A Associação Desliga actua na promoção da cidadania digital e na prevenção das dependências, através de campanhas de sensibilização junto das escolas e das famílias e de um centro de formação para docentes. Nesta entrevista, o presidente, José Freire, alerta para a falta de supervisão parental e para o impacto do tempo de ecrã na vida das crianças e dos adolescentes, lembrando que muitos passam horas entre jogos e redes sociais, o que afecta o sono, o rendimento escolar e o comportamento. Defende a proibição dos telemóveis nas escolas e chama a atenção para o papel dos ‘influencers’ num mundo digital cada vez mais radicalizado, onde o discurso de ódio e a violência se tornaram parte do quotidiano dos jovens. Destaca ainda o aumento de fenómenos como o ‘cyberbullying’ e os conflitos que nascem no digital e se repercutem no espaço físico da escola. Defende que “a prevenção é a única forma de travar esta tendência” e apela a uma vigilância familiar mais activa e à criação de alternativas.
Correio dos Açores – Por que sentiram necessidade de fundar a Associação Desliga?
José Freire (Presidente da Associação Desliga/ Professor) – A Desliga nasceu no prolongamento de um projecto que um grupo de docentes estava a desenvolver nos Açores e que foi interrompido em 2023. Trabalhámos no âmbito do programa SeguraNet, em colaboração com a Direcção-Geral da Educação. Para não perdermos o trabalho já realizado, tanto em termos de investimento pessoal como de materiais e conteúdos, decidimos criar a Associação.
O grande objectivo da Desliga é promover boas práticas e cidadania digital, alertando para os riscos do mundo online. Que temas o preocupam mais actualmente no uso do digital?
O trabalho que fazíamos anteriormente já tinha uma forte presença nas escolas e o que nos preocupava então, e continua a preocupar, é a falta de supervisão parental. A maioria dos alunos passa horas nas redes sociais e nos jogos, e em muitos casos não existe qualquer tipo de controlo pois muitos pais continuam sem saber o que os filhos fazem online. Por isso, a nossa acção tem duas vertentes: sensibilizar jovens e adolescentes, e chegar também aos pais, desenvolvendo actividades que os alertem para os riscos do mundo digital.
Enquanto professor, qual é a sua posição sobre a restrição do uso de telemóveis nas escolas?
Chegou tarde, e penso que há outras medidas que também têm de avançar, nomeadamente a proibição total dos telemóveis. A tecnologia é uma ferramenta que deve ser usada pedagogicamente e com intenção pedagógica, porque, quando bem integrada na sala de aula, pode ser muito útil e ajudar o professor, e as pessoas, de modo geral, já utilizam muitas ferramentas digitais no seu dia-a-dia, por isso faz sentido que a escola acompanhe essa realidade. Mas, fora desse contexto, os telemóveis deviam ser proibidos desde o primeiro ciclo até ao ensino secundário, porque grande parte dos problemas que acontecem actualmente têm origem em situações criadas no mundo virtual, que depois acabam por se desenrolar no espaço físico que é a escola, muitas vezes com maus resultados.
Poderia dar-nos exemplos mais concretos de problemas que começam no mundo virtual e se desenrolam na escola?
Há vários. Um dos mais visíveis é o sono. Temos alunos que chegam de manhã completamente cansados, porque ficam a jogar até tarde e não dormem o suficiente. Um aluno sem um ciclo de sono regular não está atento nas aulas nem interessado em aprender. Isso deve-se, sobretudo, ao tempo excessivo que passam nos jogos, mais frequente entre os rapazes, e nas redes sociais, mais entre as raparigas.
Outra questão grave é o cyberbullying e bullying de acção permanente, porque a internet não dorme e podemos estar lá 24 horas por dia. Temos desenvolvido trabalho nessa área e, aliás, vamos lançar agora uma formação para docentes sobre cyberbullying através do nosso centro de formação.
Para além disso, as redes sociais vieram trazer muito mais violência às escolas. Estão cada vez mais radicalizadas, com discursos de ódio em que tudo é preto ou branco, sem zonas cinzentas, e isso aumenta os confrontos. Para além de que temos uma radicalização através de contas pessoais em Plataformas como o TikTok ou o YouTube onde os jovens passam muitas horas sem qualquer tipo de supervisão, e acabam por desenvolver problemas graves.
Há também os gastos em apostas e jogos online, ou em compras dentro dos próprios jogos. Muitos miúdos estão obcecados pelas moedas virtuais, como os Robux no ‘Roblox’ ou os V-Bucks no ‘Fortnite’, e essa dependência torna-se extremamente difícil de controlar.
Depois há ainda a questão do assédio e do ‘sexting’, que têm de ser trabalhados com os jovens. Há pais atentos, que controlam os dispositivos e tentam acompanhar, mas a maioria não tem qualquer noção dos perigos a que as crianças estão expostas. Hoje em dia tem de haver um controlo rigoroso da utilização dos telemóveis e de tudo o que envolve ecrãs.
Há ideias de proibir o acesso às redes sociais a menores de 13 anos, e concordo plenamente. Neste momento, as redes sociais não são um espaço recomendável, sobretudo para jovens e adolescentes que ainda não têm o espírito crítico desenvolvido e não sabem discernir entre o bem e o mal. Acaba por ser um território muito perigoso para estarem.
Falava há pouco da influência das redes sociais na forma como os jovens pensam e se comportam. A série ‘Adolescência’, que tem gerado debate internacional, mostrou precisamente esse tipo de radicalização e de violência. Nota que também os jovens açorianos estão a ser afectados por esse fenómeno? Sente que estão mais agressivos, mais intolerantes?
Estão. Na internet não há fronteiras. E não é por sermos ilhas que estamos isolados. No digital nós não somos uma ilha, estamos integrados no mundo e os jovens comunicam uns com os outros. Um jovem em São Miguel pode seguir a mesma série e ter acesso aos mesmos conteúdos que outro jovem no Japão.
Temos um problema que considero também grave, que é o dos ‘influencers’, masculinos e femininos, que acabam por fazer autênticas lavagens cerebrais aos jovens. Antigamente, para os adolescentes, as grandes referências eram os pais e os professores. Hoje em dia ligam pouco a esses modelos e passam a vida nas redes sociais a ouvir conteúdos muitas vezes sem sentido, que apelam à violência, ao racismo e a outras formas de intolerância.
A série Adolescência foi, ou devia ter sido, um murro no estômago para todas as entidades que dizem preocupar-se com estas questões. Na altura houve um pequeno ‘alvoroço’, toda a gente ficou chocada com o retrato que a série faz, mas passou depressa. É uma obra válida pela fidelidade ao real, e pensei que a seguir surgissem medidas mais restritivas no uso dos ecrãs, principalmente entre os mais jovens. Mas tudo acabou por voltar ao normal, já toda a gente esqueceu e ficou tudo como estava.
Falamos frequentemente dos riscos do digital, mas também há oportunidades. Como é que vê o potencial das ferramentas digitais na educação?
O potencial é enorme. Aliás, a Associação Desliga tem um centro de formação que é, neste momento, provavelmente um dos maiores da Região, quer em número de inscrições, quer em número de docentes formados. As nossas formações assentam muito nas ferramentas digitais, porque sabemos que elas podem ajudar o professor na sua prática lectiva. Não temos nada contra o digital; o problema é as coisas estarem um pouco descontroladas. Há países como o Reino Unido, a França ou a Itália que já avançaram com medidas mais restritivas quanto ao uso de certas plataformas, e penso que nós também temos de começar a pensar seriamente no que queremos fazer
A Associação Desliga assinou recentemente um protocolo com a Direcção Regional da Prevenção e Combate às Dependências. Que impacto ou mais-valia representa esta parceria para a vossa actuação?
Antes de mais, permite-nos chegar a outro tipo de público e alargar a nossa área de intervenção. Até aqui trabalhávamos sobretudo na prevenção e fazíamos apenas algum acompanhamento pontual de jovens com problemas identificados, mas com esta parceria passámos também a actuar na área das dependências químicas. Agora intervimos tanto nas dependências químicas como nas não químicas, o que reforça a nossa capacidade de resposta. Neste momento a nossa actuação abrange as ilhas de São Miguel e Santa Maria, ainda não se estende a todo o arquipélago.
A Desliga começou por actuar na área das dependências não químicas, mas tem vindo a alargar a intervenção. Quais são os maiores desafios destas áreas de actuação e como é que elas se relacionam entre si?
São consumos diferentes e há uma grande diferença entre ambos. As dependências não químicas são, em geral, mais aceites socialmente; muitos pais e famílias encaram com relativa naturalidade o facto de um filho passar horas fechado num quarto a jogar, sem perceberem o que realmente se passa. Já em relação às dependências químicas, continua a existir algum estigma. Mas, em qualquer um dos casos, o passo decisivo para o sucesso é apostar na prevenção.
Sempre que possível, temos desenvolvido formações para professores na área da dependência não química. Um dos projectos mais recentes, realizado em parceria com a Associação de Pais da Lagoa, envolveu alunos do terceiro ano e correu muito bem, porque contou com o envolvimento das famílias. Também na Ribeira Grande temos vindo a realizar um trabalho mais alargado, que começa no pré-escolar e vai até ao sexto ano. E neste ponto quero deixar uma palavra de reconhecimento ao presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande, o Dr. Alexandre Gaudêncio, que, com a sua visão, tem apoiado esta abordagem preventiva. Apesar de o concelho ainda enfrentar muitos problemas, está a tratar estas questões com seriedade. Sabemos que não é uma situação que se resolve de um dia para o outro, mas, se houver continuidade, acredito que dentro de alguns anos surgirão resultados, tanto nas dependências químicas como nas não químicas.
Que impacto considera que a Desliga tem tido até agora no terreno? Consegue identificar mudanças concretas no comportamento, na percepção ou na participação dos jovens e das famílias?
Nas nossas acções, quando vamos às turmas — porque só fazemos sensibilizações a nível de turma, não fazemos em anfiteatros nem com grandes grupos de alunos —, tentamos sempre deixar que os alunos falem também. E muitas vezes notamos que, no fim da sensibilização, há alunos que dizem, por exemplo: “eu vou colocar o meu perfil privado nas redes sociais”. Há também o caso de professores que se apercebem que os alunos estão a gastar muito dinheiro em jogos e falam com os pais.
E nas acções que temos com os pais, o feedback que recebemos vai nesse sentido. Estamos a preparar alguns vídeo-tutoriais que brevemente estarão disponíveis na nossa página, pelo menos um já está, sobre as aplicações e jogos onde os jovens passam mais tempo. A ideia não é fazer com que os pais cortem completamente o acesso a essas ferramentas ou a esses jogos, mas que consigam ter um maior controlo parental. Foi o caso do ‘Roblox’: fizemos um vídeo-tutorial onde os pais podem ver como activar o controlo parental. Estamos neste momento a finalizar outro sobre o ‘Family Link’, uma aplicação que permite controlar aquilo que os filhos fazem nos telemóveis e nos tablets e que pode ajudar também a que os alunos não tenham acesso a determinados conteúdos.
Mas há aqui uma mensagem que eu gostaria de deixar, e que vem muito da nossa percepção: nós vemos que, muitas vezes, os jovens vão para o digital porque não têm opções. Porque, quando têm opções fora do digital, quer seja no desporto, na música ou noutra actividade, eles aderem. Mas, muitas vezes, como não têm essa opção, acabam por ser sugados para o universo virtual.
Que outras actividades ou projectos têm desenvolvido no terreno e o que está previsto para os próximos meses?
Nós estamos a preparar uma campanha, que vamos tentar lançar antes do Natal, cujo lema é “Não ofereça tecnologia aos seus filhos, ofereça tempo”. E, com base nisso, vamos ter alguns spots publicitários e outdoors, porque é importante essa chamada de atenção. Vamos continuar o trabalho que estamos a fazer nas escolas e na formação de professores, porque a tecnologia acaba por entrar na sala de aula e os docentes têm de estar preparados, pelo menos, para perceber do que é que os alunos estão a falar. Muitas vezes os professores já não compreendem a linguagem, o calão associado às redes sociais e aos jogos, e é importante continuar este trabalho de prevenção, que está a ser reforçado.
Quero, por fim, deixar um alerta aos pais: evitem dar smartphones a crianças com sete, oito, nove ou dez anos; limitem o acesso às redes sociais; controlem o que os filhos fazem nos jogos, com quem jogam e o dinheiro que gastam. Tentem criar alternativas ao digital. E penso que, se esse trabalho continuar a ser feito, será positivo para o crescimento dos jovens e adolescentes e para que, daqui a alguns anos, possamos ter uma sociedade mais saudável.
Daniela Canha
