A prateleira é um objeto útil. Disso ninguém tem dúvidas. Serve para tudo e mais alguma coisa. Há-as de madeira, de vidro, de metal e até daquelas que prometem aguentar peso sem precisar de furos (e caem ao fim de dois dias, claro está). É um elemento indispensável em qualquer casa que se preze. O mais intrigante é que a prateleira, esse humilde elemento do mobiliário, também passou a servir para qualificar estados.
Quando falamos de prateleiras, o nosso imaginário vai logo para o objeto em si. Aquela superfície onde colocamos os troféus de glórias passadas, as molduras com sorrisos congelados, os livros que jurámos um dia voltar a ler, e também aquelas caixas que ninguém sabe o que contêm, mas que “podem dar jeito um dia”. A prateleira é, por assim dizer, o pedestal dos nossos pequenos esquecimentos.
No quotidiano, já ninguém vive sem uma prateleira. Tornou-se tão essencial que todos nós, em algum momento, já demos largas aos nossos dotes de bricolage. Furador na mão, fita métrica ao pescoço e nível de bolha em riste, lá estamos nós a medir, furar e endireitar, enquanto praguejamos contra o parafuso que insiste em não alinhar. Porque uma prateleira torta é uma afronta à dignidade doméstica. Só quando a vemos direitinha, sólida e pronta a receber o seu conteúdo, é que sentimos aquele orgulho de missão cumprida. Uma prateleira desmontada é como uma ideia por acabar: não serve para nada.
Mas a prateleira, coitada, acabou por ganhar má fama. A culpa, claro, é da sociedade, que lhe arranjou um significado novo: o ato de afastar alguém. Sim caro leitor, “colocar alguém na prateleira” virou expressão. E das boas, porque dói. Quem nunca se sentiu lá? Todos nós, em algum momento da vida, já fomos arrumados discretamente para o lado, como um objeto que perdeu utilidade.
O fenómeno começa cedo. Recorde-se da escola. Aquelas eternas escolhas de equipas em que um colega vai apontando nomes e nós, ali, de olhos postos nele, a ver todos a serem escolhidos… até sobrarmos. É o primeiro contacto com o conceito de “ficar na prateleira”. Não há metáfora mais pedagógica para aprender que, no jogo da vida, nem sempre somos os preferidos. É a tal chapada de realidade sem aviso prévio.
Com o tempo, vamos compreendendo que a prateleira tem muitas formas. Pode ser social, familiar, profissional ou até emocional. Às vezes, é cruelmente alta e inacessível, outras é baixa e discreta, quase confortável. Mas o que raramente fazemos é pensar no motivo de lá estarmos. Quando somos crianças, não percebemos. Quando somos adultos, já devíamos perceber. E, por vezes, a conclusão é amarga: há situações em que fomos nós próprios que subimos para a prateleira, de livre vontade, sem ninguém nos empurrar.
Há quem diga que colocar alguém na prateleira é um ato frio, quase desumano. E há quem defenda que, muitas vezes, é uma consequência natural de comportamentos, atitudes ou simplesmente da falta deles. A verdade é que o poder de colocar alguém na prateleira raramente vem do mérito, mas sim do cargo, da hierarquia e, vá, de um certo prazer em arrumar o mundo a gosto.
No final, estar na prateleira pode ser visto de duas formas. Para uns, é uma injustiça. Para outros, é o resultado de escolhas — ou da falta delas. Mas, sejamos sinceros, talvez a prateleira não seja o pior lugar do mundo. Pelo menos lá em cima, temos tempo para pensar, reorganizar ideias e até observar quem anda cá em baixo a furar paredes e a tentar endireitar a vida.
No fundo, estar na prateleira não é um castigo. É apenas um lembrete: às vezes, o pó acumula-se não porque nos esqueceram, mas porque parámos de mexer ou agimos da forma errada.
Por: Carlos Pinheiro