No âmbito do Dia Mundial da Água, o Correio dos Açores esteve à conversa com José Virgílio Cruz – professor da Universidade dos Açores e coordenador do Plano de Gestão da Região Hidrográfica dos Açores 2022-2027. A eutrofização dos lagos e lagoas da Região, os contrastes de disponibilidade de água entre ilhas e os impactos das alterações climáticas foram alguns dos temas abordados. Segundo o professor e investigador, “apesar da disponibilidade de água nos Açores ser superior às necessidades, isso nos retira a responsabilidade de evitar o seu desperdício”.
Correio dos Açores – Existe contraste nas reservas de água entre as ilhas da Região?
José Virgílio Cruz (professor e investigador) – Considerando a totalidade das nove ilhas que compõem a região hidrográfica dos Açores, existem disponibilidades de água que excedem as necessidades para as diversas actividades humanas. Contudo, em algumas ilhas, como a Graciosa ou Santa Maria, essa excedência da disponibilidade de água sobre as necessidades não é tão evidente. Isso deve-se à precipitação – ao volume de chuva que cai anualmente sobre as várias ilhas. Na Graciosa e em Santa Maria, essa quantidade de precipitação é inferior em comparação com outras ilhas.
Por outro lado, é sempre importante salientar, e eu faço questão de destacar, que, apesar de a disponibilidade de água nos Açores ser superior às necessidades, isso não nos desobriga nem nos retira a responsabilidade de mitigar e evitar o desperdício, promovendo o uso eficiente dos recursos (o que, por vezes, não acontece). Ainda hoje, temos níveis elevados de perdas de água nos sistemas de abastecimento.
A agricultura e a pecuária têm um grande impacto no consumo de água da Região?
A actividade agrícola e a pecuária, em particular, têm sempre algum impacto sobre os recursos hídricos na Região. Do ponto de vista da quantidade, é importante notar que, nos Açores, não realizamos operações de irrigação como as que se fazem no continente, pois não temos essa necessidade. No entanto, há uma grande procura por água para o abeberamento do gado e para a manutenção das condições de higiene nas explorações agrícolas.
Não é tanto pela actividade pecuária que se verifica uma pressão relevante sobre a quantidade de recursos existentes. A actividade pecuária não representa uma grande pressão sobre a quantidade de água, mas tem impactos significativos na sua qualidade, especialmente nas lagoas. Como se sabe e é de conhecimento geral, em algumas massas de água de superfície, há problemas de eutrofização. Este processo ocorre quando a água das lagoas fica excessivamente enriquecida com nutrientes, resultado do transporte de nutrientes das pastagens para as lagoas, o que eleva esses níveis a tal ponto que, em alguns casos – particularmente no Verão – ocorrem florescimentos algais, com as lagoas apresentando tonalidades amareladas ou outras devido à multiplicação de microalgas na água, o que pode inviabilizar a utilização dessas reservas hídricas estratégicas na Região.
Podemos afirmar que a qualidade da água nos Açores tem piorado ao longo dos anos?
Não seria bem essa a afirmação, pois temos diversos problemas. Podemos dividir as águas interiores em dois grandes grupos: as águas de superfície (ribeiras e lagoas) e as águas subterrâneas. Quanto às águas de superfície, possuímos, essencialmente, problemas relacionados com um sistema insuficiente de drenagem de águas residuais domésticas, além dos impactos da actividade agrícola na eutrofização das lagoas.
Contudo, é possível compatibilizar a actividade agrícola com a protecção da qualidade da água. Basta adoptar boas práticas agrícolas, como uma fertilização adequada dos solos, sem promover a subutilização de fertilizantes, para que possamos manter uma actividade agrícola sem impactos negativos na qualidade da água.
Além disso, a Região Autónoma dos Açores (e bem) já implementou planos de ordenamento do território nas bacias hidrográficas das principais lagoas, buscando, de algum modo, através da gestão dos usos do território, defender, proteger e valorizar os recursos hídricos. A compatibilização das actividades é possível, mas exige um esforço contínuo.
Quanto às águas subterrâneas, um tipo de água ainda não mencionado, elas são extremamente importantes, pois garantem praticamente 98% do abastecimento de água nos Açores. Essas águas vêm do subsolo, sendo captadas em nascentes ou furos. O principal problema aqui está relacionado com a mistura da água doce com sais marinhos, ou seja, a salinização dos aquíferos, especialmente nas zonas costeiras das ilhas, sendo as ilhas da Graciosa e do Pico as mais afectadas por este problema.
Assume o papel de coordenador do Plano de Gestão da Região Hidrográfica dos Açores 2022-2027. Em que consiste este plano e quais são as metas a atingir?
O Plano de Gestão da Região Hidrográfica surge de uma legislação promovida pela União Europeia, que se aplica a Portugal e aos Açores. Em cumprimento dessa legislação europeia, a Diretiva Quadro da Água, foi adaptada para Portugal pela Lei da Água, em 2005 (que completará 20 anos em Dezembro deste ano). O território português foi dividido em 10 regiões, sendo 8 no continente, a nona nos Açores e a décima na Madeira.
A União Europeia impõe a obrigatoriedade de cada uma dessas regiões hidrográficas elaborar um plano de gestão, que serve como guia e orientação para que as massas de água atinjam o que é denominado como “bom estado”. Idealmente, todas as massas de água deveriam ter atingido esse “bom estado” em 2015. As massas de água que não o atingiram até então devem reunir esforços para alcançar esse objectivo ao longo do tempo.
Como isso pode ser feito? Como os planos da região hidrográfica o concretizam? Eles avaliam as pressões sobre as massas de água – tanto quantitativas quanto qualitativas -, analisam o estado dessas massas de água com base num diagnóstico durante um período de referência e propõem medidas objectivas, com responsáveis e financiamentos estimados, para manter o bom estado das águas já nesse patamar ou alcançar esse estado para as que ainda não o atingiram.
No caso da Região, o plano de gestão hidrográfica apresenta um conjunto de medidas muito diversificadas. É difícil descrever todas, mas, em resumo, propõe-se controlar os focos de poluição difusa, melhorar a caracterização das massas de água e as suas pressões, além de aprimorar a monitorização quantitativa e qualitativa sobre essas massas de água. Esse plano visa garantir que a Região caminhe no sentido de cumprir os requisitos de qualidade impostos pela Diretiva Quadro da Água e pela Lei da Água.
Neste momento, é cedo para avaliar o sucesso da implementação do plano, cuja execução começou recentemente, mas que segue as directrizes de planos de gestão anteriores. De acordo com a Diretiva Quadro da Água, este planeamento é feito em ciclos sucessivos.
Quais são as grandes adversidades que a Região enfrentará num futuro próximo em termos hidrográficos?
Nós somos cientistas, não adivinhos, mas podemos antever algumas questões que se tornarão mais prementes devido às alterações climáticas já em curso. Pode haver uma diminuição da recarga dos aquíferos, o que é relevante, visto que, como mencionei antes, a água subterrânea garante 98% do abastecimento nos Açores. Essa diminuição pode ocorrer devido a mudanças nos padrões de precipitação, assim como pode haver uma deterioração da qualidade da água de superfície e subterrânea. Além disso, a subida do nível do mar, associada à redução da recarga, pode facilitar a intrusão salina – ou seja, a mistura da água doce com os sais marinhos nas zonas costeiras.
São questões importantes para reflexão e que já estão parcialmente contempladas no Plano de Gestão da Região Hidrográfica, com o objectivo de garantir uma gestão sustentável dos recursos e o adequado funcionamento do ciclo da água. As alterações climáticas também poderão aumentar os eventos hidrológicos extremos, como as cheias.
Nesse sentido, a região hidrográfica dos Açores já fez a sua parte, dotando-se de um Plano de Gestão de Riscos de Inundações, que abrange actualmente 11 bacias hidrográficas prioritárias, com medidas definidas para minimizar e caracterizar os fenómenos de cheias fluviais e inundações por invasão da água do mar.
José Henirque Andrade
