30 de outubro de 2021

Opinião - Cesto da Gávea

Shows de circo

Após as recentes eleições autárquicas, o País vem assistindo a uma erosão de valores democráticos, que não sendo surpresa para observadores mais atentos, não deixam de causar alguma inquietação quanto ao futuro. Aquilo que não devia surpreender, surpreende; o que devia causar surpresa, é encarado pelos atores políticos como um novo normal, à semelhança da Covid-19. As raízes da situação crescem há alguns anos, desde a transformação em derrota da vitória eleitoral da coligação liderada pelo PSD de Passos Coelho, à transformação, da derrota do PSD/Açores em vitoria, nas últimas legislativas, por via da coligação PSD/CDS/PPM, apoiada no Parlamento Regional pelos deputados do Chega e da Iniciativa Liberal. Em ambos casos, foram meros exercícios de aritmética parlamentar, somando deputados nacionais na “geringonça”( terminologia Paulo Portas)e deputados regionais na “caranguejola” (epíteto de Carlos César). Nada mais legítimo em termos jurídico-políticos, mas também nada mais suscetível a trapalhadas, negociatas partidárias, jogadas de bastidores e respetivos aproveitamentos mais ou menos obscuros. Fazer depender governações de forças minoritárias que se agigantam, conforme pesam numa coligação, é desequilibrado e tem seu preço, mas se esse peso residir apenas em 1 ou 2 deputados, pode ser catastrófico.
Assim se vê pelo andar da carruagem nacional, onde a famosa “geringonça” se esfrangalhou, após durar mais do que muitos esperavam. Só esta semana, na votação do Orçamento de Estado na Assembleia da República, as rodas da dita cederam, com consequências imprevisíveis, mas de modo geral negativas. Quem assistiu à totalidade das sessões (não terão sido muitos a aguentar tal provação) ou a parte delas, terá ficado com a impressão de ter visto um espetáculo circense, daqueles que apresentam acrobatas, contorcionistas, ilusionistas, animais treinados e palhaçadas. Enquanto Portugal se afoga numa dívida pública e privada superior a 750.000 milhões de euros, as senhoras e senhores deputados, com relevo para o PM Costa, digladiam-se com remoques de duvidosa seriedade, mais interessados em futuros resultados eleitorais do que no respeito pelo serviço público a que estão obrigados. Na minha longa experiência parlamentar regional, nacional, europeia e municipal, poucas vezes tive o desprazer de ver um show político tão próximo de um circo. Alguém, numa intervenção televisiva de auscultação da opinião pública, afirmou que a qualidade destes (as) deputados da República, nada tem a ver com a dos congéneres portugueses de há uns anos atrás. Infelizmente é verdade, porque agora, manda nas escolhas o peso de um povo submetido à precariedade do trabalho, às manobras subtis que manipulam a economia -- onde quanto mais se fala das pequenas, mais se protegem as grandes empresas, sobretudo as estatais – ou a Justiça, num arrastar anestesiante das reformas urgentes que o País necessita. Simultaneamente, enche-se o discurso político-partidário de chavões inúteis e ações tendentes a acentuar o medo e o correspondente adormecimento geral.
Nada disto ocorre por acaso, mas num plano pré-concebido para criar mais dependências do Estado, o que é favorecido por um tecido empresarial privado descapitalizado, paralelo ao empresarial estatal praticamente insolvente, com exemplos na TAP e CP. Tudo vale para arrecadar umas fatias do bolo europeu PRR, conforme decorre duma breve leitura de títulos de jornais nacionais. Assim: Diário de Notícias/9.10.21--“Governo prepara maior subida do investimento público desde o tempo de Sócrates”, o que deixa Vieira Lopes, da Confederação do Comércio, “muito preocupado”. Com razão, porque em 2010, ano antes da “socratiana” bancarrota, também aconteceu igual, quando o governo aumentou 2,9% os funcionários públicos. Espera-se que a desgraça se não repita, mas sem uma profunda reviravolta no sistema produtivo nacional, não vale a pena imaginar milagres. Os indicadores mostram-no, com Portugal na traseira da UE-27:23º no PIB per capita em paridades de poder de compra e 22º no salário médio, tendo baixado de 20º para 25º no ranking educacional, de 2020 para 2021. Ainda não somos os últimos, mas a continuar nesta via, para lá caminhamos.
Se Portugal está como está, dado que nestes parâmetros os Açores ficam abaixo dos nacionais, é caso para preocupação quanto ao futuro. Pouco importa que se apregoe que a dívida pública regional é inferior à nacional, pois é do conhecimento geral que dependemos em cerca de 40% das transferências financeiras da República e da União Europeia, alimentadoras de uma “máquina” estatal omnipresente. Que paga mal e disfarça bem, conforme pude constatar diretamente, relativamente ao recurso a jovens desempregados, nas unidades de saúde públicas. Por mais que se esforcem e mereçam, o horizonte de assistentes administrativos, operacionais e do pessoal dos vários graus da saúde pública é limitado, pelo que lhes resta a saída para fora. São os novos emigrantes da geração mais bem preparada de sempre, pagos pelos contribuintes para serem candidatos à fuga dos shows de circo.

 

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Categorias: Opinião

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