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‘Celebrar o livro português é sublinhar a importância dos escritores e dos mundos que criam’

Assinalado a 26 de Março, o Dia do Livro Português foi instituído por iniciativa da Sociedade Portuguesa de Autores, evocando a data em que se imprimiu o primeiro livro em território nacional — o “Pentateuco” (Faro, 1487). Para celebrar esta efeméride, estivemos à conversa com a Professora Maria do Céu Fraga, especialista em Literatura Portuguesa Clássica e investigadora camoniana, sobre o valor dos clássicos, a formação de novos leitores e a centralidade da leitura no desenvolvimento da sensibilidade e do pensamento crítico. “A escola não pode desistir do livro e, desde os primeiros anos, tem de valorizar o texto escrito em si mesmo”, afirma.

Correio dos Açores – Qual a importância de assinalar o Dia do Livro Português?
Maria do Céu Fraga (Professora da Universidade dos Açores) – Como qualquer “dia” dedicado a um tema, o Dia do Livro Português procura chamar a atenção para um assunto, torná-lo alvo de análise e discussão e conferir-lhe um relevo na vida social que se coadune com a importância que os promotores da celebração vêem não ser reconhecida pela comunidade.
Se a Sociedade Portuguesa de Autores escolheu para promover esta celebração o dia em que, nos distantes anos de 1487, saíram do prelo os cadernos do primeiro livro impresso em Portugal, o ‘Pentateuco’, celebrar o livro português significará, portanto, sublinhar a importância dos livros e, consequentemente, dos escritores e dos mundos que criam. Numa nota solta, lembre-se que o Pentateuco foi impresso em hebraico, cabendo às ‘Constituições que fez o Senhor Dom Diogo de Sousa, Bispo do Porto’ o ter sido o primeiro impresso em português.

De que forma efemérides como os 500 anos de Camões ou o bicentenário do nascimento de Camilo Castelo Branco podem renovar o interesse pelos clássicos e estimular uma nova leitura da tradição literária portuguesa?
Tanto Luís de Camões como Camilo Castelo Branco foram autores que não fugiram aos temas incómodos, seja de um ponto de vista político e social, seja de um ponto de vista individual.
O cânone literário, ou seja, o conjunto de textos que vamos considerando património insubstituível, altera as suas fronteiras com o tempo, vai incorporando novos autores, e, ainda que sem os rejeitar, esquece outros que porventura retomará adiante.
O leitor tem por vezes tendência a procurar livros que respondam de forma imediata às suas exigências, que podem ser as mais variadas, desde o pensar um problema social a dar uma boa gargalhada, emocionar-se, ou conhecer o mundo, ou, simplesmente, ler um texto esteticamente bem conseguido, num português escorreito e elegante.
Celebrar 500 anos sobre o nascimento de Camões, ou 200 anos sobre o de Camilo, apesar de um nos remeter para o século XVI e o outro para o XIX, tem o mesmo significado: trata-se de sublinhar a sua integração no nosso viver comum, trata-se de reconhecer e procurar aprofundar a nossa dívida para com eles.

Que autores açorianos considera de leitura imprescindível? Há obras que destacaria neste dia?
Digo-lhe um poeta só: Roberto de Mesquita. Pelo lugar que lhe é devido na história da literatura portuguesa, e pelo significado que toma, oscilando sempre entre o sentido geral, universal, e o espelho do ilhéu, historicamente situado. É, naturalmente, um autor que pode parecer “difícil” – como também é difícil às vezes a vida –, mas em que vale a pena investir, pelo mundo que nos abre este poeta, isolado nas Flores mas desperto ao universal.

Como se formam novos leitores hoje? Que papel devem assumir a escola e a comunidade nesse processo?
A pergunta é muito interessante, porque nos deixa ver bem a contradição que existe entre os objectivos da escola e a realidade com que nos deparamos – ou seja, entre os sonhos da sociedade para a geração vindoura, por um lado, e, por outro lado, a realidade presente.
A escola deve formar comunidades com interesses intelectuais, entre os quais o gosto pela leitura – e a educação literária faz parte dos programas oficiais. Mas a escola não pode estar só. Ou seja: se uma criança ou um jovem vê que os seus professores o mandam ler, mas não lêem, nem encontra na sociedade adulta que o rodeia um incentivo activo, a escola pouco pode fazer.
Há um livro de Daniel Pennac que fez a sua época, e que continua, penso, de grande actualidade a este propósito. Em Portugal foi traduzido com o título ‘Como um romance’. Nas suas páginas, o autor, ele próprio professor e romancista, insiste na valorização da leitura como pretexto para uma afirmação pessoal, para a aquisição de uma maturidade que, por si mesma, exigirá o esforço que necessariamente a leitura literária implica.
A escola tem de não desistir do livro: e desde os primeiros anos, tem de valorizar o texto escrito em si mesmo, enquanto mensagem reflectida e cuidada, que se transmite e permite a cada leitor interpretar o mundo e interpretar-se a si próprio, relacionando-se com os outros. E ao mesmo tempo, a escola não pode dissociar a literatura do ensino da língua, sob pena de um campo e do outro ficarem empobrecidos.

E qual é o papel das universidades na formação de leitores?
A esse respeito noto que a Universidade deveria ter em grande atenção a literatura e o livro, considerando-os seus aliados na formação global dos estudantes, desde o momento em que conta, entre os objectivos principais da formação que proporciona, o facultar um saber amplo de índole civilizacional, que seja acompanhado pelo desenvolvimento do espírito reflexivo em que se possa estribar a dimensão social do indivíduo. Tem de se concordar: os objectivos gerais do ensino universitário coincidem em grande parte com os objectivos de uma educação humanística, em que o livro, a grande literatura, desempenha um papel fulcral.

Se pudesse destacar um título para celebrar o Dia do Livro Português, qual seria? E porquê?
Dentro do espírito que preside à celebração do dia do livro português, em que se celebram os autores e também o livro como objecto, há naturalmente um que se destaca de imediato, porque tem sido objecto das mais diversas e apaixonadas polémicas, e porque tem assumido os mais diversos formatos, numa metamorfose que diz bem da importância e da apetência do público.
Desde a miniatura e do livro de bolso que permitiriam a todo o cavaleiro “transportá-lo consigo para todos os lados a que fosse”, ao volume de edição luxuosa apropriado “para guarnecer a livraria de qualquer homem culto”, com gravuras ou ilustrações preciosas, à edição digital ou fac-similada, integral ou antológica e anotada, – tudo tem “vestido” o texto de ‘Os Lusíadas’ que conheceu a sua primeira edição em 1572, num livro de aparência relativamente modesta, impresso em Lisboa por António Gonçalves.

Para concluir, há algo que queira sublinhar ou acrescentar sobre este tema?
Retomando os exemplos oportunos que lembrou, Camilo Castelo Branco e Luís de Camões, eles mostram bem o que deve ser formar leitores para a vida.
A escola tem de fazer esquecer que Camões e Camilo são autores “do programa”. Ou mais ainda, tem de fazer notar que ultrapassam os muros da escola. É certo que, normalmente, se toma um primeiro contacto com um e outro no ensino oficial: como também o primeiro contacto que se toma com a geometria que nos acompanha vida fora se trava na escola. Rever-se em alguns versos d’ ‘Os Lusíadas’ ou das ‘Rimas’, embrenhar-se no mundo de Basílio Enxertado Fernandes ou chorar, sem vergonha, com Mariana, deve ser um exercício que se pratica pela vida fora.
Daniela Canha

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