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Victor Rui Dores - Nasci na ilha Graciosa em 1958, vivi na ilha Terceira entre 1968 e 1978, seguiram-se cinco anos em Lisboa como estudante universitário e, a partir de 1982, fixei residência e constituí família na ilha do Faial, onde reparto os meus dias pelo ensino, escritas, música, rádio, televisão, intervenção cultural, pesquisa linguística, etno-musicologia, apresentação de espectáculos e… tudo! Seria rico se fosse remunerado por tudo o que faço…
Fale-nos do seu percurso de vida no campo académico, profissional e social.
Sou licenciado em Germânicas, ninguém é perfeito... Lecciono, há 40 anos, as disciplinas de Inglês e Teatro na Escola Secundária Manuel de Arriaga, onde também sou o responsável pelo “Sortes à Ventura”, o grupo de teatro escolar com maior longevidade ininterrupta a nível nacional. Tenho dado a cara por várias causas, estou integrado em várias associações sociais e instituições culturais sem fins lucrativos, pago os meus impostos e, até ver, tenho um cadastro limpo e sou um cidadão impoluto.
Quais as suas responsabilidades?
Tenho várias e a vários níveis, mas as que me merecem mais empenho prendem-se com a minha actividade docente. Para mim, pedagogia sempre rimou com cidadania. E todos os dias faço um esforço danado para preparar os meus alunos para uma cidadania activa.
Como descreve a família de hoje e que espaço lhe reserva?
A família ainda é o grande pilar da sociedade.
Pertenço a uma geração que foi (bem) educada sem que os nossos pais fossem altamente instruídos. Digo isto porque ainda há muito boa gente que confunde educação com instrução, dois conceitos que, sendo complementares, não são coincidentes e, na minha opinião, não podem nem devem ser sobrepostos. Entendamo-nos. A educação é da competência da família. A instrução é da competência da escola. Bem sei que não é este o entendimento de alguns iluminados das novas teorias ligadas ao fenómeno educativo, tão iluminadas que vão deixando as nossas escolas às escuras…
Como pai e professor, não tenho dúvidas de que a educação pertence, em primeiríssimo lugar, à família. Aliás, o ditado popular bem que avisa: “Casa de pais, escola de filhos”.
Quais os impactos mais visíveis do desaparecimento da família tradicional?
Observo a família a partir da escola, até porque os problemas da escola são, quase sempre, os problemas da família. Noto que os alunos estão a chegar ao Liceu cada vez mais imaturos e infantilizados, cada vez mais mimados e superprotegidos por mães e pais inseguros, que estão em início ou em fase de consolidação de carreiras, com vidas muito atarefadas, o que lhes retira tempo para um maior e melhor acompanhamento junto dos seus progenitores.
A relação entre pais e filhos é um foco de tensões. Em sua opinião, que abordagens devem ser feitas?
Há um dado sociológico inapelável: as relações entre pais e filhos horizontalizaram-se, isto é, deixaram de ser tão hierárquicas, e muitos pais encontram sérias dificuldades em controlar os miúdos em casa. Se é verdade que a família está em crise, tal deve-se ao facto de vivermos numa sociedade deseducada em termos de cultura, valores e princípios.
Como e quando se deve interferir nas amizades do adolescente?
Recentemente vi um jovem adolescente com uma T-shirt que assim dizia: Be patient with me, God hasn´t finished me yet. Temos que ter paciência com os adolescentes, eles estão “em construção”, têm as hormonas em alta e devemos deixá-los seguir o seu caminho e não interferir em nada, muito menos no que diz respeito à escolha de amizades. Ontem como hoje eles só têm que tomar cuidado com “as más companhias”…
Qual a sua opinião sobre a forma como a sociedade está a evoluir?
Estou preocupado com a excessiva massificação e com a excessiva robotização da vida moderna. Há mais vida para além dos algoritmos…
Por outro lado, preocupa-me a crescente desvalorização das humanidades e da cultura literária no nosso sistema de ensino. Recordo que o insuspeito neurocientista António Damásio já provou e comprovou que, por si só, as ciências e matemáticas não fazem cidadãos…
Que importância têm os amigos na sua vida?
Não conseguiria viver sem eles.
Que actividades lúdicas gosta de desenvolver no seu dia-a-dia?
Caminhar, contemplar diariamente a montanha do Pico, ver séries e filmes.
Que sonhos alimentou em criança?
Ser padre, comandante de navios e astronauta…
O que mais o incomoda nos outros?
A indiferença.
Que características mais admira no sexo oposto?
A beleza do corpo aliada à beleza do pensamento.
Gosta de ler? Diga o nome de um livro de eleição?
Ler é a minha paixão e é a minha profissão. Sou um leitor compulsivo, e é por isso que não fumo… Proponho como livro de eleição o romance “Mau Tempo no Canal”, de Vitorino Nemésio.
Como se relaciona com o manancial de informação que inunda as redes sociais?
Vivemos saturados de comunicação, informação e imagem. A comunicação generalizada deu no que deu. Assistimos hoje, nas redes sociais e não só, à legitimação do insulto, ao triunfo da desinformação e das fake news e de toda uma avalanche de parvoíces. Não há muitos anos falava-se do idealismo futurista da internet, mas esta tornou-se uma fonte de destruição e receio. E quando, na cabeça de muita e desvairada gente, deixa de haver uma distinção muito clara entre o que é verdadeiro e o que é falso, é óbvio que estamos perante uma séria ameaça à democracia.
Por uma questão de saúde mental, evito as redes sociais. Aliás, sou dos poucos portugueses que não tem Facebook.
Conseguia viver hoje sem telemóvel e internet? Quer explicar?
Passei metade da minha vida sem telemóvel e sem internet, e lá por isso não deixei de fazer coisas válidas e de ser feliz.
Costuma ler jornais?
Todos os dias. E mantenho assinaturas com vários jornais e revistas a nível regional, nacional e internacional. Recuso-me é ler jornais online, mesmo sabendo que os jornais em papel poderão ter os dias contados. Lá diz a máxima norte-americana: “A tua melhor notícia de hoje servirá para embrulhar peixe amanhã”.
Que notícia gostaria de encontrar amanhã no jornal?
Que o SARS-COV-2 tenha emigrado para Marte…
Gosta de viajar? Que viagem mais gostou de fazer?
As minhas melhores viagens são aquelas que faço à volta do meu quarto... Mas a viagem que mais me marcou foi uma das três que fiz ao Brasil: durante 15 dias conheci, pela mão do meu irmão Duarte Nuno, todo o esplendor do Rio de Janeiro!
Quais são os seus gostos gastronómicos? E qual é o seu prato preferido?
Sou comedido a comer, até porque aos 64 anos de idade, sei o que significa aquele ditado anglo-saxónico que diz que “tudo o que é bom na vida ou é imoral, ou é ilegal ou engorda”… O meu prato preferido é aquele que raramente como: morcela com rodelas de laranja.
Qual a máxima que o inspira?
“O que for, quando for, é o que será o que é”, do meu compadre Fernando Pessoa.
Em que época histórica gostaria de ter vivido?
Gostaria de ter vivido no século XIX e ter sido um nobre janota…
Os professores são mal tratados nos Açores? Pelos alunos que lhes perderam o respeito? Pelos conselhos executivos que deviam enaltecer mais o seu trabalho? Pelo Governo que deveria reconhecer e valorizar as suas carreiras?
Ser professor é uma nobre profissão que deixou de ser apetecível e, decididamente, não está na moda. Há hoje uma falta gritante de professores nas nossas escolas. Porque ganham mal, andam com a casa às costas e é, de facto, uma profissão de muito desgaste. E, depois, ainda não soubemos articular este dilema: é que temos escolas do século XIX, com professores do século XX e alunos do século XXI…
O espaço do professor é a sala de aulas ou vai para além disso?
Como estou envolvido em várias actividades extra-curriculares com os alunos, obviamente que a minha função de professor vai muito para além das quatro paredes da sala de aula. E julgo que ficamos todos a ganhar com isso.
O Conselho Nacional da Educação a que distância vê os Açores?
Fui, durante alguns anos, o representante da Região Autónoma dos Açores no Conselho Nacional de Educação, numa altura em que o Secretário Regional da Educação e Cultura de então, Álamo Meneses, havia enveredado por algumas políticas educativas que foram pioneiras e inovadoras a nível nacional. De maneira que o Conselho Nacional de Educação estava, então, muito atento ao que se passava cá por estas beiradas em matéria educativa.
A Cultura nos Açores é a soma de todas as partes, envolvendo as melhores competências, ou um espaço de privilegiados?
É, sem dúvida, a soma de todas as partes, porque cultura implica diálogo, confronto de ideias, cruzamento de saberes e campos de pesquisa.
Os Açores são muito mais do que a sua importância geo-estratégica. Estas ilhas não são apenas a sentinela avançada da Europa no meio do Atlântico. Este arquipélago é, acima de tudo, uma fronteira cultural, somos um espaço de cultura e de culturas. E reflectir sobre a cultura é fazê-la, construí-la, interpretá-la e torná-la viva – não é a mera ostentação de saberes. Nos tempos que correm, a cultura deverá ser entendida como factor de liberdade individual e motor de desenvolvimento colectivo.
O que é um insular sem o mar em seu redor?
É um navio desarvorado e sem rumo; é um cais que perde todo o sentido por não embarcar ninguém.
Costuma ter monólogos com o mar? Normalmente, de que fala?
Tenho escrito muitos poemas relacionados com o mar. Falo sobretudo sobre a civilização morta da Atlântida; da serpente que devorava navios; dos 7 bispos fugidos à invasão muçulmana. E procuro, ainda e sempre, a princesa encantada escondida no fundo das águas, emergindo nas noites de luar para tomar posse do seu reino, as Sete Cidades…
E quando olha para o interior da ilha, o que vê?
Para além de pastagens e vacas, vejo a ameaça de um vulcão…
É escritor de ‘Histórias com Peripécias’. Qual a que o marcou mais?
Sem dúvida a do cego Alfredo, o sacristão graciosense que, sendo cego de nascença, tinha várias capacidades, nomeadamente a de fazer instalações eléctricas. E deslocava-se de bicicleta…
O que pode ficar ‘Entre o Cais e a Lancha’?
Um aperto de alma…
O que pode ser para si um ‘Lavrador de Ilhas’? Tenho na memória o corvino que vi entre muros de pedra de lava, a lavrar a terra de arado preso ao cavalo. Mas a sua visão vai muito para além desta memória…
“Lavrador de Ilhas” é o título de um livro do enorme poeta Santos Barros, que tanta falta (ainda) me faz. Somos todos lavradores de ilhas porque temos essa relação telúrica com as ilhas.
É também actor. O que mais gostou de interpretar? E onde gostaria de chegar na interpretação?
Sou um actor amador com uma consciência profissional. O papel que mais gostei de interpretar foi o do Dr. Nícia, na comédia “Mandrágora”, de Maquiavel.
Tenho a noção do Victor Rui Dores ‘Arquipélago’, que consegue viver as nove ilhas dos Açores a partir do Faial e a quem o Pico não faz sombra…
Sou um açoriano de todas as ilhas. Conheço-as todas como a palma da minha mão, e por todas vivo eternamente apaixonado.
A que distância está da política açoriana?
Não estou inscrito em nenhum partido político, mas respeito os políticos, acredito na “polis” e sigo o ensinamento de Platão: “O castigo por não quereres participar na política é acabares governado por pessoas piores do que tu”…
Porque vai votar hoje?
Para cumprir um dever de cidadania.
E o que quer acrescentar para completar esta entrevista?
Gostaria de saber por que razão temos, nos Açores, várias galas de desporto e nenhuma gala de cultura…