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‘O humano mecaniza-se, as máquinas humanizam-se. Isto é um banquete para a poesia, e a poesia alimenta-se de bestas, muito mais do que de flores e passarinhos’

No Dia Mundial da Poesia, estivemos à conversa com Leonardo Sousa, poeta açoriano nascido em 1993, em Ponta Delgada, e autor de obras como há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida, âmbula, caderno de mitos pessoais e contas de cabeça. Nesta entrevista, fala sobre poesia e entre referências literárias, influências filosóficas e uma visão crítica do presente, aborda o cenário cultural açoriano, onde não faltam artistas, mas sim investimento e formação de públicos. Sem ilusões sobre o tempo que vivemos, diz que a poesia não se mede pela sua utilidade, mas pela forma como nos desabriga e nos obriga a procurar outros lugares.

Correio dos Açores – Dia Mundial da Poesia. Algo a apontar?
Leonorado Sousa – Não tanto sobre o dia mundial, mas sobre o tempo em si. 48 mil mortos na Palestina, mais umas quantas centenas de milhares desde a invasão russa na Ucrânia. O planeta a arder dum lado e a inundar do outro. Monstros no poder ou à beira disso: alguns acéfalos, mas rodeados de gente perigosamente inteligente. O homem mais rico do mundo a dizer que o grande problema da humanidade é a empatia. O humano mecaniza-se, as máquinas humanizam-se. Isto é um banquete para a poesia, a poesia alimenta-se de bestas, muito mais do que de flores e passarinhos. Lembro Nicanor Parra: “Não se livra a estátua de nenhum presidente / (…) // Os pombos sabem muito bem o que fazem”.

Há anos em que a poesia é mais necessária do que noutros?
Como dizia, há pouco tempo, um amigo meu, estamos a clicar demasiado na tecla dos tempos interessantes. Eu não me ponho a dizer que a poesia é necessária, acho que é absolutamente inútil, e só por isso sobreviveu aos milénios, só por isso vale a pena. Úteis e necessárias são as sanitas, já não sei quem escreveu ou disse isto, mas é bem verdade. A poesia não se mede nesses parâmetros. Que há muita matéria-prima para escrever um poema no século XXI, em 2025, isso há, sem dúvida.

Para a epígrafe do teu segundo livro escolheste a frase ‘um poema deve ser, e não significar’. O que é que isso significa?
É um verso de Archibald Macleish, poeta americano do século XIX. Na altura, o que pretendia com a epígrafe era afirmar o poema como sustentação de si próprio, afirmá-lo não como obra, mas como organismo, feito com vulnerabilidades e possibilidades contraditórias de sentido, a um só tempo perenes e perecíveis. Um poema toldado por atributos estáticos, que não se mexe dentro de si mesmo, que não resiste ao que posso dizer sobre ele, pouco ou nada me interessa. Acredito nos poemas que são como terramotos: forças do fundo nuclear da terra, que devastam, que recriam, que se transformam, que nos desabrigam e nos obrigam a procurar sítios onde – precariamente – nos possamos esconder.

Virginia Woolf disse que a prosa nunca nos vai atingir com ‘um só golpe’ como só o poeta consegue. Para ti, o que faz com que a poesia tenha essa força?
Depende da prosa e depende do poeta. Essas categorias e cisões são um bocado inúteis, chegam a ser contra-produtivas e castradoras. Para mim, e só respondo pelo meu caso, depende do grau de concisão com que consigo dizer o que não pretendia, o que surgiu ali na página depois de um exercício de manipulação e saturação das possibilidades do texto. A força é os espaços em branco que se deixam nas palavras, e as palavras que estão atrás dos espaços em branco. Claro que é necessário que alguém escreva e que se inscreva um certo (des)concerto da linguagem, mas a força da poesia é sobretudo um trabalho de leitura. O leitor cria o poema quase tanto como o chamado autor.

O que é a poesia?
Herberto Helder: “É sempre outra coisa, uma só coisa coberta de nomes.”

Lembras-te do momento em que percebeste que querias escrever?
Aos sete anos, pela primeira vez. E um longo interregno depois, aos quinze ou dezasseis anos, quando comecei, uns contos e uns poemas nada maus para um miúdo daquela idade. Que o lixo os tenha num bom cantinho.

Quais são as tuas referências literárias?
Sempre que me fazem essa pergunta, tenho de ir passear pelas estantes, e as respostas dependem muito do momento. Agora, tenho na secretária o Épico de Gilgamesh, o vol. IV da Bíblia traduzido por Frederico Lourenço (especificamente, aberto no livro de Eclesiastes), as Metamorfoses, de Ovídio, o Da Natureza das Coisas, de Lucrécio. Mas vêm-me à cabeça também Pessoa, Beauvoir, Lispector, Herberto, Cesariny, Al Berto, Ramos Rosa, Lobo Antunes, Natália Correia, Emanuel Jorge Botelho, Bukowski, Nicanor Parra, Gonçalo M. Tavares, Nuno Félix da Costa, José Luiz Tavares.

E as outras referências?
Sei lá, entre a filosofia, as artes, a política, e a própria vida do dia-a-dia, há tantas coisas e tão avulsas. Schopenhauer, Nietzsche, Freud e Marx, a obra ensaística de Antero, os existencialistas, em geral, Sartre, Camus, Beauvoir, foram fundamentais para construir a forma como penso hoje. Encontrei uma espécie de família no pós-estruturalismo e nos estudos culturais, porque, desde muito cedo, intuí que a civilização ocidental assentava em critérios de verdade demasiado convenientes. Foucault, Judith Butler, Bell Hooks, Anselm Jappe. Por outro lado, foi uma desilusão, porque afinal tinham pensado tudo o que eu achava que tinha descoberto sozinho, e de forma bem mais inteligente e sustentada. Na política, os meus heróis são Allende, Mujica e Emma Goldman. Na música, quem me comove, por razões entre si muito distintas, são nomes como Zeca Afonso, Zeca Medeiros, Tom Zé, Elis Regina, Luna Pena, Da Weasel, Debussy, Miles Davis, Nirvana, Arctic Monkeys. Na pintura, os meus preferidos são Francis Bacon e Richard Lindner, e, no cinema, são Orson Welles, Billy Wilder, Kubrick, Kusturica, e David Lynch. As demais referências são estritamente afectivas e demasiado pessoais para virem aqui elencadas – se bem que qualquer referência remete para um espaço íntimo. Podemos ter referências parecidas, mas raramente as temos pelas mesmas razões.

Como foi o caminho até aqui? Como é que alguém se torna poeta nos Açores?
Foi bastante ao som do improviso, sem grandes cálculos ou planos. Foi uma sequência de acidentes que nunca vi propriamente como um caminho, teria de olhar para trás e montá-los numa espécie de estúdio mental (estou a roubar a imagem a um poema do Urbano Bettencourt), o que seria sempre mais um exercício de ficção do que outra coisa. Respondo-te com uma pergunta: como é que alguém não se torna poeta nos Açores?

Depois de há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida, segue-se onde sequer o luar, âmbula, caderno de mitos pessoais, correspondência, contas de cabeça. Há algum livro com o qual te identifiques mais? Podes falar sobre algum desses títulos?
Nos primeiros dois, vejo-me muito à distância, só me reconheço em certos traços. O ‘âmbula’ foi muito importante, nunca tinha escrito num registo tão anárquico. O Carlos Alberto Machado, editor da Companhia das Ilhas, ele próprio um poeta fortíssimo, tanto me deixava à solta, como me dava pistas para os problemas, obrigava-me a procurar soluções sozinho. Em suma, deu-me liberdade. Acho que tenho trabalhado num registo de ressignificação pessoal da representação lírica da realidade. Acho que o lirismo do caderno de mitos pessoais é bem mais irónico e mordaz do que uma leitura superficial pode pressupor (o Manuel de Freitas deu conta disso na recensão que escreveu), daí que o contas de cabeça tenha deixado alguns leitores de pé atrás, a dimensão auto-irónica acentua-se, há mais cortes abruptos, mais elipses, é um livro cujo princípio é “fazer do crânio um campo de minas” (Robert Bréchon). Gosto desta ideia de construir um lirismo armadilhado, quase uma ilusão de óptica, uma árvore muito bonita, que te atira os passarinhos à cara e te pendura pelos pés, de cabeça para baixo, se te aproximares demasiado.

O ‘poeta insular’ é diferente dos outros poetas?
Deve ser, tal como um ‘poeta urbano’ é diferente dos outros poetas. Se alguém me conseguisse explicar decentemente que raios é ‘um poeta insular’, talvez eu pudesse responder com mais convicção. Dito assim, parece uma etiqueta para vender num pacote promocional qualquer. Na compra de um poema, leve um ananás e uma compota. Não é para isso que escrevo (até por uma questão de respeito pelo ananás e pela compota). A relação entre arte e geografia está estafadíssima, chegou a um ponto em que é quase caricatural, sobretudo num mundo globalizado, em que a questão já não se coloca nesses termos. Poderia parafrasear aqui Nuno Félix da Costa e dizer-te que, onde ele escreve “o português só me une aos mortos da literatura”, poderíamos escrever “a insularidade só me une aos mortos da ínsula”.

Poesia e arte nos Açores… algo a apontar?
Existem e não devem nada a ninguém. Os We Sea vão lançar mais um álbum, mas os dois primeiros já são pesos pesadíssimos, tanto musicalmente, como na dimensão lírica. Oiço-os muitas vezes, estão entre as minhas bandas preferidas no campo nacional. O Rofino faz um papelão com a voz, mas é também um poeta muito capaz. O trabalho que o Romeu Bairos acabou de lançar e que está a promover é extraordinário a muitos níveis e não sei se, em termos de talento bruto, alguém o bate, mas eu sou suspeito, somos amigos há muito tempo, e até já escrevemos músicas em conjunto. O João Miguel Ramos e o João Amado estão a mandar cartas muito fortes nas artes plásticas. No quarteirão, há o Mário Roberto, o Vítor Marques, a Leonor Pereira. Na literatura, são imensos nomes. Goste-se mais ou menos, estão no mapa Paula de Sousa Lima, Madalena Ávila, João Pedro Porto, Joel Neto, Nuno Costa Santos, Maria Brandão, Urbano Bettencourt, Leonor Sampaio da Silva, Renata Correia Botelho, Emanuel Jorge Botelho. Enfim, estou a deixar muitos nomes e muitas áreas de parte, se não enchemos uma página inteira. O problema, nos Açores, não é falta de artistas, é falta de públicos. Não há formação de públicos, porque formação de públicos é formação de massa crítica, o que seria muitíssimo inconveniente para os poderes instalados. E há falta de investimento nos artistas e na cultura, porque sabe-se lá o que gente dessa pode ir por aí dizer e exigir… Claro que há os arregimentados, que ganham os concursos todos de tudo, por mais indigente que seja a proposta, e, se reparares, para esses, os Açores são sempre uma terra fantástica, idílica, maravilhosa, um paraíso ímpar, e é sempre um privilégio lá viver, por mais miserável que seja a vida.

Lisboa mudou a tua escrita? Há versos que só podiam ter sido escritos nos Açores?
Essas são perguntas para os leitores. Provavelmente, sim, mas eu não tenho distância suficiente do meu trabalho para responder com honestidade. Provavelmente, sim, porque as experiências criativas são quase sempre contaminadas pela experiência dos lugares e dos tempos. Mas saberá melhor quem ler.

Tens uma rotina ou um ritual para escrever, ou a poesia impõe-se quando quer? Onde é que acaba a inspiração e começa a edição?
Escrevo quando tenho consciência que não posso perder a frase que me veio à cabeça. O ritual ou a rotina começam quando me começo a sentar diariamente para rever, editar, apagar. E é aí que 90% das coisas acabam no lixo.

Quais são as coisas que te inspiram?
Tudo em geral, nada em particular. Escrevo sob estados de êxtase, de particular alegria ou de revolta e raiva, ou, então, quando um texto me aterra na cabeça, não sei bem de onde, mais ou menos pronto, só a precisar de ajustes e de uma distância temporal de segurança, que é uma das formas de se testar a durabilidade do primeiro impacto.

A ‘musa’ existe? Se sim, qual é a forma que assume para ti?
Inspiração, musas, fadas, deuses, daímones, em geral, são, naturalmente, ficções que usamos para arrumar coisas que não conseguimos explicar. De onde vem a vontade de criar? Por que é que ficas a pensar, quotidianamente, constantemente, em traduzir em forma escrita aquilo que vês e sentes? Por que é que, face a uma percentagem assinalável de fracassos, continuas a tentar? Podia dizer-te que cresci entre muitos livros, entre professores que me estimularam, que o meu pai pintava, etc., mas isso não explica tudo.

Como decides que um poema está pronto?
Não decido. Não tenho poemas prontos, tenho últimas versões.

Quando sai o próximo livro? Tens outros projectos entre mãos?
O próximo vai ser a reedição do caderno de mitos pessoais, muito em breve, a convite da Artes e Letras. Aproveitando a reedição, vamos incluir textos que ficaram de fora aquando da primeira edição, em 2018, e textos que saíram na edição de poesia da Avenida Marginal, da mesma editora.
Tenho um livro entre mãos, que seria para editar ainda este ano com o selo da Companhia das Ilhas, mas está francamente demasiado atrasado para o enquadrar num calendário próximo.

Se tivesses de escolher um poema teu para ficar guardado no tempo, qual seria?
Preferia que fossem leitores a escolher, e esta resposta mudaria talvez já amanhã, mas, hoje, dois, o primeiro vindo do contas de cabeça:
cabes num esconderijo
aproxima-te do contrário
recua no sentido do horizonte
e lembra-te
na ausência de destino
tudo fica a caminho
apaga os faróis e desliza
sob as vias marulham as valas
os verdadeiros assassinos
cumprem os sinais de trânsito

O segundo a sair, em princípio, na reedição do caderno de mitos pessoais:

demasiado moderno para ler
como aprendi a respirar por acidente
nunca quis fazer sentido

Um verso que nunca te abandonou.
David Jones of Llangwyffen: “Se alguém me chama de regresso a casa / não sei responder”

Um poema que gostavas de ter escrito.
Podia fazer uma colectânea de poemas que gostaria de ter escrito. Hoje, um de António Ramos Rosa:

CONTRA A POESIA PURA

Basta de estrelas
e de nuvens
e de pássaros

Falemos antes de gaiolas
que é tempo de conquistar o céu

Que poema queres deixar aos nossos leitores neste dia?
Entre os muitos outros a que faço a injustiça de não transcrever aqui, este, de Ruy Proença:

Tiranias

antigamente
diziam: cuidado,
as paredes têm ouvidos
então
falávamos baixo
nos policiávamos
hoje
as coisas mudaram:
os ouvidos têm paredes
de nada
adianta
gritar
Daniela Canha

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