílias passam por muitas transformações e há muitos tipos de família. O essencial, porém, é valorizar a família como espaço de respeito e amor.
Seja uma família tradicional ou não, o que realmente importa é a vivência de uma ética da responsabilidade, pautada no respeito e na comunhão entre os seus membros.
De que forma a Igreja pode apoiar as famílias na gestão dos desafios trazidos pela digitalização, especialmente no que diz respeito à educação dos filhos e ao uso equilibrado da tecnologia?
Nós não podemos simplesmente invadir a privacidade das pessoas, tirar-lhes os computadores, os telemóveis e brigar com elas para não usarem isso ou aquilo. A Igreja, no entanto, tem a obrigação de chamar a atenção para esses desafios e orientar. A tecnologia é importante, mas quando é usada de forma puramente técnica, sem consideração pelos seus efeitos humanos, pode desumanizar. Esse é o grande problema: a técnica pela técnica pode nos tornar menos humanos.
O digital, por exemplo, e redes sociais como o Facebook, não têm a capacidade de oferecer verdadeira amizade. A amizade verdadeira é empática, é um sentir que não pode ser vivido através da tela de um tablet, que está sempre separando e criando uma superfície que impede a verdadeira conexão. As relações digitais tornam-se virtuais e não presenciais, e isso desumaniza as pessoas. Não dá para sentir os sentimentos de alguém apenas por meio de um chat ou uma postagem.
O filósofo Emmanuel Levinas fala sobre a “epifania do rosto”, a ideia de que o rosto é fundamental para a construção da comunidade e para a verdadeira alteridade. Se não conseguimos perceber o rosto do outro, se ele se torna algo virtual, algo que não podemos tocar ou sentir de verdade, essa conexão se perde.
Por isso, é crucial valorizar a verdadeira relação humana e a verdade. A relação tem que ser genuína, e a manipulação de informações, por meio de meias-verdades, é um grande perigo. Essas meias-verdades contaminam e distorcem a realidade, criando uma sociedade onde as relações se tornam cada vez mais superficiais e fragmentadas.
Na sua opinião, como a Igreja pode ajudar as famílias a lidar com questões como o abandono escolar e outros desafios que afectam o desenvolvimento dos jovens?
O papel da Igreja é ajudar as famílias a criarem suportes de apoio dentro da comunidade, especialmente porque nos Açores há uma realidade de muita pobreza. Somos a região mais pobre do país, com muitas famílias desestruturadas e que enfrentam dificuldades em ter rendimentos suficientes para cobrir necessidades básicas. Essa situação pode contribuir para o fracasso escolar, pois muitas crianças não têm as condições necessárias para ter sucesso. Se observarmos, vemos que a maior parte das crianças que enfrentam dificuldades escolares vêm de famílias pobres e desestruturadas. É preciso combater o abandono escolar
É uma questão de políticas sociais e educacionais. Os Governos têm a obrigação de apresentar projectos que sejam credíveis e que ajudem na inserção e no desenvolvimento da comunidade, além de facilitar o acesso ao trabalho. Quando as pessoas não têm trabalho, elas podem cair no desespero. Quem não trabalha, muitas vezes, perde o sentido da vida e, em casos extremos, até chega ao suicídio. Esses são sinais preocupantes na nossa sociedade.
Como cristãos, temos a obrigação de estar atentos e vigilantes, assim como São José esteve sempre atento à vida de sua família, protegendo-a de tudo.
Como referiu, é preciso estar muito atento à saúde mental das pessoas…
Sim, esses sinais são sintomas claros de uma sociedade que não está bem. Uma sociedade que precisa ser curada. A grande doença das sociedades de hoje não é, de facto, psicológica ou psiquiátrica, mas sim a doença da alma, a tristeza da alma. Há muitas pessoas que estão tristes por dentro, que necessitam de cura, mas não sabem como encontrá-la. Essa cura é uma terapia espiritual que é preciso procurar, mas as pessoas muitas vezes não se dão conta disso e, se não percebem que estão doentes nessa dimensão, não buscam a cura.
Normalmente, o doente busca a cura, vai ao médico quando sente os sintomas e tem consciência da sua doença. Mas, muitas vezes, as pessoas não conseguem nem identificar essa dor espiritual e emocional. O grande problema das sociedades contemporâneas é justamente essa doença da alma.
Filipe Torres
