Numa estadia recente na nossa vizinha ilha da Madeira, por um feliz acaso, encontrei, na zona velha da cidade do Funchal, a “Ermida do Corpo Santo” que foi Sede da Confraria de São Pedro Gonçalves, Padroeiro dos Pescadores e Marítimos.
Esta Ermida foi edificada no final do século XV, no termo da então Vila, no sítio designado por “Cabo do Calhau”, local onde os pescadores se instalaram aquando do povoamento e desenvolveram a sua actividade piscatória.
A Ermida sofreu importantes obras, na última metade do século XVI, que muito a enriqueceram. Lê-se na placa informativa existente: “O conjunto de altares de talha dourada, pintura sobre madeira e sobre tela, assim como da imaginária, é dos mais notáveis de toda a Região, demonstrando a devoção e o poder económico detido pela confraria do Corpo Santo, constituindo a capela um dos melhores monumentos religiosos do Gótico e do Manuelino insulares.”
Se estava maravilhado com o que via, ainda mais fiquei com o que havia de presenciar nas redondezas, as típicas moradias dos pescadores, porta e janela ou porta e duas janelas, preservadas e usadas para fins turísticos e comerciais!
Estava eu num local riquíssimo, memória viva da História Madeirense, preservado e colocado à disposição da população para memória futura e da economia local! As minhas sinceras felicitações!
Toda esta sensação de alegria contradizia com um enorme sentimento de tristeza, de fúria! Inevitavelmente, recordava e comparava esta fase da História Madeirense com a vivida igualmente nesta ilha de S. Miguel, tendo como protagonistas estes Bravos e Corajosos Pescadores que foram muito para além da sua arte de pescar, socializaram e evangelizaram através do seu Santo Padroeiro!
A nossa “Ermida do Corpo Santo”, Sede da Confraria de São Pedro Gonçalves, existiu desde o século XV no lugar com o mesmo nome, hoje, Cais da Sardinha, em Ponta Delgada. Em 1847 afirmava-se que iria colidir com a construção da futura doca, em 1862 foi demolida para dar lugar ao Mercado do Peixe que, em 1950, foi demolido para permitir a construção da primeira fase da actual Avenida Infante D. Henrique.
Do “Bairro dos Pescadores” na Calheta, em Ponta Delgada, com as suas moradias típicas, porta e janela ou porta e duas janelas, restam muito poucas e já adulteradas. O bairro perdeu relevo depois de se ter retirado, contra a sua vontade, os pescadores do porto de pesca da Calheta Pêro de Teive, aterrando-se este riquíssimo Património Natural em finais do século XX para dar seguimento ao prolongamento, segunda fase, da Avenida Infante D. Henrique.
Incrivelmente, toda esta barbaridade cometida à nossa História, ao nosso Património Material e Imaterial, foi em nome do progresso! Questionava-me perante as duas realidades, a que eu presenciava e a outra que tenho em memória:
A realidade - Os nossos irmãos Madeirenses preservaram a sua memória Histórica para que não ficasse esquecida, aproveitando-a, inteligentemente, para promover a sua economia, tornaram o local um dos mais procurados na cidade do Funchal.
A que está em memória - A Calheta Pêro de Teive, a Ermida do Corpo Santo, desapegados à nossa História, ao nosso Património, destruímos e soterramos, valorizando o cimento armado. Foi assim e continua a ser assim, infelizmente!
Imagino: A Capela do Corpo Santo no actual Cais da Sardinha. A Calheta Pêro de Teive com a sua bonita baía e os seus dois portos, as ruas conhecidas por 1ª, 2ª e 3ª Travessa da Calheta, que constituíam o Bairro dos Pescadores, pelo menos uma delas com as suas típicas moradias dos pescadores. Todo este riquíssimo e Histórico Património Material e Imaterial preservado e respeitado ao serviço do comércio, do turismo, da nossa economia. Certamente, tínhamos ali uma mina de ouro que muito enriquecia e enobrecia a nossa História, a cidade de Ponta Delgada, a ilha de S. Miguel e os Açores!
Caio na realidade! Choro, por todo este Património desaparecido e que continua a desaparecer, estupidamente, em Ponta Delgada e nesta ilha, em nome do progresso! BASTA!
“Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir”. José Saramago