Chef luso-descendente defende que efeitos positivos da canábis e do cânhamo devem ser desmistificados nos Açores

Para assinalar o dia de Acção de Graças, tradição de grande relevância nos Estados Unidos da América e no Canadá, Danny Raposo, filho de emigrantes açorianos, decidiu vir aos Açores com o propósito de dinamizar aquilo que faz a nível profissional, sendo ele chef, inclusive ex-concorrente do Masterchef Canadá e, também, um produtor licenciado de canábis no Canadá.
Através do jantar que decorreu na passada Sexta-feira no restaurante Paraíso das Delícias, em Ponta Delgada, no qual este chef aceitou o desafio de trazer o óleo de cânhamo até aos açorianos através da comida, Danny Raposo propôs-se a “tentar mudar o estigma e mostrar que o cânhamo não é droga mas sim um medicamento” de origem natural e com muito potencial.
“Todos já ouvimos que isto é droga. E é um preconceito que existe nos Açores. Estamos agora a classificar a canábis como um medicamento no Canadá. Temos a literatura, a pesquisa, tudo para provar que isto é um remédio e não uma droga. Nos Açores não ouço relatos de pessoas que a usem para ficarem melhor. Ninguém a usa enquanto remédio, usam-na para “ficar drogados”, e isto contribui para criar o estigma de que isto é uma droga, mas se a planta for usada de forma correcta, tendo em conta os seus propósitos medicinais, compreender-se-ia que não é”, explica o luso-descendente.
Daquela que é a sua experiência, Danny Raposo chega mesmo a afirmar que se não tivesse descoberto a canábis e a sua utilidade medicinal “estaria morto ou na prisão”, reconhecendo que foi esta a planta que o salvou e que lhe devolveu a sua vida e a capacidade de “ser funcional de novo”, experiência esta que decidiu partilhar com os outros.
“Quando era criança tive um acidente e parti a minha perna. Aos sete anos de idade fiquei com o calcanhar em muito mau estado, fiz muitas cirurgias e estava num ponto em que os médicos não poderiam salvar a minha perna, mas depois das cirurgias conseguiram salvar a minha perna e reconstruir o meu calcanhar, mas ao longo do processo tinha que tomar comprimidos atrás de comprimidos. Enquanto criança, nunca compreendi o vício, porque era apenas um comprimido receitado pelo médico.
À medida que passam os anos, comecei a pensar que precisava dos comprimidos. Muitos anos passaram e aos 17, 18 anos começo a “abusar” destes comprimidos. Saía para festas, começava a beber e sentia-me maravilhoso”, conta o chef que, aos 30 anos de idade já dependia completamente dos comprimidos que lhe aliviavam as dores, e isto só viria a mudar depois de ter um primeiro contacto inesperado com a canábis.
“Fui a casa de um amigo há cerca de dez anos e ele ofereceu-me uma bolacha, mas nunca me disse o que ela continha. Comi e achei uma bolacha fantástica. Perguntei se podia comer mais uma e ele disse-me que sim, e eu comi sem saber que havia manteiga de canábis na sua composição. Cerca de meia hora depois, meu Deus, estava no meu pior. Perguntava pelo que estava a acontecer e ele disse-me que as bolachas continham manteiga de canábis”, relata.
A sensação, conforme a relembra, foi das piores que já sentiu em toda a sua vida mas, inexplicavelmente, no dia seguinte não sentiu necessidade de tomar os comprimidos nos quais estava viciado, pelo contrário, sentiu-se “fantástico” durante dois dias, o que o levou a embarcar numa longa jornada ao longo de três anos na expectativa de poder deixar de tomar os fortes analgésicos químicos.
“Comecei a pensar que podia mudar graças a isto e comecei a fazer experiências com canábis. Então, em vez de tomar 60 mg de uma substância que estava no comprimido, eu fiz manteiga com canábis e medi quase a mesma quantidade de THC que estava nos comprimidos. Em vez de tomar o comprimido, comia uma bolacha a cada quatro horas”, adianta, explicando que nos piores dias teve mesmo que combinar a ingestão de bolachas com os comprimidos ao mesmo tempo em que era acompanhado pelo seu médico em todo o processo.
“Quando a canábis se tornou legal no Canadá concorri para conseguir a minha licença. Depois de três longos anos a tentar deixar os comprimidos eu estava finalmente livre destes analgésicos e queria mostrar às pessoas a maneira como o fiz. E funcionou. Por isso comecei a promover a canábis”, diz, sendo por esse mesmo motivo que resolveu trazer esta experiência até aos açorianos através da alimentação.
Apesar de trabalhar e de confeccionar também produtos com THC – Tetra-hidrocanabinol, a principal substância psicoactiva encontrada nas plantas do género Cannabis – Danny Raposo explica que, nos Açores, procurou apenas demonstrar os efeitos positivos da parte medicinal desta planta.
“Na Sexta-feira utilizei apenas óleo de sementes de cânhamo. Extraí o remédio a partir das sementes, que parecem sementes normais, mas se utilizado correctamente podemos extrair os óleos das sementes para tratar ansiedade, depressão e stress, inflamação e a lista continua. Esta é uma planta natural e não há efeitos secundários. Os únicos efeitos secundários serão uma boa noite de sono, sensação de relaxamento e mais apetite”, diz Danny Raposo, adiantando que os efeitos positivos da planta continuarão a surgir com o uso continuado do mesmo.
Assim, no jantar de Sexta-feira no qual o Correio dos Açores marcou presença, o óleo de cânhamo foi consumido através das compotas servidas juntamente com as entradas, bem como no molho que acompanhou o peru típico do Dia de Acção de Graças bem como no puré de batata-doce e nabo que o acompanhou, tornando o seu gosto imperceptível.
De modo a demonstrar a variedade de produtos em que pode ser adicionado este óleo, o mesmo foi também consumido através dos queijos veganos caseiros que ali foram dispostos, bem como na sobremesa, ao ser adicionado na cobertura de um dos bolos.
No fundo, acaba por ser este o trabalho de Danny Raposo durante o tempo que passa no Canadá, já que embora não cobre pelas suas plantas, cobra pelo que sabe fazer com elas: “Dou a canábis de graça porque quero que a tenham, ou, caso a tenham mas não saibam o que fazer com ela, trazem-me as plantas, eu reduzo-as e devolvo o produto final”, que pode vir sob a forma de manteiga, de óleos ou até de aguardente, diz.

Cânhamo contém nutrientes essenciais à saúde
No aspecto nutricional, conforme explica a nutricionista Rita Castanho, o cânhamo industrial, designado por Canabis Sativa L, apresenta-se como “uma planta rica em minerais, vitaminas, ácidos gordos e da maior fonte de proteínas vegetais, pelo que deve ser incluída na alimentação humana e de muitos outros animais”, tendo em conta os já reconhecidos benefícios para a saúde.
Estes benefícios, adianta, são alcançados através dos seus extractos essenciais ou das próprias sementes, raízes, folhas e flores da planta, e, de acordo com os estudos já realizados, ocorrem “ao nível do funcionamento do cérebro, olhos, função cardiovascular, rins, protege o sistema imunitário, estimula a flora intestinal e previne doenças degenerativas”.
Em acréscimo, adianta ainda a nutricionista, os óleos essenciais feitos a partir desta planta “têm um efeito anti-inflamatório comprovado, ajudam em situações de epilepsia, autismo, hiperactividade, depressão, insónia, ansiedade, dores, artrites, desidratação, náuseas, falta de apetite”, e outros.
Estudos recentes realizados a nível internacional apontam ainda para os efeitos comprovados também “no restabelecimento do humor e da energia, no controle da diabetes e no melhor funcionamento da pele, em situações de pele ressequida ou acne”, sendo este “um “remédio” 100% natural, sem contra-indicações, sem efeitos secundários e com um potencial cada vez maior à escala mundial”.
No que diz respeito à sua inclusão na alimentação, não sendo o cânhamo uma planta com efeitos psicotrópicos, o uso culinário deve apenas seguir a regra “do bom senso”, seja através da utilização das suas sementes, óleos essenciais, farinha de cânhamo, bebida de cânhamo – seja através do seu leite, dos chás, cafés, sumos, cervejas ou outras bebidas, sem esquecer os chocolates e a doçaria que daí pode resultar.
Já as sementes e as folhas da planta podem, conforme explica Rita Castanho, “ser introduzidas em saladas, sopas, sumos, iogurtes, bolos, pizzas, manteiga, entre outros. Com a raiz também podem ser feitos molhos, sumos ou barritas proteicas, por exemplo. No caso dos óleos essenciais, mais concentrados em CBD e CBG (canabidiol), deve-se digerir algumas gotas, conforme a concentração do mesmo”, relembrando que “não estamos a falar de canábis com valores de THC elevados, nem de drogas, nem de substâncias psicotrópicas”, tendo em conta que a “canábis com teor de THC elevado e a sua utilização quer no campo recreativo quer medicinal exige outros cuidados e, na generalidade das situações, de acompanhamento médico, inclusivamente”.
No que diz respeito ao cânhamo, a nutricionista realça também que é importante referir que, de acordo com a investigação científica existente, o uso de cânhamo nas suas várias formas é viável junto de toda a população, “desde as gestantes e crianças até às pessoas idosas, passando por jovens e adultos.

Açorianos “olham cada vez mais para o lado medicinal da canábis e não para o seu lado recreativo”
É exactamente isto que tem presenciado André Furtado, funcionário na Canábis Store em Ponta Delgada, que para além de estudar de forma aprofundada a informação publicada relativamente aos potenciais do cânhamo enquanto medicamento, se vai deparando com várias histórias de pessoas que procuram uma solução mais natural para o seu problema.
Um dos exemplos que mais o marcou pela positiva foi o de uma adolescente que foi diagnosticada com síndrome de Tourette, caracterizada como “uma perturbação neurológica crónica que se traduz na presença de determinados tiques simples ou complexos”, que, com o apoio e interesse dos pais, conseguiu deixar a dose pesada que tomava de calmantes e anti-depressivos para passar a tomar algumas gotas diárias de óleo de canabidiol (CBD).
“A menina estava a ser muito medicada com calmantes e anti-depressivos, tinha uma sobrecarga de medicação química bastante grande para a sua idade. Dei a opção aos pais para utilizarem o óleo de CBD, neste caso de 30%, que já é uma percentagem um pouco alta para o peso e para a idade da criança, mas derivada à grande medicação que ela fazia, e pelos meus cálculos, foi a dosagem adequada para ela, e tanto é que os pais conseguiram substituir a medicação toda que a criança fazia pelo óleo de CBD e até hoje o psiquiatra está à procura do Síndrome de Tourette, porque a criança não apresenta nem um sintoma da doença”, diz André Furtado, salientando que, neste caso, a ingestão deste óleo não se dá através da comida, mas sim através de gotas que são colocadas debaixo da língua e que são assim mais rapidamente absorvidas pelo organismo.
Há também o exemplo de pessoas mais idosas que recorrem ao óleo de canabidiol ou aos chás feitos a partir da planta de cânhamo para amenizar os efeitos relacionados com doenças degenerativas como o Alzheimer, o que comprova que “a planta tem muitos mais benefícios do que aquilo que a ciência mostra para o público”.
Tendo em conta a lei europeia que permite a venda de CBD em Portugal e nas Regiões Autónomas, “um componente da canábis que não tem um efeito psicoactivo mas sim um efeito de relaxamento sentido só a nível físico”, explica André Furtado, que salientas que a adesão a este tipo de produtos na Região é cada vez maior.
“Ao nível da adesão, esta tem sido cada vez maior porque inicialmente não existia informação sobre o produto, nem existia muita quantidade de produto à venda cá, não era sequer fácil de encontrar, e actualmente temos disponíveis chás, óleos e as pessoas passam a palavra entre si. A maior parte das pessoas vem cá porque algum amigo experimentou e gostou, ou porque (…) gostava de começar a consumir produtos mais naturais, por isso as pessoas têm aderido em massa”, diz o funcionário deste estabelecimento comercial que tem vários pontos de venda espalhados por todo o país, salientando que nas encomendas que recebem “nenhuma ilha fica de fora, nem o Corvo”, para onde têm também enviado produtos.
Esclarece ainda que nos variados produtos disponibilizados às pessoas na loja, como por exemplo bolachas, brownies, gomas, CBD concentrado ou já diluído ou chás têm “pouco ou nenhum THC”, tendo em conta que o limite máximo para a presença desta substância psicoactiva encontrada nas plantas da canábis em Portugal é de apenas 0,2%.
Em relação aos produtos preferidos, salienta que “a parte da doçaria é preferida pela malta mais jovem ou pelos turistas que gostam destas coisas doces que têm algum tipo de efeitos de relaxamento”, mas que os principais produtos vendidos são os chás e os óleos, visto que os açorianos “estão a olhar muito para o lado medicinal da canábis e não para o seu lado recreativo”.
Por esse motivo, salienta, a maior parte das pessoas quando procura a Canábis Store Ponta Delgada surge “com uma necessidade de algo que ajude em alguma coisa ou de um óleo que ajude em alguma coisa, desde uma situação de stress simples até uma situação de demência avançada”.

Ingestão excessiva deve ser acautelada, defende neuropsicólogo
Mesmo com todos os benefícios associados ao consumo de óleo de CBD através da alimentação, bem como outros produtos legais em Portugalm, como as sementes de cânhamo ou a farinha de cânhamo, há também alguns riscos aos quais importa estar atento, conforme refere o neuropsicólogo João Ribeira, e que se assentam em dois factores cruciais.
O primeiro destes factores estará na “falta de controlo exacto da dosagem contida nas apresentações alimentares destes compostos”, diz o profissional, e o segundo factor – que considera ainda mais preocupante – “está na forma como o conhecido efeito relaxante, alucinogénio e antiálgico se manifesta”, mesmo que em Portugal o limite máximo permitido de THC nestes produtos seja de 0,2%. Isto é, explica, “enquanto no consumo directo de canábis os efeitos tendem a ser relativamente imediatos, quando a substância é ingerida e processada pelo sistema digestivo, os efeitos não aparecem até algumas horas após a ingestão”.
Na opinião do neuropsicólogo, este factor desperta a sua preocupação tendo como base os “vários casos de intoxicação grave que têm sido detectados por ingestão excessiva, devido precisamente ao facto de não se sentirem efeitos imediatos da substância” em questão, tal como alerta o chef Danny Raposo, quando refere que é importante começar por consumir produtos feitos à base de canábis em doses pequenas.
Por estes motivos, João Ribeira adianta que não pode deixar de “manifestar uma certa preocupação” em relação “à utilização do uso destes óleos ou de outros derivados da canábis em preparações alimentares dado que, raramente, o benefício suplanta os potenciais riscos para a saúde dos utilizadores”.
Assim sendo, defende que, “no mínimo, todos os que procurem estas novas experiências devem informar-se previamente sobre os efeitos, volumes percentuais de substância activa, etc., para que possam tomar uma decisão informada” sobre o uso destes produtos.
                                     

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