Atlântico Expresso

Trabalho realizado por 24 investigadores coloca em comum as tradições gastronómicas e vinícolas nas ilhas da Macaronésia

Ao longo dos últimos dez anos a cooperação entre investigadores da Universidade dos Açores e a Universidade Nova de Lisboa, através do Centro de Humanidades (CHAM), tem dado origem à edição de um conjunto de publicações sobre a identidade cultural dos arquipélagos que compõem Macaronésia, incluindo os Açores, resultando agora na publicação de um livro destinado a colocar em comum as tradições gastronómicas e vinícolas nestas ilhas atlânticas.

Sendo o resultado de um trabalho contínuo exercido desde 2011, conseguido através da colaboração de 24 investigadores na área da história e da antropologia, ligados a diversas universidades e institutos científicos dos quatro arquipélagos que compõem a Macaronésia (Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde), e ainda da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade de Coimbra, nasce o livro “Viagens à volta da mesa nas ilhas da Macaronésia”.
Coordenado por Duarte Nuno Chaves, Professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade dos Açores, o resultado desta investigação histórica aborda os “itinerários turísticos do património gastronómico e vinícola” em comum entre os quatro arquipélagos, sendo este trabalho, em simultâneo, fruto de uma “preocupação” do coordenador em “criar pontos de identidade entre estes arquipélagos”.
Neste sentido, Duarte Nuno Chaves salienta que “a história dos quatro arquipélagos que compõem a Macaronésia está intimamente ligada desde o período do seu povoamento”, altura em que circulavam entre os quatro arquipélagos, nos séculos XV, XVI e XVII, pessoas – incluindo escravos – e bens que permitem identificar os aspectos em comum, embora no dia-a-dia seja fácil “não nos apercebermos desta proximidade tão grande que existe entre estes povos”.
Como tal, à semelhança do que acontece com a música, com a dança ou com a religião, aponta o professor universitário e investigador, “a gastronomia é um ponto que nos une a todos” e no qual são perceptíveis “identidades culturais muito próximas entre os arquipélagos”.
Um dos exemplos desta proximidade, aponta, diz respeito às malassadas, conhecidas por serem “um fenómeno gastronómico da doçaria micaelense” que, na realidade, têm a sua origem e essência em Portugal continental, nas filhoses da Beira Baixa, no período da Idade Média.
“No período do povoamento dos arquipélagos da Madeira e dos Açores, na ilha da Madeira do século XV, estas filhoses vão passar a chamar-se “malassadas”. Mas é importante perceber que essas malassadas que têm origem no século XV na Madeira vão passar para a ilha de La Palma, nas Canárias, para a ilha de São Miguel ainda no final do século XV, e é interessante perceber que só fica esta tradição linguística.
O fenómeno gastronómico, no fundo, são as filhoses que há um pouco por todo o espaço português, mas este fenómeno linguístico fica só na Madeira, em La Palma, em São Miguel, no Brasil e, no século XIX, por influência da emigração, essa tradição chega ao Havai e chega à Bermuda, no século XX, também por influência da emigração açoriana”, explica o historiador.
Outra tradição gastronómica que caiu em desuso no arquipélago dos Açores, conforme expressa o resultado deste trabalho, recai sobre o aproveitamento do tubérculo da serpentina, tradição esta que era comum tanto na Madeira e nos Açores e que foi partilhada entre os dois.
Para além disto, Duarte Nuno Chaves refere também que o tradicional doce de alfenim da ilha Terceira, feito de açúcar, água e vinagre, e frequentemente associado às festas do Divino Espírito Santo para o chamado pagamento de promessas, tem a sua origem no arquipélago da Madeira, comprovando assim mais uma ligação entre os dois arquipélagos através da gastronomia.
Contudo, muitas das tradições gastronómicas partilhadas entre os arquipélagos da Macaronésia têm a sua essência no continente português pela altura do povoamento, embora tenham sido, ao longo dos séculos, “alteradas com a inovação das pessoas e, em alguns casos, ganhando novos nomes e novas componentes linguísticas”.
No que diz respeito às semelhanças encontradas entre os Açores e os arquipélagos das Canárias e Cabo Verde, Duarte Nuno Chaves refere que a alimentação está ligada a um conjunto de ciclos, nomeadamente o ciclo da economia açucareira do século XV e do século XVI, o qual se revelou “um traço comum aos quatro arquipélagos”.
Assim, nesses séculos, pelos arquipélagos da Macaronésia – primeiro pela Madeira e depois pelos restantes – passou muito do açúcar que abasteceu o mundo, o que levou a que nestas ilhas “se desenvolvessem muitas tradições gastronómicas ligadas à doçaria”, havendo ainda “questões ligadas aos movimentos da população e aos movimentos económicos que ligam estes arquipélagos atlânticos”, explica o historiador e coordenador deste livro editado pela Letras Lavadas.
“Às vezes pensamos que as populações dos quatro arquipélagos estariam muito distantes, mas não. Entre o século XV e o século XVII houve alguma mobilidade porque circulavam muitas embarcações que traziam tradições e levavam tradições para outros sítios. Há sempre muito que une estes espaços insulares atlânticos que, obviamente, têm uma identidade muito própria”, salienta ainda o professor universitário.
No que diz respeito às tradições gastronómicas que ganham força em detrimento de outras que se vão perdendo, Duarte Nuno Chaves realça que existem vários factores em causa, incluindo a tendência que existe para “moldarmos as nossas tradições alimentares consoante aquilo que nós temos em termos de espaço físico, consoante aquilo que a terra nos pode dar e consoante as condições climatéricas existentes”.
Quanto às alterações que as receitas tradicionais tendem a sofrer, Duarte Nuno Chaves realça que estes são processos muito naturais, tendo em conta que de geração para geração acabam por existir formas ou ingredientes diferentes para confeccionar o mesmo produto: “As receitas vão-se alterando devido às inovações que vamos fazendo, mas o princípio básico é o mesmo e muito dele mantém-se desde o período do povoamento”, diz, adiantando ainda que estas alterações são também objecto de reflexão no livro.
Para além das tradições gastronómicas, o trabalho desenvolvido pelos 24 investigadores envolvidos neste projecto pretende também explorar o que existe em comum nos quatro arquipélagos no que diz respeito à vinicultura, embora tenha sido a parte do livro mais difícil de concluir devido à pandemia e aos constrangimentos que ela provocou na investigação.
Ainda assim, existem neste livro dois artigos referentes às Canárias, explicando o coordenador do trabalho que um dos artigos trata algumas relações entre a Madeira, as Canárias e os Açores em termos comerciais e da própria plantação das vinhas, e que outro fala sobre a paisagem da vinha de Santa Maria e sobre “a génese e evolução de uma vinicultura heroica nos Açores”.
A apresentação pública do livro estava marcada para Sábado passado, mas devido ao aumento do número de casos positivos no concelho da Ribeira Grande, onde seria feita a apresentação, o evento foi adiado para o dia 26 de Junho, embora sempre condicionado pela situação epidemiológica na ilha de São Miguel, encontrando-se já à venda na livraria das Letras Lavadas.
Espera-se agora que o livro publicado com o apoio e financiamento da Direcção Regional do Turismo “possa ser um contributo de diferenciação e valorização da oferta do destino Açores, contribuindo para a criação de um conjunto de itinerários gastronómicos e vitivinícolas, englobados numa realidade arquipelágica alargada ao âmbito geográfico da Macaronésia”, lê-se ainda na nota de abertura do livro em causa.
Tendo em conta o tipo de investigação em causa, a Universidade dos Açores, através do CHAM (Centro de Humanidades), responsável também por este estudo, enviou exemplares do livro para várias bibliotecas universitárias de Portugal, assim como para bibliotecas universitárias em Cabo Verde e nas Canárias, incluindo também as bibliotecas públicas dos arquipélagos dos Açores e da Madeira.

Joana Medeiros

Print
Autor: CA

Categorias: Regional

Tags:

Theme picker