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“O desenvolvimento cultural de uma terra começa pela preservação das suas raízes, e pouco tem sido feito nesse sentido”, afirma Armando Moreira

Armando Moreira, artista multifacetado que transita entre a pintura, o teatro e a escrita, defende que todas as formas de arte partilham do mesmo impulso criativo. Em entrevista ao ‘Correio dos Açores’, o dramaturgo e escritor fala sobre a sua busca por um estilo próprio, a importância de preservar as raízes culturais açorianas e o seu novo livro, “Armandinho – O Caçador de Nuvens”, um retrato histórico de Vila Franca do Campo, que funde-se em investigação, fantasia e auto-biografia. Crítico da “aculturação” e defensor da separação entre poder político e cultura, Moreira lamenta a perda de tradições e alerta para a necessidade de “regarmos as nossas raízes”.

Correio dos Açores – É pintor, escultor, dramaturgo, argumentista e ensaísta. Como gere a convivência entre tantas formas de expressão artística? Existe um ponto de encontro entre elas no seu processo criativo?
Armando Moreira (escritor e dramaturgo) – Completamente. As imagens e as palavras estão sempre ligadas. O cinema sem palavras era cinema mudo; o cinema sem cenografia era insípido. A cenografia tem de estar sempre presente. Os cenários, hoje em dia, são diferentes, a tecnologia mudou. Criam-se mundos maravilhosos, e a própria edição permite resultados verdadeiramente mirabolantes. Todas essas linguagens se conjugam e acabam por refinar o meu olhar, ajudando-me a apresentar trabalhos, espero eu, de qualidade. Mas, acima de tudo, trabalhos depurados.
O meu espírito de autocrítica é muito mais severo do que o de qualquer pessoa individualmente envolvida nestes processos. Sou extremamente autocrítico em relação ao que faço. Não se pode agradar a toda a gente; o importante, em qualquer uma destas vertentes artísticas, é criar um cunho próprio, um estilo. Mesmo que esse estilo desagrade a muitos, é ele que imortaliza o autor.
A minha escrita tem influências que vêm do teatro, do ensaio e da ficção. Essa fusão nem sempre é fácil de apreciar. Os críticos, por vezes, têm dificuldade. Quando o ser humano não compreende algo, tende a rejeitá-lo. Vivemos um certo culto da mediocridade: quando as pessoas não dominam um ofício, acabam por improvisar… e nem sempre da melhor forma. Eu, pelo contrário, prefiro ter a certeza de que executar é, antes de tudo, possuir capacidade técnica e intelectual para o fazer.

O seu trabalho de levantamento histórico tem sido importante para a preservação da identidade açoriana. Cristóvão Colombo surge com frequência na sua obra e investigação. O que representa esta figura para si?
Em Santa Maria, já fiz a minha parte. Um dia falaram-me de um fenómeno ocorrido no século XV, conhecido como os Escravos da Cadeinha: duzentas e vinte e cinco pessoas levadas para o cativeiro na Argélia. Por intervenção da Corte de Espanha, três anos depois, essas almas regressaram à ilha de Santa Maria, que acabou por ser profundamente marcada por esse retorno. Propuseram-me, então, reactivar a Associação da Nossa Senhora dos Anjos, fundada precisamente por esses sobreviventes, sendo a mais antiga associação da Península Ibérica. Investiguei o tema e publiquei quatro livros, disponíveis em Santa Maria. Desloquei-me à Argélia, onde esses açorianos foram arrematados como gado, e realizei quinze reconstituições históricas no Lugar dos Anjos, mobilizando toda a ilha.
Aquela zona devia ser classificada como património histórico, mas isso ainda não aconteceu. Em Santa Maria, fiz tudo o que estava ao meu alcance. Tudo o que diz respeito a Cristóvão Colombo e à sua passagem pelos Açores está publicado nos meus livros.
Realizei também um trabalho de investigação em Santa Cruz, na Lagoa, o local onde, sob a orientação do Infante, os Templários iniciaram o povoamento da ilha, e não na antiga Povoação, que nunca chegaram a conquistar por terra. Tudo começou nos portos dos Carneiros e de Santa Cruz, junto à antiga laguna, muito diferente do que se vê hoje. Toda essa documentação encontra-se arquivada na Biblioteca de Tomar.
O meu livro “Açores, o Enigma” está esgotado há muito tempo e já corre o mundo, com traduções internacionais. Essa investigação acabou por me aproximar do Priorado dos Templários de Tomar, que entrou em contacto comigo e convidou-me a integrar a Ordem de Cristo, com o título de Comendador. Em breve estarei presente em Westminster, em Londres, na Abadia de Westminster, onde se casou a princesa Diana.
Os Açores possuem uma história formidável, uma cultura secular e multicultural de valor incalculável. Quando me perguntam o que se faz para preservar a cultura açoriana, respondo: faz-se pouco. As pessoas têm, infelizmente, tendência para desprezar a sua própria cultura.

Ao longo da sua vasta experiência em diferentes áreas artísticas e culturais, que mudanças mais significativas tem observado na cultura açoriana?
Acho que estamos a viver um processo de aculturação. O desenvolvimento cultural de uma terra começa pela preservação das suas raízes e, infelizmente, pouco tem sido feito nesse sentido. Pelo contrário, destrói-se.
Onde está o teatro popular micaelense? Antigamente, todas as freguesias tinham o seu grupo de teatro. Na ilha Terceira, ainda preservam os bailinhos, mas em São Miguel praticamente nada resta. Temos algo de extraordinário que os próprios Templários admiravam: o culto do Espírito Santo. Essa tradição baseia-se na dádiva e na partilha: dar carne, pão, vinho, oferecer generosidade e comunhão. É uma prática maravilhosa. Mas o que se tem feito com a sua parte profana? Em vez de valorizá-la, vemos câmaras municipais a financiar eventos superficiais, contratando artistas portugueses e estrangeiros para cantar letras vazias ou até obscenas, em festas onde o principal é beber cerveja. Chamam a isso “cultura”. Antigamente havia teatro popular, que podia ter evoluído, transformando-se, mantendo sempre a sua função de intervenção social e artística.
Muitos presidentes de câmara não têm sensibilidade cultural. E o problema é que a cultura está amarrada à política, quando, na verdade, devia ser independente. São as decisões políticas que determinam o que é ou não é considerado cultura, e isso é um erro grave.
Aqui nos Açores, não podemos depender apenas dos subsídios da DRAC. Temos bandas filarmónicas, sim, mas o que mais? Nunca se criou uma companhia de teatro. O Conservatório funciona, é verdade, mas há um certo elitismo que o afasta da comunidade.
O que falta é um projecto cultural estruturado, que aposte verdadeiramente na música, no teatro e na escrita. Temos excelentes escritores e artistas, mas faltam oportunidades e visão.
Não há um Governo que tenha apresentado um plano sólido para a cultura. Em Cabo Verde a cultura é valorizada e bem tratada; na Madeira, tivemos um João Carlos Abreu que soube transformar a ilha, oferecendo cultura aos turistas, e não apenas poncha e espetadas. Nós, açorianos, temos raízes profundas, mas estão ressequidas, a afundar-se cada vez mais. Se não as regarmos, ficaremos falidos culturalmente.
Pessoalmente, desliguei-me um pouco dessa luta. Recebo o meu ordenado, escrevo os meus livros, participo em festivais literários internacionais, viajo, dou aulas. Trabalho também com restauro em Praga, na República Checa, em igrejas. Estou bem assim. Já fiz a minha parte e não vale a pena desgastar-me com o que não quer ser mudado.

Recentemente lançou o livro “Armandinho – O Caçador de Nuvens”. Pode contar-nos do que trata a obra, como nasceu a ideia e de que forma decorreu o processo de escrita?
O livro “Armandinho – O Caçador de Nuvens” nasceu de um desafio lançado pelo professor José Estêvam Pacheco de Melo, então presidente da Câmara Municipal de Vila Franca do Campo. O convite era para fazer uma incursão na cultura popular: recolher expressões linguísticas, usos, costumes, histórias do quotidiano, portanto, a alma de um povo.
Durante anos, fiz gravações e entrevistas, muitas ainda em cassetes de fita, e comecei a escrever. A obra chegou a ter o título provisório de “Corpo Santo”, em homenagem a uma pequena praia de Vila Franca. Mais tarde, com uma nova presidência na Câmara, retomei o projecto e decidi dar-lhe uma nova dimensão.
O material recolhido era vastíssimo. O livro acabou por se transformar num retrato histórico e humano de Vila Franca do Campo, antiga capital dos Açores e palco de batalhas navais, de um terramoto devastador e de uma intensa vida cultural e comercial. Por ser “franca”, Vila Franca era porto livre de impostos, atraindo mercadores de várias partes do mundo.
No livro, estão também as memórias de Armando Côrtes-Rodrigues, bem como os usos e costumes locais, chegando até às antigas práticas de feitiçaria (as ervas e poções que, dizia-se, certas mulheres usavam para “eliminar” os maridos). Era uma riqueza que não podia ficar esquecida.
Mais tarde, reescrevi o livro para que não se limitasse a Vila Franca do Campo. O resultado ganhou um tom “semi-autobiográfico”: a história de um menino que nasceu em Vila Franca e que, depois de percorrer o mundo, regressa para reviver os dramas e os encantos da sua terra. É também uma evocação de um tempo, das lavadeiras nos tanques comunais, das diferenças sociais entre os rapazes do mar e as meninas da elite. Mas há também África… a minha África, onde vivi e cresci, e que marca profundamente o livro.
No fundo, “O Caçador de Nuvens” é isso: a visão de um menino sonhador, alguém que acredita ser possível fazer o possível do impossível. Ser “caçador de nuvens” é viver com esse olhar de encantamento. O título tem uma história real. Aos 16 anos, fui para África, mais precisamente para Angola (Catumbela, em Benguela), onde conheci uma jovem alemã de 15 anos, filha de fazendeiros. Apaixonámo-nos como dois adolescentes: um verdadeiro Romeu e Julieta. Quando começou o processo da independência de Angola, ela teve de regressar à Alemanha e eu permaneci. Acabei por ser preso e maltratado pelo MPLA, e, já nos Açores, adoeci gravemente com tuberculose.
Anos depois, enquanto trabalhava na Marinha Mercante, decidi procurá-la. Sabia apenas que estava em Munique, e parti quase sem dinheiro.
Numa tarde chuvosa de Outono, eu estava ali, numa das artérias do Rossio, quando vi uns papéis a serem levados pelo vento e um chapéu velho. Peguei no chapéu e nalguns papéis e pensei: o que é que eu faço com isto? Às vezes, temos assim coisas divinas. Peguei naquilo, olhei, e, para que uma das folhas não fugisse, pus o pé em cima. Segurei o chapéu contra o peito e fiquei a olhar para o céu. Patético, completamente patético, parecia um arlequim, um artista de rua a representar para ninguém. E era. Um senhor muito bem vestido, de gravata e sobretudo, aproximou-se de mim e perguntou o que fazia. Eu respondi: “Não vê? Eu encanto e apanho nuvens.” Ele sorriu e quis saber mais: “Ah, sim? E o que é que este faz?” Disse-lhe: “Olhe, até já aconteceu apanhar um anjo.” “E o que é que lhe fizeste?”, perguntou. “Soltei-o.” “E esta folha?” “Esta folha condecora a vontade. É para subir mais alto.” Foi mesmo assim. Depois, ele perguntou-me o que eu guardava dentro do chapéu. “Guardo nuvens”, disse-lhe. “Mas aqui não tem nuvens.” “Porque o senhor não está a ver com os olhos certos”. O homem deu uns passos para trás, como quem se prepara para ir embora, mas voltou, tirou a carteira e deu-me cinquenta escudos. Foi esse encontro improvável, essa frase “tu és um caçador de nuvens” que me deu o título. E foi com esses cinquenta escudos, num tempo em que ainda havia fronteiras e o espaço Schengen não existia, que eu fui de Lisboa até Munique, trabalhando sempre e apanhando boleias nos camiões que levavam carga.
Cheguei lá. Encontrei-a. Tinha tido uma filha, mas já estava casada com outro homem.
Esta é uma das minhas histórias e está contada sem artifícios, com a verdade que a vida impõe. O livro, contudo, vai muito além dessa história: são muitas vidas, muitas memórias, mais de 300 páginas que cruzam realidade e imaginação.
José Henrique Andrade

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