Para nós açorianos, de um modo especial os da Ilha de S. Miguel que desde muito cedo se habituaram anualmente a viver esta festa dizemos que o Senhor está de volta. Recordo, era ainda muito pequeno, acompanhado sobretudo por minha mãe porque a profissão do meu pai não permitia deslocar-se facilmente a Ponta Delgada, sonhava com este dia e com todo o colorido que envolvia as chamadas “grandiosas festas em honra do Senhor Santo Cristo dos Milagres”. Era ainda criança para compreender a verdadeira vocação desta festa.
Dos trabalhos de artesanato em madeira ou da tradicional loiça da Vila, sem esquecer as várias guloseimas e as famosas “barraquinhas” a determinada altura um curioso desequilíbrio me pareceu demasiado marcante. Mesmo se pessoalmente não coloco em causa a fé da maioria dos Açorianos, e não só, que em momentos difíceis da vida se manifestaram ao Senhor Santo Cristo das mais variadas formas que respeito e sei que não deixam quem quer que seja indiferente.
Após dois anos de interrupção forçada pelo aparecimento da pandemia o Senhor Santo Cristo está de volta para mais uma vez percorrer as ruas da Cidade de Ponta Delgada.
Com um olhar de sofrimento, mas também aceitação e serenidade a sua passagem não nos deixa indiferentes. É uma devoção que há muito cativou as gentes destas Ilhas, e não só. Está bem perto de nós no Santuária da Esperança na Cidade de Ponta Delgada mas pequenas réplicas da Imagem se encontram espalhadas por todo o mundo de um modo especial nos países da diáspora açoriana pois é considerada relíquia preciosa na maioria das casas onde se encontra alguém destas Ilhas.
Num mundo em plena crise de valores, marcado igualmente com o aparecimento da pandemia, e como se tal não bastasse eis que a guerra também encontrou o seu espaço, apesar de ainda bem distante começa a preocupar um pouco toda a gente.
Infelizmente, porque somos humanos, muitas vezes sentimos um grande vazio porque queremos sobretudo “fazer festa” esquecendo o verdadeiro sentido da mesma e as razões que estão na sua origem. É bem real a fé da maioria do povo destas Ilhas manifesta tantas vezes com “imagens” de sacrifício demasiado fortes através de promessas que me perturbam, mas respeito porque se encontram escondidas na alma de cada indivíduo vivências envoltas em momentos de aflição. Uma doença aparentemente incurável que inexplicavelmente desaparece, um filho pródigo que regressa aos braços da família ou até uma força invisível que nos empurra a caminhar com a Veneranda Imagem sem mesmo saber porquê. É a fé do povo destas Ilhas dos Açores e dos que daqui partiram há várias décadas, mas que chegado este tempo se a vida o permite cá estão.
Este ano, como tem sido largamente anunciado, grande parte da festa será diferente e de tal não posso impedir-me de felicitar a coragem do Reitor do Santuário, Cónego Adriano Borges, e da respectiva Irmandade. Não é fácil mudar sobretudo quando o alvo coloca em causa tradições que envolvem a religiosidade do nosso povo. Verdade que cada qual tem o direito de manifestar a sua opinião, mas é tempo de viver a devoção ao Senhor Santo Cristo dos Milagres pensando sobretudo no próprio Cristo que a Imagem representa, e não valorizar um desfile que por tradição chamamos “procissão”, mas que em muitos casos pouco tem de ligação à verdadeira religiosidade do mundo Cristão.
No momento de redigir esta crónica não sei exactamente como tudo se irá passar pois apenas tenho como fonte de informação a Comunicação Social.
Durante os últimos anos tranquilamente procedeu-se a pequenas alterações, gerou-se algumas controversas que incomodam sempre, o que humanamente falando é por vezes difícil de aceitar. Diz-se muitas vezes que a Igreja tem de ajustar-se à nova realidade dos tempos modernos, mas quando alguém, consciente da responsabilidade que exerce no seio da mesma Igreja e tem coragem de o fazer quase o queremos crucificar.
É tempo de cada qual ocupar na sociedade apenas o “lugar que lhe pertence e que na realidade acredita”.
Felizmente fazemos parte de uma sociedade em que somos livres de expressar com respeito qualquer que seja a nossa opinião. Igualmente é necessário existir alguma coerência nos valores que defendemos e não apenas querer mostrar aquilo que não somos e muito menos acreditamos.
“A Deus o que é de Deus” e aos homens o que é dos homens.
Alberto Ponte