As IV Jornadas Literárias de Ponta Delgada regressam este ano com um programa renovado, que promete fomentar o diálogo entre autores, leitores e investigadores em torno da literatura contemporânea. Na qualidade de coordenador científico do evento, o escritor e investigador Pedro Paulo Câmara partilha connosco a visão que orienta esta edição, sublinhando a importância da literatura como espaço de reflexão crítica, criação partilhada e encontro cultural. Nesta entrevista, falamos sobre os principais destaques do programa, os desafios da curadoria literária e o papel das Jornadas no panorama cultural dos Açores e do país.
Correio dos Açores: Esta é já a IV edição dos Encontros Literários de Ponta Delgada. Como tem evoluído o evento desde a sua génese até aos dias de hoje?
Pedro Paulo Câmara: Ao longo destas quatro edições, os Encontros Literários foram-se afirmando como um espaço de reflexão crítica e de diálogo vivo entre autores, leitores e investigadores e, até, com o próprio público. No início, o desafio passava sobretudo por criar um fórum que desse visibilidade à literatura em Ponta Delgada e nos Açores, mas, a seu tempo, o evento ganhou escala, diversidade temática e uma dimensão nacional internacional, principalmente na edição atual. Hoje, podemos dizer que os Encontros se consolidaram como um espaço de partilha, onde a literatura não é apenas celebrada, mas, também, interrogada nos seus múltiplos vínculos com a sociedade.
A programação deste ano propõe um diálogo entre a literatura e a sociedade, evocando nomes como Camões, Pessoa e Natália Correia. Qual foi o fio condutor temático desta edição?
O fio condutor foi precisamente essa articulação entre tradição e contemporaneidade. Ao revisitar figuras maiores como Camões, Pessoa ou Natália Correia, procurámos mostrar como as suas obras permanecem actuais e fundamentais para pensar questões do nosso tempo: identidade, liberdade, crítica social, a relação entre o indivíduo e a comunidade. Estes autores são faróis que iluminam debates de hoje, e essa ponte entre épocas foi o que orientou a programação. No caso do painel inteiramente dedicado a Camões, é de salientar a recém firmada colaboração com a Universidade dos Açores e a equipa da estrutura de missão do V Centenário de Camões.
O evento tem lugar no Centro Natália Correia. Que simbolismo tem este espaço para um encontro literário deste calibre?
Realizar o evento no Centro Natália Correia é de enorme significado. Natália é uma figura incontornável da literatura portuguesa e, em particular, da identidade cultural açoriana. Este espaço cultural, na sua terra natal, carrega a memória de uma mulher que nunca se furtou ao confronto com o seu tempo. É um lugar que inspira liberdade de pensamento, irreverência e paixão pelas artes, exactamente o espírito que queremos que os Encontros Literários transmitam.
Camões ocupa um lugar central nesta edição. Que pertinência tem o seu legado para a sociedade contemporânea?
Camões não é apenas o autor de uma epopeia fundacional. Ele é, sobretudo, um poeta que soube captar a condição humana em toda a sua complexidade. A universalidade da sua obra permite-nos dialogar com questões de identidade nacional, de globalização, de deslocamento e pertença — temas muito presentes hoje. Revisitar Camões é, na actualidade, reencontrar a literatura como espaço de questionamento do presente, conscientes que existem outros tempos: passado e futuro.
A presença de autores e estudiosos conceituados confere ao evento uma dimensão plural. Como é feita a curadoria dos convidados e painéis?
A curadoria é sempre pensada em termos de equilíbrio entre diferentes vozes: académicos, escritores, poetas, ensaístas. Procuramos criar mesas e painéis que não sejam apenas palco ou exposições individuais, mas verdadeiros diálogos, montras de conhecimento e espaços de partilha altruísta. Por isso, selecçionamos convidados que, além de reconhecido mérito, trazem olhares diversos, complementares ou, até, contrastantes. Essa pluralidade é o que garante a riqueza dos Encontros.
Que papel assume a identidade açoriana neste encontro?
A identidade açoriana é central, não apenas pela escolha do espaço e pela presença de autores da Região, mas porque acreditamos que Ponta Delgada e os Açores têm uma voz própria a oferecer ao mundo literário. São várias as vozes pontadelgadenses e açorianas com projecção além arquipélago e de enorme qualidade. Ao mesmo tempo, queremos inscrever essa voz numa rede mais ampla, criando pontes com Portugal continental, com a diáspora e com outras geografias. O local, aqui, é sempre pensado em diálogo com o universal.
Há um evidente esforço em conjugar diferentes linguagens artísticas, como a palavra, a música e a declamação. A que se deve esta escolha multidisciplinar?
A literatura nunca viveu isolada. A música, o teatro, a oralidade e até as artes visuais são extensões naturais da palavra. Ao abrir espaço para diferentes linguagens, queremos, não só tornar o evento mais inclusivo e acessível, mas, também, recuperar a dimensão performativa e sensorial da literatura. Trata-se de devolver à palavra a sua vocação de encontro colectivo.
Qual considera ser o impacto destes encontros na formação cultural do público jovem, que também está presente, nomeadamente através da Escola Secundária Antero de Quental?
O envolvimento dos jovens é uma das nossas maiores prioridades. Quando os alunos têm a oportunidade de escutar e dialogar com escritores e investigadores, a literatura deixa de ser algo distante, presa aos manuais escolares, e transforma-se numa experiência viva. Este contacto directo contribui para criar leitores mais críticos, mais sensíveis e mais conscientes do poder da palavra. Para além da ESAQ, participam, ainda, nesta edição, alunos da Escola Profissional da Câmara do Comércio e Indústria de Ponta Delgada e da MEP – Escola Profissional da Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada. Em edições anteriores, já tivemos outras participações, de escola públicas e privadas e ainda são possíveis inscrições.
Sente que os Encontros Literários estão a consolidar-se como uma referência no panorama cultural dos Açores? Há ambições de expansão ou internacionalização?
Sim, sinto que os Encontros Literários já são uma referência, mas queremos ir mais longe. A internacionalização é um objectivo natural, não só pela importância da diáspora açoriana, mas também porque a literatura é, por essência, um território sem fronteiras. A ambição é continuar a crescer de forma sustentada, sem perder a ligação ao território, mas projetando Ponta Delgada como lugar de encontro cultural no Atlântico. Na verdade, na edição atual, verifica-se a presença de participantes de outras geografias.
Por fim, que mensagem gostaria de deixar a quem ainda não participou neste evento? Por que razão vale a pena reservar dois dias para mergulhar na literatura em Ponta Delgada?
Diria que vale a pena porque são dois dias em que a literatura se torna celebração, reflexão e partilha. Quem participa encontra vozes múltiplas, ideias provocadoras e um ambiente de verdadeira proximidade entre público e autores. É uma oportunidade rara de viver a literatura de forma intensa, no coração dos Açores, num espaço que honra a memória de Natália Correia. É um convite a abrir horizontes e a deixar-se surpreender pelo poder transformador da palavra. A conferência inaugural, proferida por Onésimo Teotónio Almeida, intitulada “A nossa literatura e a nossa sociedade”, disso será um exemplo claro.
António Pedro Costa
